PEDRO CALAPEZ: AS VERDADES DO ESPAÇO DE CENA



Atitudes Litorais : I Exposição de Artes Plásticas na Faculdade de Letras, 1984




Os filões da madeira
Pedro Calapez começou a trabalhar sobre papel, agora remonta à madeira. “Porque me rasgavam os papéis.” Razões banais que se transformaram um pouco: “o veio da madeira, o ar de madeira que surge debaixo das camadas de tinta, seduziu-me imenso”.

A cor roubada
Começou por usar grafite, pastel, agora faz a passagem às tintas diluídas. “A passagem é óbvia. Acompanha as ideias que tenho e que desejo realizar rapidamente. Ficava fisicamente esgotado ao cobrir uma superfície a pastel, para que ela ganhasse aquele grão... camadas sobre camadas sobre camadas.”
O suporte refere-se a uma situação antiga – a dos retábulos. A cor testemunha o tempo que desde então passou. “O que também me interessa desses frescos e retábulos é o ar estragado, o que lhes aconteceu. O dourado roubado pelo tempo. Agora tenho as tintas líquidas o que dá para sujar os vermelhos, os castanhos, os negros. O que faz a cor de um quadro resulta das misturas, das camadas – junto os restos. As cores alteram-se: há coisas que começam em encarnado e acabam em verde, o verde dos frigoríficos, das leitarias, o amarelo dos cafés. Eu não quero contrastes vivos, cores fortes.”

Pode haver alguma coisa atrás
Fez aparecer nos seus primeiros desenhos objectos isolados. Por isso colocou desde sempre a questão do espaço. Um sofá, por exemplo, é maciço e quase inerte; uma caixa não o é se a abrirmos e desdobrarmos, a olharmos por dentro, se nela fizermos uma sala ou um monumento. E quando passa aos jogos arquitectónicos (arcos, arcadas, muralhas, castelos, pontes, túmulos) Calapez acrescenta complexidade às iniciais questões espaciais.
As obras apresentadas na recente exposição Atitudes Litorais referiam-se já às posições dos volumes nos espaços – cenografias, mais do que arquitecturas. “O que me apetece são só estas ‘bandas’ que são realmente barreiras, muros finos e grossos ao mesmo tempo, assim no ar, que estão e não estão. E pode haver alguma coisa atrás.”

A cena da escadaria
Desenvolveu no Verão passado um projecto inacabado para a cenografia de Otelo. “Fiz desenhos de várias cenas. Procurei olhar para a época histórica a que se referia mas fui recuando até Giotto. Copiei os seus temas arquitectónicos e seleccionei as formas básicas.” Giotto, natural de Vespignano próximo de Florença, pastor e depois discípulo de Cimabue, amigo de Dante. Bocaccio reconheceu-lhe o poder de igualar a “obra de natureza”. Pintor de extensos programas narrativos (cenas da vida de S. Francisco e do Evangelho apócrifo de S. Tiago) mais do que a fidelidade da envolvência arquitectónica interessou-lhe situar as reacções psicológicas, definir os protagonistas da cenas.
“A minha ideia foi esvaziar: tirar as coisas que lá estavam a mais, as figuras, e deixar o que me prendia, as arquitecturas. Tirar a cruz e deixar os degraus; tirar o cadáver e deixar o leito.”

A ponte é o principal
Céus, a linha de terra que se torna chão ou palco ambíguo e impossível de habitar. Se nas pinturas aparecem tais referências naturais isso faz-se em função dos edifícios. “O meu quadro da ponte. Eu tenho um rio. Primeiro pintei-o muito destacado, depois dei-lhe amarelo por cima, da cor da terra, até quase o apagar. A ponte é que é o principal.”
“Não vejo cenas. Peripécias pois, paisagens, objectos. Há uma vontade de êxtase: desaparecer do cenário.”

Quando já se sabe tudo...
“Giotto deu-me os modelos formais directos, mas o sentido que dou a essas coisas é o dos maneiristas – é a ambiguidade.” O classicismo: “não me atrai a plenitude representação do mundo”.
.... já se pode destruir tudo.
Sem ser preciso pintar
“Comecei a desenhar só a preto, com grandes manchas. Havia um desenho inicial que se ia tapando. Alguns dos últimos ficaram todos negros. Não conseguia parar.”
“Agora quando traço um risco a lápis fico sempre parado antes de o encher de cor. Faço um quadro e queria deixá-lo assim despido de volume.” Em alguns desenhos que vai expor em Cascais há já um fundo empastado e pingado onde apenas se riscam as formas: “Como se fosse um traço que resolvesse tudo. Um risco seguro deixou ali uma forma e é aquela forma que é.”

Magnus Magister
A janela, com o Renascimento, tornou-se o lugar ideal para olhar o mundo. O antropocentrismo daria aos homens o orgulho de poderem criar uma obra igual à de Deus. Agora, pelo menos desde Kandinsky, o gesto fundador ocupa-se de outras tarefas; criar um mundo novo, não uma imitação. E a janela passou do ecrã para o cinema, agora de vídeo, onde tudo se pode ir construindo isolando as peças – sem céu, sem terra, sem fundo.

Absorvido pelo écran
“Criar uma sala de pintura, não um sala pintada. Conseguir entrar num outro mundo como numa sala de cinema em que só houvesse écran, como quando se desce a montanha russa – ser sugado pelo quadro. Quando pinto já estou a um metro do quadro. Faço-o e vejo-o muito perto porque o branco da parede me ofende.” Em 1982 na Diferença, com Ana Léon, enchera chão, paredes e tecto de Azul Vermelho. “Aí era mais o lúdico, aqui é o reflexivo, é o silêncio – tem a ver com o meu estar calado.”
“Estamos portanto a ver porque é que eu pinto.”
“Para criar uma outra situação onde eu possa viver – não exterior às pinturas. A atitude renascentista era de prova, eu não quero provar nada, quero ser absorvido por esse novo mundo que provoco. Já falei nisso.”
“(...) como no mundo inteiro não pode encontrar-se ninguém melhor que o mestre Giotto di Bondone este será chamado na sua cidade de Magnus Magister e publicamente reconhecido como tal.” – Resolução do Conselho da cidade de Florença no ano de 1334.

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Alexandre Melo, João Pinharanda, “Pedro Calapez as verdades do espaço de cena”. in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 22/5/1984.

A CASA DA PAIXÃO E DO CONHECIMENTO



Pedro Cabrita Reis
1991

Pedro Cabrita Reis. A casa da paixão e do pensamento.1990


O trabalho de Pedro Cabrita Reis tem-se progressivamente revelado e confirmado, ao longo de dez anos, como um trabalho de síntese de tensões contraditórias e complementares. Entre a intimidade subjectiva e a dimensão metafórica.

Por redução ao essencial designamos uma lógica de concentração dos efeitos, por oposição a uma lógica de multiplicação e dispersão dos efeitos. Seja em termos formais ou visuais, seja em termos simbólicos ou de significado, as obras de Cabrita Reis operam uma convergência de todos os elementos numa totalidade eficaz. Uma imposição categórica da força da presença da obra.

A vocação monumental consiste na capacidade dos trabalhos de Cabrita Reis para marcarem e sobredeterminarem de um modo global a totalidade do espaço em que se apresentam. Esta capacidade pode traduzir-se na efectiva realização de construções monumentais ou grandes instalações. Mas também pode manifestar-se na pura e simples presença de uma pintura muito escura em que a custo se distingue uma figura ou forma.

Quando falamos de intimidade subjectiva convém deixar bem claro que não se trata nem de um pendor narrativo autobiográfico, nem de expressionismo psicológico, nem de uma valorização particular de referências literárias de índole sentimental. O que chamamos intimidade subjectiva corresponde ao facto de qualquer peça de Cabrita Reis manifestar de modo inequívoco a marca da presença e do trabalho de um ser humano. Mais exactamente de um artista, um autor, o autor.

Independentemente de serem mais ou menos espectaculares, mais ou menos depuradas, todas as peças de Cabrita Reis deixam pressentir a matéria do corpo que deu forma à construção. Elas são a consequência da intervenção da mão do homem. São o rasto da passagem da “mão do artista”. A referência à “mão do artista” não remete aqui para qualquer talento técnico único nem para qualquer alquimia transcendente. É a eficácia concreta da presença de cada peça que nos força a invocar um universo de afectos pessoais que no entanto permanecem privados, fechados, secretos, apenas pressentidos.

A dimensão metafórica é talvez o aspecto mais evidente do trabalho de Cabrita Reis e reflecte o seu poder de convocação dos grandes temas e valores sociológicos ou metafísicos. Falamos de dimensão metafórica porque esta convocação é feita de forma alusiva, indirecta, ambígua. Não se trata de ilustrar narrativas místicas, análises sociológicas ou doutrinas ideológicas. Trata-se de criar um contexto material de emergência de significados que dizem respeito a valores fulcrais da existência: as origens primordiais, as energias vitais, os fins últimos.

Cabrita Reis não pode ser definido pela prática de uma disciplina específica – pintura, escultura ou instalação – ou por constantes da aparência formal das suas obras. Pelo contrário, a sua atitude de artista só se pode entender se for situada precisamente ao nível dos valores que a estruturam enquanto atitude.

Na pintura ou desenho, na escultura ou instalação, na representação ou figuração, nas referências abstractas ou geométricas, manifesta-se a mesma deliberação no sentido de eleger e impor as formas primordiais, os modelos arquetípicos. A caça, o mensageiro, a árvore, a cruz, a casa, a mesa, o poço, o canal, participam de uma mesma dinâmica de invocação, reactualização e reinstauração de valores originários. O princípio e o sempre. A simples enumeração dos títulos de algumas das suas exposições mais antigas pode ajudar a circunscrever este universo de referência. “Cenas de caça e da guerra” (1983), “Os discretos mensageiros” (1984), “De um santuário e certos lugares” (1985), “Da ordem e do caos” (1986), “Anima et macula” (1987), “A sombra na água” (1988), “Melancolia” (1989). O que chamamos redução ao essencial não é, em rigor, uma redução. Não se trata de uma estilização ou de uma promoção da evidência de uma forma dada. Trata-se, em cada caso, de, a partir da referência a um valor fundador, manifestar, através da presença concreta da obra, um processo de construção e localização – no plano material e no plano da significação. Um processo específico, no sentido de ser o portador da autoridade de um autor. Um processo aberto, no sentido de se propor a celebração do seu confronto com o observador. Um processo que remete para uma vocação monumental, que nalguns momentos se afirmou pela encenação do excesso e hoje se afirma numa dimensão de maior austeridade e silêncio.

Os trabalhos realizados por Cabrita Reis ao longo dos dois últimos anos, apresentam um conjunto de características suficientemente próximas e peculiares para que se justifique tratá-los como uma série. Uma primeira aproximação a este grupo de trabalhos pode consistir na enumeração de alguns dos seus títulos que para além do seu valor próprio em relação a cada peça ajudam a delinear a atmosfera geral do conjunto.
Casa da serenidade (Gal. Pedro Oliveira), Casa da pobreza (Gal. Cómicos), Casa do esquecimento (Gal. Pedro Oliveira), Casa da família (Centre Sta. Mónica, Barcelona), Casa da sombra, Casa dos sussurros, Casa do silêncio branco, Casa do sono, Soledad / sequedad para António Machado (Fund. Luís Cernuda, Sevilha), Casa dos suaves odores (Gal. Cómicos, Lisboa), Alexandria (Convento S. Francisco, Beja). Todas estas esculturas ou esculturas / instalações se caracterizam formalmente pelo uso de madeira e gesso – materiais rudes, pobres – pelo predomínio absoluto da cor branca e pelo seu carácter  de construções. Por vezes construídas em função de uma localização específica. O alfabeto formal é reduzido ao essencial: plano, linha, quadrado, circunferência; cubo, cilindro, paralelepípedo; formas abertas, formas fechadas.

As referencias são arquétipos da arquitectura ou, mais genericamente da experiência humana de ocupação do espaço. A casa, o banco, a lareira, a mesa. O poço, a cisterna, a fonte, o tanque, os canais, isto é as formas que originam e guardam, conduzem e oferecem a água.

Os materiais utilizados, essencialmente madeira, gesso e cobre, remetem-nos para os materiais das construções mais artesanais e mais rudimentares. Afastam-se dos processos da construção industrial e dos efeitos do progresso tecnológico e instauram um modo de construção mais próximo dos valores dos modos de construção primitivos.

Encontramos a memoria de uma relação próxima e directa com a natureza e com a paisagem. Mais concretamente nalguns trabalhos é possível encontrar o eco das paisagens, dos campos e da arquitectura do sul ibérico (Alentejo, Andaluzia). A memória dos modos ancestrais como os homens se relacionaram com a natureza. Por exemplo para dela recolher conduzir e conservar a água, elemento vital por excelência. Citemos o trabalho Alexandria, construído em Beja, em torno de um poço, no claustro de um convento em ruínas. Ou a instalação “Silencia e vertigem”, em Coimbra, em que a própria água servia de fundo à intervenção do autor. Em termos mais genéricos refiram-se as relações que podem ser estabelecidas com os canais de irrigação característicos da agricultura e da paisagem das planícies do Sul.
Encontramos igualmente a memória de formais artesanais de construção da habitação. As casas pobres, precárias, feitas à mão, que ainda hoje se podem encontrar em aldeias de camponeses ou nas periferias urbanas. Construções que decorrem de um trabalho manual directamente exercício sobre os materiais e que conservam a marca da mão humana. Construções que têm ao mesmo tempo a precariedade e a intensidade, as imperfeições e a clareza, de uma presença íntima.
Procurando sistematizar o conjunto da referências detectáveis nestas séries de trabalhos de Cabrita Reis poderíamos identificar dois pólos fundamentais: a casa e a fonte. Ambas são tratadas como centros originários de energias que depois se distribuem através de uma rede de canais de circulação reflecte-se na própria estrutura frontal de muitas das peças.

“Casas da pobreza” toma a forma de um banco estreitamente fechado à volta de uma mesa. “Casa da família” evoca o cadeiral que correndo à volta das quatro paredes de uma sala circunscreve o centro abstracto da casa e constitui o local de reunião em que se tomam as decisões fundamentais.

A casa organiza uma série de elementos que remetem para os modos de ocupação humana do espaço inferior, da habitação. É o espaço privilegiado de concentração e circulação de afectos, um espaço de comunhão e recolhimento. Por isso são valorizadas a mesa, à volta da qual a família se reúne para comer, ou a lareira, fonte de calor e centro simbólico do lar. Veja-se a representação explícita de uma lareira em “Casa do esquecimento” ou o modo como a instalação construída para a exposição Pontom/Temse (casa de Fontaynstraat) numa sala em ruínas se organiza em torno do que teria sido o lugar da lareira. Ainda relativamente às peças de referência interior vale a pena referir a inclusão nalgumas das primeiras nalgumas das primeiras peças da série de elementos de pontuação – que entretanto desapareceram em favor de uma maior austeridade – e que reforçavam a carga alusiva. Um jarro de água ou um jarro de azeite denotavam a referência ao elemento líquido e conotavam explicitamente valores de pureza e de comunhão quase religiosa. Na instalação “Casa da serenidade” um fio de prumo suspenso remete-nos para uma ideia de ponderação de equilíbrios ou aferição de energias.

A ideia de fonte serva para reunir obras cujo elemento central é uma fonte ou reservatório de água ou outro tipo de energias. São obras que remetem para formas de transformação humana do espaço exterior e de aproveitamento das energias naturais. A referência directa à fonte surge-nos nas gárgulas de “Casa dos suaves odores” ou na instalação “Silêncio e vertigem” em que a própria água está presente. Outras modalidade de abordagem ao tema surgem com o poço de “Alexandria” ou com os tanques, reservatórios ou cisternas, cilíndricos ou paralelepipédicos, abertos ou fechados, que de diferentes formas aparecem em inúmeras peças desta série. Veja-se por exemplo a exposição “A casa da ordem interior” (Gal. Joost Declercq) ou “Berlin piece”.

A referência fundamental é a água e as construções que a recolhem e guardam. Nada impede, porém, sobretudo em trabalhos mais recentes, que a noção de fonte se possa alargar a outras formas de energia e que se possa falar da fonte como fonte energia, em sentido amplo. As construções cilíndricas – por exemplo as de “Ut cognoscantte” – podem ser comparadas com reservatórios de água mas também de gás. Os tubos de borracha e o tipo de redes de comunicação utilizados em trabalhos como “Ascensão” remetem para uma noção geral e circulação de energia que não tem que ser reduzida à referência directa à água. A água surge como metáfora maior da vida e da comunicação, mas num contexto em que o fundamental e a noção de construção de uma rede de canais de circulação e comunicação de energias.

O trabalho de Pedro Cabrita Reis pode ser visto como um trabalho de construção de formas através das quais se possa tornar sensível e inteligível aquilo que corre através das coisas. A energia cuja passagem faz a diferença entre a vida e a morte. Aquilo que dá sentido. Nesta medida a água pode tornar-se, por exemplo, o equivalente da palavra, enquanto valor instituinte que, através da sua passagem a comunicação – faz nascer o sentido. Daí a referência à biblioteca de Alexandria. Ou então a água, enquanto exemplo de energia ou metáfora do significado, e as próprias formas físicas de energia poderiam no limite ser vistas como metáforas da própria arte. Então, de acordo com as teses românticas, os objectos artísticos não seriam a “arte” mas apenas lugares por onde a “arte” poderia passar.

O trabalho de Pedro Cabrita Reis torna-se assim também conceptualmente exemplar do entendimento que o autor tem da própria condição e natureza do objecto artístico e do trabalho do artista. O objecto artístico é aquele que origina, guarda ou faz passar um sentido que não é fixável, imobilizável, antes decorrendo da experiência do observador que com ele se confronta.

Deparamo-nos com o artista como autor de construções elementares que são instâncias da mais familiar intimidade, e também do maior fôlego metafórico. Deparamo-nos com o artista como autor de construções elementares que são instâncias da mais familiar intimidade, e também do maior fôlego metafórico. Deparamo-nos com a hipótese romântica de definição da condição artística, apresentada não como demonstração exibicionista de uma tese, mas como problematização radical, da raiz, da condição contemporânea do artistas.

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Alexandre Melo, “A casa da paixão e do conhecimento”, in Artscribe, Londres, Maio/Junho, 1991

GEOGRAFIA DA INDIVIDUALIDADE




Pedro Cabrita Reis
1988


Pedro Cabrita Reis. Magnificant, 1988 / Cocteau, 1988


Podemos começar por enumerar os materiais presentes: ferro, mogno, vidro, espelho, chumbo, objectos encontrados, feltro, veludo, cabedal, papel, tinta. E enunciar algumas das palavras que emergem destes trabalhos ou que neles estão inscritas: “obscurecer”, “exultar”, “amor”, “magnificant”, “atrocidade”, “anunciação”, “tristesse”. Vejamos a seguir a diversidade das formas sob as quais estes elementos se apresentam, metódica e rigorosamente organizados por camadas de tinta e pela cadência regular da pincelada. Esculturas de parede em que os objectos e palavras são elevados ao estatuto de ícones: complexas esculturas em que todos os elementos nos aparecem combinados mas sujeitos a uma ordem de aparência clássica.
Submetidas a uma análise formal, estas peças podem surgir como resultado de um jogo de contrastes, evidentemente premeditado: horizontal / vertical, curvo / recto, transparente / opaco, duro / suave, brilhante / baço. Outro tipo de exame, necessariamente num plano de maior abstracção, pode revelar-nos a tensão entre uma conceptualidade ambiciosa e o generoso prazer dos materiais – ou entre a sedução de uma opulência física e a austeridade de uma vocação secreta. 
As peças de Cabrita Reis produzem como que um efeito de “sofisticação” visual; mas o que de facto encenam é uma progressiva densidade analítica. Um exemplo possível: a placa de chumbo que tem gravado o nome da exposição – “A sombra na água” – e que poderemos entender como metáfora mais global e mais complexa: o que está em causa não é a evidência de um objecto, não é o espectáculo da sua imagem. O que está em causa é a relação entre um corpo que se retira (para dar lugar à sua sombra) e o devir sempre permanente de um espaço de profundidade (a água). Essa tensão induz no espectador uma atitude interrogativa que o aproxima de cada uma das peças como se nesse movimento se defrontasse com uma inevitável obscuridade ou, para sermos mais explícitos, como se essa aproximação o conduzisse a uma fonte de conhecimento imediatamente pressentida e contudo obscura na sua evidência.
O exercício de inteligência não toma a forma da evidência do saber. A inteligência de cada peça consiste na assumpção do seu processo criativo como um acto de querer saber.
Outro exemplo a acrescentar: uma mesa de tampo de vidro. Sobre esse tampo, deitados, três cilindros de metal, sobre os quais se apoiam três placas de vidro. Na parede, numa relação de perpendicularidade com a mesa, um rectângulo de veludo preto. O mesmo jogo de contrastes. O título é “Cocteau”. A inteligência como adensamento do mistério: uma definição provável de complexidade da qual decorre o acto de criação artística. Olhar para “Cocteau” e ter saudades de Radiguet.
Voltando ao chumbo: uma placa escondida atrás de uma parede, onde estão gravadas as palavras Marcel (Duchamp), Joseph (Beuys), Francis (Picabia). A possibilidade de uma memoria nesta exposição, e assim discretamente revelada, explícita, sem fazer disso uma declaração óbvia, a recusa da inocência à critica.
Na obra de Cabrita Reis somos confrontados com a emergência de um sentido de mistério. Tudo nos parece surgir com uma excessiva “luminosidade”, com uma irrepreensível “clareza”, com uma obsessiva devolução da “imagem” (os brilhos, a transparência e a profundidade da pintura, os reflexos dos vidros e dos espelhos, as superfícies voluptuosas, o chumbo, a madeira, o veludo, o ferro). Algo nos faz pensar que estamos a ver mais do que nos é dado observar. Mas, contudo, é precisamente este “falso” oferecimento ao olhar que produz a presença de um conceito do enigma, como sentido organizador da criação, como possibilidade para uma vocação de conhecimento.
Estranheza, mistério, subjectividade, organizam a intricada rede de indícios que, lateralmente – por relação à evidência da obra – nos conduzem para uma rigorosa geografia da individualidade. 

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Alexandre Melo, “Geografia da Individualidade”, in Expresso, Lisboa 7/5/1988. 

"... E O RITMO É DE BOI!"




Festival de Parintins na Amazónia Bruno Domingos/Reuters
A propósito dos modos como passamos o tempo ou o tempo passa (marcar o ritmo) resolvi falar da mais apaixonante experiência cultural que vivi no último ano: o Festival Folclórico de Parintins, uma ilha com 100.000 habitantes (recebe cerca de 50.000 visitantes durante o festival) no grande estado do Amazonas, no Brasil.

Iniciado (com formato que se foi alterando) em 1965, o festival realiza-se agora todos os anos no último fim-de-semana de Junho. Numa arena desenhada em forma de cabeça de boi, chamada Bumbódromo, em três noites consecutivas, as agremiações representativas do Boi Caprichoso e do Boi Garantido apresentam, cada uma, três espectáculos inéditos, cada um com duas horas de duração. A exibição reúne música (“Boi” também é uma forma musical), dança, canções, declamações e uma sofisticada cenografia composta por dezenas de “alegorias” — engenhosas construções cénicas animadas por uma multiplicidade de “efeitos especiais”. O espectáculo não envolve nenhum boi, animal vivo. No final das três noites um júri (sempre acusado, por certo justamente, de corrupção) atribui a vitória a um dos bois.

A origem da celebração é descrita de várias formas : festividade de origem religiosa oriunda do Nordeste; fábula mágica sobre a morte e ressurreição de um boi e a salvação de uma comunidade; criação, no início do século XX,  de dois pequenos bois, brinquedos artesanais, por duas crianças que se tornaram figuras de referência local. As descrições disponíveis são intermináveis e contraditórias. Hoje em dia, o elemento mais forte é a  valorização das especificidades culturais da Amazónia, “aldeia mística”.  

Importa o que permanece: a alegria de “brincar de Boi” e a rivalidade entre os Bois.  

O espectáculo oferecido pelos Bois-Bumbá reúne, de forma original, as características de três empolgantes experiências culturais: a ópera, o futebol e o Carnaval.

Ao falar de ópera recordo aproximações a encenações barrocas e, sobretudo, a experiência do “Ring” de Wagner, em particular quando se assiste às quatro óperas em sequência num curto período de tempo. Retenho, em comum, o império do ritmo, o arrebatamento da voz e o poder de atracção visual das cenografias. Sem sequer especular sobre convergências nos modos de combinação entre figuras reais e sobrenaturais, psicologias humanas e destinos transcendentais, deuses, heróis, feiticeiros, gigantes, mártires e meros humanos. Não sei quase nada sobre ópera mas ouso dizer que gosto de ver e ouvir Bryn Terfel (o meu Wotan). Já no caso do Boi, não hesito em enaltecer a voz de David Assayag, actual “levantador de toadas” (cantor) do Boi Caprichoso e, por certo, uma das mais belas vozes vivas no mundo.

Enfim, paixão. Com a vantagem de a música ser, por definição, uma coisa incompreensível, o que significa que pode (não) ser compreendida por todos.  

O tópico da rivalidade conduz-nos ao futebol. A rivalidade entre os dois bois é tal que a pequena ilha de Parintins está, para quase todos os efeitos práticos, dividida em duas partes, em que imperam de um lado a cor azul e do outro a cor vermelha. É o único local do mundo onde a Coca-Cola é vendida em latas não apenas vermelhas mas também azuis. O Bumbódromo está dividido ao meio, ficando de um lado a “galera” do Caprichoso e do outro a “galera” do Garantido. Não se pode (mesmo) estar no meio de uma “galera” vestido com a cor do “Boi contrário”. Durante a exibição do seu Boi o respectivo público (também sujeito a pontuação, pois faz parte da apresentação) actua, acompanhando o espectáculo (de forma ainda mais intensa que o público do futebol, mesmo se considerarmos o público do Liverpool nas suas melhores tardes), enquanto a outra metade da bancada permanece em silêncio e sem iluminação. Contam-se histórias de prefeitos que mandaram alterar as cores nos semáforos e nas passadeiras para peões de acordo com as cores dos seus bois. A natureza lúdica do espectáculo não exclui uma radical rivalidade com elaboradas implicações políticas e financeiras.   

Para ilustrar a dimensão dramática (“operática”) do futebol em geral bastará recordar a saga do Brasil na Copa 2014: desde o atentado colombiano (talvez encomendado pelos argentinos) contra Neymar até ao desfecho “trágico”(1-7).

Enfim, paixão. Com a vantagem de o prazer do jogo (combate) e o desejo de vitória serem sentimentos tão pouco nobres quanto partilháveis por toda a espécie humana.

Aqui chegados, a evocação do Carnaval já deve parecer óbvia, mas importa esclarecer que a principal referência, apesar das semelhanças formais, não é o Carnaval do Rio (que de resto contrata em Parintins muitos dos seus melhores colaboradores cenográficos), um espectáculo relativamente convencional.

Invoco o Carnaval de rua, tomando como exemplo o Carnaval de Salvador, que permite uma participação intensa e abrangente e uma interpenetração fluida entre performers, participantes e espectadores. Carlinhos Brown é famoso (entre outras coisas, por exemplo, o cabelo) por “puxar” o “trio” no chão, no “arrastão” da manhã de Quarta-feira de Cinzas.

 Há diferenças entre ir em cima do “trio eléctrico”, assistir “de” camarote,  ir “dentro” da “corda” (que delimita o espaço de quem pagou para estar junto ao “trio”) ou ir na “pipoca” (fora da “corda”), mas não há como excluir quem quer que seja. Não pode ser proibido estar na rua. As ruas ficam fisicamente cheias.

Enfim, paixão. Com a vantagem de toda a população estar, por definição, convidada e convocada.

Há outra nuance.

No Carnaval do Rio existe um júri que, este ano (obra-prima de ironia e verdadeiro hino à corrupção), resolveu distinguir uma escola que homenageou (a troco de dinheiro, segundo alguns rumores) a Guiné Equatorial, prestigiado bastião da “lusofonia”.

Em Salvador não há um júri mas um método difuso de sondagem que faz emergir, como que por consenso, a música do Carnaval. Não se sabe bem porquê mas toda a gente vai percebendo, ao longo do Carnaval, qual vai ser a música do Carnaval, que acaba por ir sendo cantada por múltiplos intérpretes. Este ano, Márcio Victor (líder da banda Psirico) ganhou com Tem Xenhenhem. Já tinha ganho o ano passado com o inesquecível Lepo Lepo e, em 2008, com Mulher Brasileira (Toda Boa). O ritmo é mais ou menos sempre o mesmo (o melhor do “Pagode”), tal como o assunto (de inspiração, por assim dizer, “neo-pós-feminista” ou “neo-queer”), mas também não há assim muitos assuntos susceptíveis de interessar (quase) todas as pessoas.

Mais aliciante, do ponto de vista sociológico, o segundo lugar alcançado este ano por Igor Kannario, que só à última hora foi autorizado a desfilar, devido à sua alegada relação com pessoas envolvidas em práticas ilegais (e que não são nem políticos nem líderes de grandes empresas ). Os refrões dos seus maiores sucessos são lapidares : “Eu não sou de baixar a cabeça para ninguém” e “Tudo nosso nada deles”, que até o prefeito ACM Neto acabou por ter de trautear em cima de um “trio” em directo para a televisão.

Igor Kannario, o “Príncipe do Gueto”, foi seguido, sem “corda”, pela maior multidão do Carnaval de Salvador 2015: a maioria, como não poderia deixar de ser, veio do Bairro, como não poderia deixar de ser, da Liberdade.

“É nois !”.

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Alexandre Melo, "...E o Ritmo é de Boi!", in Jornal Público, edição especial "25 Dar Tempo ao Tempo", 5 de Março de 2015. 

O QUADRADO DE OURO



Pedro Cabrita Reis
1987



Da ordem e do caos, 1986. 100 x 210 cm



A expressão “quadrado de ouro”, que se exibe em título a este comentário à obra de Cabrita Reis, não pretende insinuar, para o seu trabalho, nem uma devoção doutrinal mística, nem uma vocação ficcional narrativa. Excluídos estes dois pontos de fuga, correntes na produção artística contemporânea, o “quadrado de ouro”, designa: por um lado, a dimensão emblemática e ritualizante dos trabalhos de Cabrita Reis; por outro lado, as duas lógicas contraditórias – uma analítica, outra pulsional – que movem a sua obra e que, na sempre provisória resolução, em cada peça da sua contradição, fazem a tensão interna do processo criativo. Assinalam o lugar estratégico do local de Cabrita Reis no terreno do confronto das tendências plásticas contemporâneas.

Uma lógica analítica.
O quadrado evoca, na sua evidência geométrica, uma lógica analítica que se manifesta de duas formas.
Em primeiro lugar numa complexa conceptualização prévia de cada trabalho ou exposição que se traduzem: por um lado, numa recorrência de estruturas e motivos formais, constatável em diferentes trabalhos de uma mesma fase ou mesmo diferentes fases; por outro lado, num poderoso e envolvente efeito espectacular de instalação que tende, em limite, a transformar as exposições numa ocupação integral do espaço. Em segundo lugar, e ainda mais evidentemente o quadrado, como figura geométrica elementar, aponta aqui uma tendência obsessiva do artista para cristalizar a referência aos universos temáticos e formais a que se reporta, em torno da representação dos seus símbolos mais depurados – linhas quebradas, escadas, redes espirais, labirintos, cruzes, manchas e transparências orgânicas, outras formas geométricas e ortogonais. No mesmo sentido se dirige a tendência que, na continuidade da sua obra, se vem desenhando para convocar elementos cada vez mais simples, cada vez mais únicos, cada vez mais geométricos.
Um sentido global de depuração está igualmente patente na austeridade das cores predominantes utilizadas – negros, terras, óxidos, cinzas, castanhos – e na gestão dos efeitos de luz e brilho. Mais do que a cor em si própria, valoriza-se a degradação, o desgaste, a erosão, como que provocados pela passagem do tempo.
Vemos assim que o que designámos por lógica analítica recobre um trânsito de simultânea permanência e reabilitação de uma postura conceptual, por um lado, e de um escrúpulo geométrico tendencialmente minimalista, por outro.
Esta lógica, detectável em muitas evoluções actuais, sempre conviveu em Cabrita Reis com uma lógica oposta pulsional, que a potenciou e abriu a situações de maior complexidade e originalidade. É a essa outra lógica, de excesso e teatralidade, que nos reportaremos ao fazer referência ao ouro.

Uma erosão pulsional.
O ouro assinala, por referência directa a uma das cores mais utilizadas por Cabrita Reis – geralmente contraposto ao negro – e por alusão bastante óbvia, um sentido de exuberância, do excesso e do espectáculo que geralmente se associam ao barroco.
Se estes são sentidos pertinentes para a evocação do ouro, a sua profunda razão de ser no contexto deste comentário é, porém, de natureza metafórica, e remete para níveis menos aparentes e superficiais.
O ouro, em sentido metafórico, é aqui evocado em duas direcções. Por um lado, como o mais precioso dos metais preciosos, que o trabalho da mão humana conseguiu arrancar à terra, constituído assim uma evocação das origens. Por outro lado, material mítico em que se consubstanciam as utopias teleológicas – “A Idade do Ouro” – evocação dos fins. Estas duas acepções correspondem a características marcantes do trabalho de Cabrita Reis:
- A ancoragem em valores míticos, situações vitais e elementos materiais de natureza primordial e ancestral;
- A valorização da energia e fulgor físico dados ao processo de construção material de cada obra;
- A irreprimível aspiração a um absoluto e a uma totalidade utópicos que sistematicamente o artista implica na sua atitude e nos seus trabalhos.
A ancestralidade e a primordialidade estão patentes que nas fixações temáticas de anteriores trabalhos quer no tipo de materiais utilizados e na forma da sua utilização.
Os trabalhos anteriores centram-se insistentemente nos temas da guerra – “Cenas da Caça e da Guerra” (Galeria Diferença, Lisboa, 1983), acções e territórios de combate, heróis, troféus – e nos temas de religião, em sentido lato – “Os discretos Mensageiros” (Galeria Cómicos, Lisboa, 1984), “A Anunciação” (Galeria Cómicos, ARCO 85, Madrid), “De um santuário e certos lugares...” (Galeria “JN”, Porto, 1985), a obsessão da morte, túmulos, altares, objectos rituais, de culto.
Quanto aos materiais e modo de execução, assistimos a um progressivo adensamento, desde os tradicionais papel ou tela, utilizados no princípio da década, até à diversidade actual: peles, folha de ouro, barro, madeira, ardósia, metal, vidro. Um processo em que tiveram importância decisiva a madeira, as grandes massas de tinta, utilizadas como suporte de devastadoras intervenções – perfuração, colagem, “assemblage”, pintura – de que acabavam por resultar verdadeiros relevos murais, entendíveis como instalação. Frequentemente, aliás, a experiência da tridimensionalidade e da manipulação dos destroços de materiais foi levada até à construção de esculturas propriamente ditas.
Na evolução desde uma pintura plana até à agitação de objectos literalmente impostos ou arrancados ao primitivo suporte, fica implícito um tipo de execução que, na sua fisicidade, dá conta da diferença, qualitativa que se manifesta, para cada peça, entre a conceptualização prévia e o resultado final. E é essa diferença que instaura a dimensão utópica do trabalho de Cabrita Reis.

Epílogo
O ponto de partida é, como vimos, o de uma lógica analítica, conceptual. Mas essa lógica não se subordina nem se limita ao exercício de uma posição teoricamente elaborada, seja ela minimalista ou outra. Cabrita Reis investe no próprio acto de fazer, no excesso nele inscrito, na vocação espectacular por ele desencadeada, com a convicção dum resultado final – a obra – em que a evidência de uma autoria iniludível venha dotar de uma totalidade utópica o rigor do projecto.
“Da ordem e do caos” (Galeria Cómicos, Lisboa, 1986), “Anima et macula” (Cintrik Gallery, Antuérpia, 1987), títulos das suas duas últimas exposições individuais, dão conta, com exactidão, da convivência dos dois pólos contraditórios que, no seu conflito, definem uma tensão criativa original.

O rigor do conceito obriga-se a passar pelo arrebatamento do fazer para que o absoluto a atingir, a totalidade, jamais deixe de se constituir em espectáculo necessário e evidentemente assinado.

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Alexandre Melo, “O quadrado de ouro”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 3/8/1987