O PRAZER É TODO MEU



1. "O prazer é todo meu" é o título da nova exposição de Patrícia Garrido apresentada na Galeria Porta 33 no Funchal. É a sexta exposição individual da autora, que vem mostrando regularmente o seu trabalho desde 1987, e julgamos que se trata de uma exposição particularmente importante na trajectória do seu trabalho. Pelo que representa de inovação e deslocação em relação a obras anteriores e porque o grau de consistência e concentração de energia revelado por este conjunto de peças não só as dotas de uma evidente força de presença como, pela riqueza das suas implicações, permite novas hipóteses de leitura retrospectiva da sua evolução anterior. A série "O prazer é todo meu" inclui seis esculturas em espuma coberta de fibra de vidro e poliéster. As formas das esculturas, orgânicas e homogéneas, têm uma evidente dimensão antropomórfica evocando as posições de um corpo aplicado em movimentos e jogos de vocação sexual ou, mais exactamente, porque não estamos perante representações do corpo, em sentido estrito, registando como se de um molde, fóssil ou decalque se tratasse, os efeitos desses movimentos do corpo sobre um volume que lhe serve de suporte e que no limite poderá ser o próprio espaço. Estamos assim não perante um problema de figuração do corpo mas perante um processo de revelação das tensões e dinâmicas inerentes aos seus movimentos e posicionamentos. O que é essencial não é a fixação de uma representação tipificada mas a transmissão da intensidade do fluxo.

2. Esta é a primeira exposição de Patrícia Garrido que se situa claramente no âmbito do que, em termos tradicionais, se chama escultura. No processo de produção destes objectos a autora partiu de um projecto claramente definido de reflexão sobre a experiência do seu próprio corpo para chegar a estas formas finais tendo apenas como elementos de trabalho intermédio alguns desenhos meramente indicativos e alguns modelos em barro. Um aspecto decisivo do efeito final das peças foi a escolha das diferentes cores das esculturas, selecionadas de entre um catálogo de cores de "batons", assegurando uma dupla remissão, por um lado, para as cores da carne, do sangue, dos lábios e da pele, assim reforçando a fisicidade intrínseca das peças, mas por outro lado, também, através da evocação da maquilhagem, para a especificidade social e sexual da mulher. No entanto, e apesar do efeito de surpresa e novidade, esta exposição veio criar um novo contexto de legibilidade para o percurso anterior da artista. A relação mais evidente é como a anterior exposição na Galeria Quadrum – "Jogos de Cama" – em que se apresentou um objecto/instalação realizado a partir da montagem de várias camas de rede. Já aí se tornava evidente uma intenção de fixação das marcas da passagem e dos movimentos do corpo reportadas, na circunstância, a um suporte material explicitamente identificável. Menos directamente, mas de modo igualmente legítimo, era já possível detectar nas anteriores pinturas – Quadrum, 1991, Monumental, 1993 – e desenhos – Loja de Desenho, 1989 – uma tensão entre uma dimensão orgânica que remetia para a expressão de uma experiência pessoal do corpo e um processo de distanciamento pela via da abstracção e da austeridade formal que foi, por vezes, interpretado como inibidor ou dissuasor de leituras fisicamente empenhadas ou como indício de uma intenção de comentário irónico. Mas se hoje revirmos, à luz das mais recentes esculturas, as circunvoluções características de vários desenhos, os jogos de contrastes formais e as sugestões dos títulos – retirados de Rabelais – das pinturas da Quadrum ou a volumetria e a densidade profunda dos vermelhos das pinturas da Monumental, podemos identificar uma mesma linha de investigação guiada pela necessidade de uma inscrição das marcas das tensões inerentes aos movimentos e posicionamentos do corpo; mas através de uma mobilidade de inscrição que não se imobiliza numa representação figurativa estereotipada.

3. O facto de aqui falarmos, em termos genéricos, de corpo, não significa que se deva considerar irrelevante o facto de Patrícia Garrido ser uma mulher e de a experiência do corpo que serve de ponto de partida ao seu trabalho ser a experiência de um corpo de mulher. Independentemente de se poder considerar que o tipo de relacionamento com o corpo que este trabalho exercita é susceptível precisamente de induzir uma visão do corpo que ultrapassa as dicotomias estereotipadas do masculino e do feminino em favor de uma visão do que privilegia o que em todos os corpos é tensão e fluxo, poder e incomunicabilidade. Neste sentido, e apesar de Patrícia Garrido se demarcar de qualquer perspectiva feminista militante, julgamos que não será descabido evocar, em tom de sugestão de reflexão, dois considerados por Rosi Braidotti – num artigo a propósito de Foucault – como pontos-chave do pensamento feminista: "1. La redéfinition du corps comme lieu privilégié du déploiement des appareils disciplinaires et normatifs, mais aussi lieu de résistance et d'expérimentation avec d'autres modéles d'identité (...). 2. Un nouveau cadre d'analyse du pouvoir, qui s'éloigne des macro-structures proposées par ces grandes bureaucraties que sont le marxisme et psychanalyse, pour arriver aux micro-modèles de résistance et aux formations discursives locales, mêmes intimes" (Magazine littéraire", Outubro 1994).

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Alexandre Melo, por ocasião da exposição Patrícia Garrido: O Prazer é Todo Meu, Porta33, 1994

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