ESTRELAS NOSSAS DE CADA DIA




Andy Warhol. Lupe. 1965

A exposição «Into the Light; The Projected Image in América Art 1964-1977», oriunda do Whitney Museum, em Nova Iorque, e agora apresentada no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, é uma exposição histórica especializada, com uma função didáctica e contextualizadora em relação a um conjunto de tendências e experiências que, ao longo da última década, vêm sendo divulgadas, reconhecidas e vulgarizadas a um ritmo cada vez mais rápido. Quando olhamos para os trabalhos dos jovens artistas que hoje utilizam o vídeo com a mesma naturalidade com que noutros tempos se pintava a óleo é importante saber que o seu trabalho vem na sequência lógica de quase meio século de pesquisas como aquelas de que aqui se apresentam alguns bem escolhidos exemplos. Por isso esta é uma exposição indispensável.

Uma das obras mais inestimáveis incluídas nesta mostra é o filme Lupe, de Andy Warhol, habitualmente integrado no que, no cinema de Warhol, se chama a «Trilogia de Hollywood», em que se incluem também Hedy e More Milk Yvette. Este conjunto de filmes dão-nos a justa medida da importância da mitologia de Hollywood para a compreensão da arte pop em geral e do conjunto da obra e da atitude criativa de Warhol em particular. Nestes filmes, mais do que em qualquer outro momento da sua obra, Warhol lança as bases de um trabalho de desconstrução da ideia de «star» que é uma notável introdução à era do vedetismo de massas em que hoje vivemos.

Se quisermos compreender as origens e o alcance das implicações sociais e culturais da pop é indispensável aprofundar a sua relação com a história do cinema e de Hollywood e do seu triunfo enquanto expressão mais forte de uma nova forma cultural popular e global. O cinema e os modelos de Hollywood e do cinema clássico americano, massivamente divulgados através da televisão e do sistema da moda e da mundanidade, criaram uma nova forma de imaginário e um novo tipo de processos de construção cultural identitária, em termos colectivos e individuais.

A pop não pode ser plenamente compreendida sem um articulação com temáticas oriundas do cinema, designadamente as questões do «star system» e dos novos regimes de identidade decorrentes de uma cultura regida pelo império das imagens. «Desde o pós-guerra, o lugar do cinema na cultura tornou-se preponderante, exemplar, nomeadamente graças ao sucesso com que fundou uma verdadeira cultura universal, aliando pela primeira vez uma audiência popular a uma forma artística que não perdeu por isso a sua alma. É com um cinema que satisfaz ao mesmo tempo as exigências da arte e do público que a arte pop se vai medir» (Catherine Grenier, in catálogo Les Années Pop, Centre Pompidou, Paris, 2001).

A fixação de Andy Warhol na fama, no «star system» e nas actividades mundanas, que ocupavam uma parcela substancial do seu tempo, tem um contraponto paradoxal e perverso. Ao submeter imagens famosas aos seus métodos e processos de pintura, mecânicos e impessoais, Warhol acaba por, ao mesmo tempo que as glorifica, as banalizar, ao colocá-las em pé de igualdade com todas as outras imagens que ele trata exactamente da mesma maneira. Tornar banal o que era excepcional e tornar excepcional o que era banal são dois movimentos de um processo de distanciação que define, afinal, o ponto de vista de Andy Warhol sobre a sociedade contemporânea: crítico segundo uns, apologético segundo outros. Os três filmes referidos são inspirados, respectivamente, nas vidas de Lupe Velez, Hedy Lamarr e Lana Turner. Lupe tem a particularidade de ser o último filme que Edie Sedgwick fez com Warhol, sendo que Edie foi a encarnação máxima da ideia de «Warhol Superstar» ou «Underground Superstar». A ideia de uma espécie de «superstar» alternativa consistia, no essencial, na deslocação da ideia e imagem de «star» do âmbito da estética e indústria mais convencionais de Hollywood para o âmbito de uma cultura artística e mundana marginal em que se inseria o conjunto das práticas artísticas de Warhol e daqueles que então o rodeavam.

A dimensão desta deslocação torna-se ainda mais decisiva devido à natureza ambígua do estatuto da representação em todo o cinema de Warhol. De facto, os filmes de Warhol colocam-se numa situação intermédia entre a ficção e a realidade. As pessoas são pessoas reais – Edie Sedgwick é real – mais do que personagens e, no entanto, não estão a agir naturalmente, estão a agir como se estivessem a representar ou, no caso concreto destes filmes, estão a agir como se fossem «stars». Poderíamos dizer que os filmes de Warhol são documentários sobre pessoas que estão realmente a comportar como se estivessem a representar. É isto que provoca o perturbante e paradoxal efeito de realidade dos filmes de Warhol.

Edie, em Lupe, faz aquilo que qualquer pessoa poderia fazer num momento em que se quisesse imaginar como uma «star», cultivando a banalidade decadente e tangencialmente elegante do quotidiano que a mitologia hollywoodesca lhes atribuiu, sem excluir a indispensável dimensão trágica e autodestrutiva.

Hedy e More Milk Yvette, filmes menos acessíveis que tive oportunidade de ver no Warhol Museum, em Pittsburgh, sugerem esboços narrativos mais densos. Em ambos os casos encontramos grupos de figuras que circulam em torno de uma figura feminina obcecada pela ideia de beleza. A cleptomania e os julgamentos de Hedy e a sucessão dos maridos de ambas são o pretexto narrativo mínimo para uma série de cena des-compostas em que os corpos, os olhares e os gestos (comer, beber, vestir, despir, fumar, beijar) se procuram sem exaltação mas também sem nunca abdicarem da possibilidade de um sentimento ou de um momento de beleza. A sensação mais forte e mais inesperada que me acompanhou nessas horas solitárias na escuridão de uma sala de visionamento foi a impressão de que aquelas pessoas tinham sido realmente filmadas na desarmada procura da expressão de um sentido superior de si próprias. Um sentido que, talvez por não existir, só se pode procurar no lugar de um processo de representação. A procura torna a sua forma mais exacerbada, ou mais patética, quando se persegue a tarefa de construir uma imagem de si próprio que seja a imagem de uma «star».

Neste sentido, as «stars» de Warhol, muito mais que a verdadeiras «stars» de Hollywood -  as irrepetíveis «stars» do cinema clássico americano -, dão-nos talvez a primeira imagem do modelo do vedetismo de massas que hoje anima o processo de construção da identidade de milhões de pessoas guiadas pela ideia de celebridade.

Com a vantagem, que é o superior exclusivo de Warhol, de uma distância infinitamente terna que faz com que o que poderia ser um exercício de mimetismo ou paródia se transforme num quase religioso exercício de respeito pelo sentido de uma presença humana «sem sentido».


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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 13 de Novembro 2004, p. 40.

ISTO É UMA OBRA DE ARTE







Uma página igual à que agora começaram a ler está exposta, até 14 de Junho, na Galeria Deitch Projects em Nova Iorque, constituindo uma das obras de arte incluídas na exposição do colectivo «The Three», organizada por Adrian Dannatt.

Isto não significa que eu cedi à tão comum ambição dos críticos que se querem transformar em artistas e que, à falta de tempo ou talento para mais, resolvi começar a expor os meus textos com o estatuto de obras de arte. Admito, no entanto, que esta é uma hipótese interessante.

Para já, a explicação para esta surpreendente circunstância é um pouco mais complexa.

«The Three» é o nome dado a um colectivo, composto por três mulheres, manequins profissionais. A sua actividade, assumida no âmbito da radicalização da arte conceptual, é organizada e apresentada por Adrian Dannatt, um crítico de arte («The Art Newspaper») e  «curator» fixado em Nova Iorque. Dannatt declarou-nos que Fernando Pessoa e os seus heterónimos são uma fonte de inspiração, referindo Alexander Search em particular. As exposições do grupo consistem na apresentação dos materiais a seu respeito divulgados nos meios de comunicação social. Entre as obras incluem-se gravações rádio e televisão («Liquid News») da BBC e textos de publicações como a «Talk», a «Parkett» e, agora, o Expresso. A primeira exposição realizou-se na Galeria Percy Miller em Londres (Dez. 2001/Jan. 2002) e, sempre de acordo com as informações prestadas pelo «curator», que servem de base a esta crónica, foram vendidas cinco obras a coleccionadores privados.

A avaliar pelas fotografias agora divulgadas para a promoção da exposição em Nova Iorque as três manequins que compõem o grupo já não são as mesmas mas esse factor não afecta a continuidade do trabalho.

O projecto «The Three» coloca-se de uma forma controversa num lugar de confluência entre o mundo da moda e o mundo da arte, sob a égide dos «mass-media». É uma formulação extrema de algumas hipóteses paradoxais sobre a definição da arte (os limites ou a ausência de limites para aquilo que pode ser considerado uma obra de arte) e sobre as vicissitudes que envolvem a noção de autor e artista. Estamos perante uma contundente demonstração da importância da divulgação mediática no processo de construção e reconhecimento do estatuto e valor das obras de arte. Trata-se, ainda, de uma perversa subversão da função tradicional do «curator», aqui transformado num «public-relations» conceptualmente esclarecido.

A estratégia sugere-nos que, na paisagem cultural contemporânea, os processos de mediação, dada a sua avassaladora preponderância social, prescindem de qualquer objecto pré-existente e tornam-se, eles mesmos, o seu próprio objecto. O que está em causa é, também, o estatuto actual da fama e celebridade e os novos e imensos horizontes de poder dos meios de comunicação social de massas. A obra de arte e o artista seriam, apenas, o que se diz sobre eles.

O projecto reforça a credibilidade ao associar-se a Jeffrey Deitch, «dealer» e «curator», desde há 20 anos, divulgador de novas tendências, responsável por exposição internacionais de referência como, por exemplo, «Post Human» (1992). Para os leitores interessados adiantamos que a página do Expresso igual a esta está à venda por 600 dólares. A galeria é contactável através do telefone 212-3437300 e do fax 212-3432954. Apesar da bem conhecida grande tiragem do Expresso, trata-se de uma peça única nos termos do certificado, único, que será entregue ao comprador com a chancela da Deitch Projects e a assinatura do «curator» em representação do grupo «The Three».

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 24 de Maio 2003, p. 50.

ALICE NA PRAÇA DE SÃO MARCOS




Takashi Murakami, Superflat Jellyfish Eyes 2, 2003


A Praça de São Marcos é uma das mais belas do mundo, com a característica suplementar de ser incomparável. De dois em dois anos, os habitantes do mundo da arte voltam a poder experimentar o mesmo deslumbramento quando se deslocam a Veneza para visitar a Bienal mais famosa do mundo. Este ano, para a 50ª edição que abriu ao público esta semana, o Museo Correr, ao fundo da Praça, em frente da Basílica, exibe um cartaz anunciando a exposição «Pintura – De Rauschenberg a Murakami – 1964-2003». O título da mostra inscreve-se sobre uma imagem que é o ponto de partida desta crónica.

Um fundo negro sobre o qual se desenham, com irrepreensível elegância gráfica, sobreposições de formas circulares em que podemos identificar olhos estilizados que, aos pares ou isolados, fechados ou abertos, com pestanas ou sem pestanas, flutuam alegremente no espaço, servidos por um generoso reportório das mais alegres e joviais cores, sugerindo o ritmo de uma música benfazeja e o dinamismo de uma dança feliz.

A imagem de que apresentámos uma possível descrição tem por base a obra Superflat Jellyfish Eyes 2, de Takashi Murakami.

Nascido em 1962 em Tóquio, onde vive e trabalha, Murakami tornou-se, ao longo da última década, o mais famoso e internacionalmente consagrado representante do que poderíamos chamar uma corrente neo-pop à moda do Japão que se tem revelado uma das mais animadas fontes de renovação da cultura visual contemporânea. Uma onda em que as referências às artes plásticas são tão importantes quanto as influências e ligações à banda desenhada, ao cinema de animação, às imagens produzidas em computador, ao «design» em geral e ao «design» gráfico em particular. As filiações sociais e culturais alargam-se ao conjunto das formas mais actuais da cultura juvenil no Japão, de que o género «manga» é uma das expressões mais consagradas.

Toda esta rede de conexões estéticas e culturais é bem exemplificada por um outro trabalho de Murakami incluído na mostra. Superflat Monogram, o primeiro filme de animação do autor, foi realizado na sequência do convite dirigido a Murakami por Marc Jacobs, enquanto «designer» responsável pela marca Louis Vuitton no sentido de o artista redesenhar o famoso padrão que ostenta o logótipo LV. O filme conta-nos, com a suavidade da mais delicada animação japonesa, a história de uma jovem e contemporânea Alice que, em frente de uma loja Louis Vuitton, se confronta com uma afável criatura onírica que, voando a partir das letras do logótipo, lhe tira o telemóvel arrastando-a para um vertiginoso mergulho num mundo surreal habitado por maravilhosas variações coloridas do logo LV e dos diferentes tipos de formas, acima referidas, características do trabalho do autor. Uma Heidi que se transforma em Alice para visitar um mundo em que, com a bênção do mais sofisticado «design», se suspende qualquer pretensa contradição entre a imaginação e o «marketing». O trabalho ganha uma acrescida acuidade, em termos de problematizações sociais, numa cidade em que, por todo o lado, as lojas de luxo das grandes marcas convivem com vendedores ambulantes de imitações de produtos dessas mesmas marcas, com grande destaque para a nova geração das malas Vuitton. Digamos que as contingências da economia deram um sentido ainda mais amplo e literal ao conhecido propósito da arte pop de quebrar as barreiras entre arte e a rua e de fazer com que as imagens tradicionais da história de arte se confrontem com a imensa diversidade do universo visual urbano e quotidiano. O filme foi apresentado nas montras Vuitton, em Março deste ano, juntamente com as novas colecções.

A riqueza estética das conexões transdisciplinares do trabalho de Murakami, designadamente a relação entre animação, «design» e artes plásticas em sentido estrito traduzem-se também, aqui, num polémico alargamento da noção de pintura. A intensidade das suas conexões sociais e culturais mais alargadas, nomeadamente com a moda e as culturas juvenis nipónicas, conduz-nos a um outro aspecto que terá sido determinante para o destaque concedido a Murakami na concepção, e desde logo no título, desta mostra.

Trata-se nada mais nada menos que de pôr Murakami a par com Rauschenberg, nome primordial da arte pop e da pop Americana em geral, cujo triunfo na Bienal de Veneza em 1964 marcou o reconhecimento e consagração da deslocação para Nova Iorque do centro de gravidade do mundo da arte.

Com os olhos bem abertos postos nos olhos de Murakami, pretende-se talvez formular um voto para que o mundo da arte continue a saber mover-se e descentra-se, em novas direcções, reconhecendo energias como, por exemplo, as que, através de Murakami, nos chegam do Japão. Veneza visa assim, também e de novo, sublinhar o seu papel geográfico e simbólico de encontro entre o Ocidente e o Oriente.

Mas há ainda uma última crença que parece animar o trabalho de Murakami e que dota o seu trabalho de uma energia positiva muito rara na arte contemporânea: a crença na possibilidade de criar novas formas de beleza que nos propiciem os ritmos e as coras da experiência da alegria. Quero acreditar que não há contradição entre este apelo jovial e a alegria eterna de voltar a ver a Praça de São Marcos.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 21 de Junho 2003, p. 40.

PORTUGAL XXI, A PRIMEIRA DÉCADA




João Onofre. Casting. 2000
João Onofre. Pas d'Action. 2002.



Quem procura as rotas e as ruas do mundo da arte tem que estar preparado para responder a uma pergunta: «Passa-se alguma coisa no teu país?». Ou seja, neste caso, em Portugal.

Há 20 anos atrás, contra a multissecular choradeira das lamentações lusitanas – que agora parece estar a ser reabilitada – habituei-me a responder: «Há uma nova geração de artistas que importa conhecer o mais depressa possível porque vão dar que falar por esse mundo fora». Hoje, a resposta é a mesma.

A nova geração, os artistas portugueses do século XXI, faz parte da primeira geração nascida depois do 25 de Abril. Os tempos mudaram. Não se trata do fulgor contestatário com que a geração de 60 enfrentou o cinzentismo fascista. Não se trata do entusiasmo eufórico com que os anos 80 se afirmaram contemporâneos do mundo. Trata-se apenas de assumir a condição de artista, hoje, sem passar pelos traumas nem sequer pela luta contra os traumas do ancestral complexo de inferioridade nacional.

Os artistas de que falo, todos com menos de 30 anos, nomes como, entre outros, João Onofre, Filipa César, Vasco Araújo, João Vilhena ou João Pedro Vale, estudaram, viajam, vivem, trabalham ou expõem, naturalmente, em Portugal ou no estrangeiro. Desde os anos de formação até às exposições individuais que começam a realizar foram capazes de esboçar territórios próprios e afirmar linhas de trabalho específicas que dão já, tanto quanto um jovem artista o pode fazer, as garantias de competência profissional e autonomia de imaginário que são o mais seguro indício de que podemos falar de autores.

Em 2001, aos 25 anos, João Onofre realizou a sua primeira exposição individual. O facto pouco teria de extraordinário não se desse o caso de esta exposição ter lugar em Nova Iorque, na Galeria I-20 em Chelsea, e ter sido objecto de um acolhimento crítico positivo com direito a recensão da prestigiada revista «Artforum» (Dezembro 2001). João Onofre nasceu e trabalha em Lisboa, estudou pintura em Belas Artes no Porto e em Lisboa e fez mestrado no Goldsmith em Londres. Como é que aquilo que, para sucessivas gerações de artistas portugueses, era um objectivo final quase inatingível foi aqui um ponto de partida. Como é que se chega, tão depressa, a Nova Iorque?

A história começa com a apresentação no «stand» da Galeria Presença na ARCO (Feira de Arte Contemporânea) em Madrid, 2000, de um vídeo que aí foi visto por Harald Szeemann, que o escolheu para estar presente na Bienal de Veneza, em 2001, por ele dirigida. Seguiram-se múltiplas presenças individuais e colectivas, em galerias e museus, um pouco por todo o mundo.

O primeiro trabalho de João Onofre a fixar a minha atenção foi uma instalação vídeo construída a partir de uma breve sequência de Martha, um dos terríveis filmes de Fassbinder. Os protagonistas cruzam-se na rua e, como tantas vezes já sucedeu a tantos de nós, pouco depois de se cruzarem, voltam-se para trás, ao mesmo tempo, e os seus olhares encontram-se durante um período de tempo brevíssimo, mas que torna esse encontro de olhares irrevogável.

É como se tivessem sentido, sem chegar a ter disso uma consciência clara, que já se tinham cruzado. O primeiro momento é já uma reminiscência. João Onofre corta, repete, faz «loop». Faz um nó com estes olhares e com estes corpos. Instaura o tempo como nó, e no modo como instala a peça, num «écran» em torno do qual o observador deve circular, integra-nos também a nós nos nós deste tempo, destes corpos, destes olhares.

O seu trabalho mais conhecido, o vídeo Casting (2000), apresentado em Veneza, mostra um conjunto de jovens manequins que, um após outro, vão dizendo, de frente para a câmara, uma frase de Ingrid Bergman no final do filme Stromboli de Rossellini: «Che io abbia la forza, la convinzione e il coraggio». O contraste entre a carga política e dramática da referência e a circunstância mundana de um «casting» criam uma ambiguidade quanto ao sentido da mensagem e uma expectativa paradoxal quanto ao desfecho da situação.

Do que se trata aqui, como noutros trabalhos do autor, é de pôr e expor os corpos, e os seus precários sujeitos, dentro do estrito e estreito enquadramento de um nó de tempo que se repete sem escape nem redenção.

Um dos mais fortes exemplos deste efeito de quase cruel sobre-exposição encontra-se na Pas d’Action (2002), apresentada pela primeira vez o ano passado na Feira de Arte de Basileia.

Neste vídeo vemos um grupo de jovens bailarinos que, perante a impiedosa imobilidade da câmara, se tentam manter na posição de «pontas» durante o máximo de tempo possível até se deixarem «cair».

Numa generalização especulativa diríamos que estamos perante uma reflexão sobre a noção de identidade. A própria juventude dos participantes remete para o processo de construção social da identidade. Existimos hoje em sociedade porque e se temos a «força» de nos expormos sujeitando-nos aos exercícios de representação que nos são requeridos e ao frio escrutínio e selecção realizado pelos espectadores que são, afinal, todos os que nos rodeiam. A situação de um artista, um novo artista, é um caso exemplar. O jovem artista apresenta a sua candidatura ao reconhecimento social do estatuto do artista, armado da «coragem» de exibir os produtos da sua imaginação. Compete à nossa atenção qualificar a justeza e o valor das suas «convicções».

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 15 de Agosto 2003, p. 24. 

ESTÁ A OLHAR PARA ONDE?



Filipa César. Berlin Zoo, Part02, 2001-2003


Quando olho para alguém tento compreender o seu olhar. Quando olho para o trabalho de um artista vejo uma determinada realidade tal como ela foi olhada, ou seja, produzida, por esse artista e, ao mesmo tempo, através desse produto que é a obra de arte, aprendo a conhecer o olhar do artista. A especificidade desse olhar, se eu a apreender, transforma o artista num autor, único, mestre de um olhar particular cujas invenções passo a poder partilhar. É esse o maior prazer implícito na descoberta de um novo artista.

Filipa César é um dos nomes fortes da nova geração de artistas portugueses para o século XXI, os artistas da primeira década do novo século. Nasceu em 1975 no Porto onde iniciou os estudos que prosseguiu em Lisboa e Munique para onde foi viver há quatro anos. De Munique seguiu para Berlim onde hoje vive e trabalha. O seu trabalho foi apresentado em exposições colectivas em Milão, Berlim e São Francisco. A primeira individual na Galeria Cristina Guerra, em Lisboa, foi uma das revelações da última temporada. Já este ano recebeu o Prémio União Latina. Filipa César faz parte da primeira geração de artistas portugueses que são naturalmente cosmopolitas: circulam e fazem circular o seu trabalho pelo mundo sem sentimentos de exílio, desforra ressentida ou ultrapassagem eufórica em relação ao torrão pátrio.

Se quisermos um tema para começar a falar do trabalho de Filia César podemos dizer que o tema é o olhar.
É um dos momentos mais voluptuosos da experiência cinéfila. Uma das formas do suspense que alimenta o olhar do «voyeur». O momento em que uma porta se entreabre ao cimo de umas escadas, ou range ao fundo de um corredor. Ou a câmara salta para dentro de um quarto com a promessa de lhe revelar os segredos. O que é que se passa lá dentro?

Vamos imaginar que este momento se prolonga através de uma interminável sucessão de situações de entrada em espaços dos quais nada chegamos a descobrir porque entretanto já estamos a entrar num outro espaço. Foi isto que em Untitled (Twirler) (1999) Filipa César imaginou recorrendo a uma montagem em «loop» de uma série de sequências de vários filmes.

A eternização de um suspense deste tipo instaura um ritmo alterado de percepção que gera um efeito de metamorfose: os espaços começam a transformar-se uns nos outros. Em Untitled (2002), um infindável «travelling» revela-nos a metamorfose entre a coberta desalinhada de uma cama e uma tranquila paisagem natural.

Mas há outros trabalhos em que é o olhar das pessoas que se torna o objecto directo da atenção da câmara num exercício próximo de uma antropologia do olhar.

No vídeo Letters (2000) observamos personagens anónimos que se sucedem e substituem numa estação de correios, deixando nos «guichets» as suas cartas e deixando-nos a nós a possibilidade de lhes inventar um destino, um romance, um filme. Um momento comum do quotidiano transforma-se numa situação de suspense.

A análise dos olhares e comportamentos de quem espera é particularmente rico no vídeo Lull (2002) que encena com obsessivo pormenor – extensivo à banda sonora – os movimentos de um conjunto de pessoas que se confrontam e sucedem numa sala de espera. Que fazemos quando esperamos? O que vemos quando não olhamos para nada? Em que pensamos quando não pensamos em nada?

Há quem diga que não se pode não pensar, tal como não se pode não ver, mesmo de olhos fechados.

O que vemos enquanto pensamos? O que é que pensamos quando vemos uma obra de arte? O que é que vemos quando pensamos numa obra de arte?

Somos responsáveis pelo uso do nosso olhar. A realidade que vemos e vivemos é o produto do trabalho realizado pela nossa imaginação a partir do que lhe oferecemos. Por exemplo: uma obra de arte, o produto do olhar de um artista, o olhar vivo de alguém.


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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 20 de Setembro 2003, p. 44.

COMO É QUE SE VÊ UMA VOZ?




Vasco Araújo. Recital. 2002


Podemos considerar que «ter visões» ou «ouvir vozes» são experiências que pertencem a um mesmo, eventualmente aliciante, horizonte de possibilidades. Julgo, no entanto, que um maior e mais raro desafio corresponderia à ambição de «ver vozes».

O universo da ópera é, com certeza, um dos lugares mais apropriados para explorar esta hipótese. O enquadramento arquitectónico (as grandes casas da ópera), cénico (no palco, na plateia, nos camarins ou nos camarotes nunca deixamos de estar em pleno teatro) e cenográfico (entre a memória dos luxos de outras eras e as invenções futuristas de sucessivas actualidades) só por si só já proporcionam à música e às vozes uma imponente moldura.

Para além da moldura, a figura central em torno da qual se decide a questão da visibilidade da voz é, necessariamente, a figura da «diva»: a imagem do corpo que transporta a voz, se é que não é, pelo contrário, a voz que transporta o corpo, ou os corpos, mas isto é uma questão que terá de ficar para os especialistas.

Esta dúvida relaciona-se com uma instabilidade de fundo que aflige a figura da «diva» e que lhe desenha uma aura muitas vezes maldita, cujo poder de atracção ou a simples proximidade são susceptíveis de gerar vertigens.

O corpo ou o rosto, as mãos, os lábios ou os olhos da «diva» são «mais» que a voz, porque lhe dão uma «imagem», mas serão para sempre menos que a voz, porque são «apenas imagens». Não são a voz.

Questões como estas são tratadas, por exemplo, e é um dos melhores exemplos que conheço, no cinema de Werner Schroeter, designadamente nos seus filmes «sobre» as «imagens» de Maria Malibran ou Maria Callas.

São também questões como esta que constituem uma das melhores pistas de aproximação ao trabalho de Vasco Araújo, um dos nomes mais convincentes da nova geração de artistas portugueses da primeira década do novo século.

A primeira exposição individual no estrangeiro teve lugar na Galeria Yuill/Crowley, em Sidney, na Austrália, em paralelo à participação na Bienal de Sidney, 2002, a convite do organizador, o inglês Richard Grayson. Não sei se devemos atribuir algum simbolismo especial a esta presença na Austrália, mas os antípodas parecem um lugar propício (sempre é o lugar que fica mais longe de Portugal) para sublinhar um trajecto internacional que se começou a desenhar quando a «curator» espanhola Rosa Martinez escolheu a peça «Diva – A Portrait» para integrar a exposição «Transsexualexpress» (Barcelona, Budapeste, Corunha). Esta instalação é uma simulação de um camarim de ópera com todos os adereços habituais e mais alguns objectos masculinos que introduzem um elemento de ambiguidade sexual. Nas paredes, uma série de retratos do autor posando como «diva».

O universo da ópera é a referência central do artista, trabalhado sob múltiplas formas, que incluem o vídeo, a fotografia, a escultura e um trabalho específico sobre o som, dando origem, nalguns casos, à criação de instalações que nos aparecem como salas ou ambientes cenográficos exaustivamente elaborados. Um exemplo recente é a instalação «Recital» (2002), que recria a atmosfera de uma sala de concerto e, na complexa multiplicidade dos elementos que a compõem, funciona como uma espécie de análise estrutural – desconstrução e reconstrução – das várias instâncias de criação do significado que se articulam em torno das imagens, vozes, sons e texto do espectáculo operático.

Vasco Araújo, que estudou, vive e trabalha em Lisboa, marcou presença com uma performance de grande efeito espectacular, na inauguração da Galeria Filomena Soares (2001), em Lisboa. Esta temporada, o autor estará também a trabalhar em residência em Houston, Estados Unidos da América. Trabalhos mais recentes integraram a exposição «Melodrama», itinerante em Espanha (Vitoria, Granada, Vigo), e foram apresentados este ano em Istambul e no Bard College (Estado de Nova Iorque). Novas obras podem ser vistas no Project Room da próxima Feira de Arte de Colónia ou, desde já, na exposição correspondente à atribuição do Prémio EDP Revelação 2002, recentemente inaugurada na SNBA.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 18 de Outubro 2003, p. 42.

EU TENHO UM SONHO






 
João Pedro Vale. I Have a Dream. 2002


No passado dia 31 de Outubro, abriu no MARCO, Museu de Arte Contemporânea de Vigo, a exposição «Outras Alternativas», comissariada pelo jovem crítico e curador espanhol David Barro e reunindo obras de 20 artistas portugueses das mais recentes gerações, isto é, revelados na última década e alguns mesmo já no novo século. A exposição tem as virtudes próprias da diversidade e vitalidade da actual cena nacional e a vantagem de, graças à distância de um ponto de vista menos ligado às circunstâncias locais, agrupar algumas obras e misturas de nomes pouco previsíveis e capazes de suscitar debate.

O que importa aqui sublinhar é a constatação do que a exposição representa: há uma nova geração, ou várias, consoante a arrumação cronológica que se adoptar, de jovens e muito jovens artistas portugueses cujas obras têm já a maturidade e consistência suficientes para participar numa dinâmica internacional de que esta grande exposição, em museu espanhol é assinalável exemplo, tanto mais que a Espanha tem uma função fulcral como ponto de passagem dos artistas portugueses rumo a uma circulação global.
Entretanto, para quem queria dar a volta ao mundo da arte de um modo menos rápido do que aquele que parece caracterizar a dinâmica dos artistas portugueses do século XXI, um dos métodos mais poéticos e aventurosos é, sem dúvida, a viagem em balão.

Para o efeito poderão tentar utilizar o balão criado, em 2002, por João Pedro Vale e apresentado em Lisboa (Lugar Comum, Barcarena), no Porto (Artes em Partes) e agora em Vigo.

João Pedro Vale, que nasceu, estudou e trabalha em Lisboa, teve a primeira exposição individual na Galeria Módulo em 2000. Ali apresentou um conjunto de esculturas que remetiam para objectos ligados à atmosfera de um ginásio, apostando em sugestivas referências sexuais e na utilização de matérias pouco convencionais (sabão, pastilha elástica, «batôn») com uma surpreendente capacidade de apelo sensorial.

Por exemplo, a peça Body Sculpture consiste num complexo de ginástica, daqueles que permitem a realização de uma multiplicidade de exercícios através de variações da posição do corpo e dos vários elementos da máquina. Todas as superfícies estofadas da máquina estão cobertas de pastilha elástica de mentol, devidamente mastigada ou amassada de modo a produzir efeito equivalente, dando à forma final da escultura um delicado tom verde e um apetecível aroma a mentol que alastra ao espaço circundante.

Aquilo que começa por ser um «ready-made», isto é uma apropriação de um objecto pré-existente, transforma-se num palpitante apelo à intimidade. Um objecto que costumamos associar a formas mecânicas e frias, ainda que suadas, de exercitamento do corpo vê-se transformado em eventual propiciador de fantasias sensuais menos comuns.

João Pedro Vale realizou depois uma série de peças de grandes dimensões e grande impacto, entre as quais se destacam as esculturas inspiradas na figura do Pinóquio (Espaço EDP, 2001), na Dorothy de O Feiticeiro de Oz (Feira de Arte de Lisboa, 2001). Vedetas multinacionais de um imaginário cultural global, reinventadas para proveito e gozo dos nossos imaginários pessoais. Figuras consagradas pela cultura de massas até ao ponto de se tornarem estereótipos ganham um suplemento de sensualidade, através dos materiais usados e da forma manual e caseira da sua utilização, e são reinvestidos de uma vocação sentimental que as reenvia para a sua origem lúdica e fantasista, em relação com o imaginário e a memória da infância.

O grande balão voador com o qual começámos esta digressão pelo trabalho de João Pedro Vale tem uma forma inspirada no castelo da Bela Adormecida do filme do Walt Disney e é feito de tecidos vários em tons de cor-de-rosa. I Have a Dream é o seu nome inscrito em bandeiras que adornam o balão e nas bilhas de gás que lhe alimentam o voo. No entanto, como é habitual neste tipo de balões, sobretudo quando se chamam «I Have a Dream» (eu tenho um sonho) não nos é possível ver o balão em pleno voo, apenas o podemos observar em estado de queda com as torres do castelo suspensas de uma varanda ou espalhadas pelo chão.
Os pessimistas poderão pensar que o balão falhou na sua missão mas não é verdade. Nós não sabemos por onde é que o balão já voou nem por quantos sonhos ele já passou e também não sabemos quantas mais vezes ele irá voltar a levantar voo e passar por outros tantos novos sonhos.

As obras de arte não são promessas de políticos nem delírios de poetas. As obras de arte não fingem transformar os sonhos em realidades. As obras de arte são a realidade do facto de haver um sonho.

A viagem de balão à volta ao mundo não tem princípio nem fim, tem apenas momentos de pausa e repouso que devemos agradecer e entender como convite.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 3 de Janeiro 2004, p. 30-31.

O CORPO DA LUA



Rui Chafes. Durante o Sono. 2002.



Abre hoje ao público, no Nikolaj Contemporary Art Center, em Copenhaga, onde ficará até 12 de Abril, uma exposição antológica de Rui Chafes já antes apresentada no Esbjerg Kunstmuseum. Ontem, noite de inauguração, foi noite de Lua Cheia. A paisagem e a luz de Caspar David Friedrich e da Dinamarca, no Inverno, são um dos melhores cenários que poderíamos imaginar para a primeira mostra museológica do autor no estrangeiro.

Rui Chafes é um dos nomes mais importantes da arte portuguesa dos nossos séculos (XX e XXI) e um dos mais originais no panorama geral da escultura, hoje. A selecção de obras para esta exposição permite desenhar um trajecto de leitura em que o corpo é o ponto de partida e o ponto de chegada é, como não poderia deixar de ser, infinito.

Os corpos, tal como as obras de arte, são muito pouco mas são quase tudo o que temos.

Esta história começa ainda antes do movimento do nascimento. Houve um tempo em que não havia ninguém. Tudo o que tivesse que vir a haver estava então ainda dentro. Lá dentro era um sítio «doce e quente» (as expressões a negro são títulos das peças do autor). Rui Chafes tratou este problema nas suas primeiras grandes esculturas/instalações da década de 80.

A escultura Doce e Quente mostra-nos a vontade de não mostrar o que está lá dentro. Mas o artista sempre soube que a abertura, a saída, a queda não podiam ser eternamente adiadas. Mesmo este monstruoso insecto blindado começa a abrir-se, começa a ceder, vencido pelo peso do próprio sentimento que o leva a querer manter-se fechado.

Este é o lugar onde mais tarde teremos de voltar, mas antes de chegar a esse lugar são muitas as passagens e provocações pelas quais teve que passar a representação ou evocação do corpo em queda.

Usando uma linguagem literária é possível definir os seres humanos como anjos caídos que não se conseguem levantar, anjos escangalhados. As nossas cabeças não têm auréolas, os nossos ombros não têm asas, os nossos cabelos não têm luz. O simples facto de conseguirmos existir, tão pobremente despidos de qualquer atributo miraculoso pode ser considerado, em si mesmo, um milagre.

Para nos amparar, uma das melhores coisas que se inventaram foi a ideia do anjo a que muitos artistas justamente dedicaram muito do seu talento. Hoje em dia é raro porque quase nenhum artista se lembra de se ocupar de questões importantes. Rui Chafes é uma excepção e através das suas obras podemos acompanhar as passagens de um corpo.

Os limites da resistência e flexibilidade dos corpos e as possibilidades plásticas das suas acoplagens e correspondentes resultados formais, para além de poderem passar por ser uma definição de escultura, são também uma das principais metodologias utilizadas no trabalho de Rui Chafes.

Diferentes séries de esculturas exploram de maneira sistemática quer a prática da escultura entendida como teste aos limites da capacidade de manipulação dos materiais quer os possíveis exercícios e desenhos relativos à metamorfose, torção e fusão dos corpos.

Se insistimos em explorar os limites do corpo, ou a prática da escultura, acabamos por concluir que os corpos não nos levam suficientemente longe e a todo o momento correm riscos de fractura ou desagregação. Há sempre o perigo de uma escultura falhar, se perder, se partir, apesar de todo o rigor do desenho e todos os cuidados da produção. O mesmo sucede com os corpos. Para evitar que eles se possam esvair é preciso pensar em formas de os segurar, conter, abraçar.

É claro que esta deficiência dos corpos se poderia resolver se fosse possível descobrir o segredo da filigrana de cristal, a metalurgia da luz. Se fosse possível desenhar o paraíso das linhas milagrosas por onde corre o sangue: antes do sangue chegar.

Mas isso não é fácil e não é assunto para a escultura. Talvez para a poesia, dizem, iludidos, os mais crédulos.

É preciso continuar a caminhar. Com Unsaid é possível voltar a estar lá dentro sem deixar de estar cá fora devido a uma engenhosa construção formal e, sobretudo, devido ao desdobramento permitido pelo uso da voz e do texto. Unsaid é um trabalho realizado em colaboração e em que o visitante tem de se colocar dentro de uma estreita construção em ferro para poder ouvir e sentir a intimidade de um texto escrito e lido pela artista irlandesa Orla Barry. A dificuldade, o mal-estar, a inibição funcional que fazem parte da experiência desta peça preparam-nos para o momento seguinte.

Depois de tudo aquilo por que tinha passado o artista voltou a abrir os olhos e sentiu que desta vez era quase a eternidade. Um exemplo daquilo de que estou a falar é a extraordinária escultura Aproxima-te, Ouve-me instalada por Rui Chafes, no Centro de Artes Visuais em Coimbra.

É o momento em que a mais pesada esfera (Durante o Sono) se eleva no ar e se transforma no milagroso espelho negro onde, pela última vez e, depois, pela primeira vez e para sempre se pode ver o rosto da Lua e o rosto de todos os seres amados.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 7 de Fevereiro 2004, p. 38-39.