DEPOIS DA FESTA




João Pedro Vale. Foi Bonita a Festa, pá! 2006.




A mais recentre escultura de grandes dimensões de João Pedro Vale foi elaborada a partir de uma jangada trazida do Noroeste do Brasil para ser transformada e exibida na Galeria Leme em São Paulo. A circunstância torna-se significativa devido à peculiar história das relações entre Portugal e Brasil. A circunstância espacial particular desta apresentação deve ainda ser sublinhada devido à admirável concepção arquitectónica da galeria da autoria de Paulo Mendes da Rocha (Prémio Pritzker deste ano) que criou uma nave longa, estreita e muito alta que parece fazer apelo à passagem de um barco.

A obra de Vale põe me jogo a relação entre Portugal e Brasil, no quadro da revisão multiculturalista do colonialismo e de uma problematização da relação entre práticas culturais populares e eruditas. Esta escultura surge na sequência de outras obras do autor alusivas às viagens marítimas tendo como referência barcos (Bonfim e Barco Negro, 2004) e um farol (Heróis do Mar, 2004).

Vejamos quais as metamorfoses e deslocações a que Vale submete esta jangada (em vez de uma caravela) com a qual, como português, «chega» hoje ao Brasil. Em primeiro lugar a cor. Todo o barco é pintado de vermelho gerando o máximo contraste com os castanhos e amarelos dourados dos adornos: garrafas vazias de cerveja e respectivas tampas. O vermelho e dourado remetem, antes de mais, para uma teatralidade católica e barroca que é marca do legado português no Brasil. A inspiração mais directa vem do Coche dos Oceanos que fez para da embaixada, custeada pelo ouro do Brasil, enviada em 1716 pelo Rei D. João V ao Papa Clemente XI: um coche todo em talha dourada e veludo vermelho do qual, ao passar, eram distribuídas moedas de ouro pelo povo. As mesmas cores remetem para as bandeiras vermelhas que, em Portugal, tiveram grande protagonismo durante a revolução de 1974, que gerou uma grande empatia entre artistas portugueses e brasileiros, ambos submetidos a longos períodos de ditadura.

A peça chama-se Foi Bonita a Festa, Pá, verso de uma canção então censurada no Brasil, do cantor brasileiro Chico Buarque, dedicada à revolução portuguesa. A «Revolução dos Cravos» é ainda assinalada por um arco de cravos vermelhos que se estende ao longo do barco, ao jeito dos arcos que decoram os terreiros de festas populares. A marca das formas de convívio e diversão popular tem a sua expressão mais conseguida no uso, como se fossem decorativas jóias douradas (as moedas de ouro dos pobres), das tampas das garrafas de cerveja Sagres, tradicionalmente usadas também nas brincadeiras de crianças. Garrafas vazias são usadas em cachos distribuídos pelo barco, sugerindo bóias ou a sensação de flutuação inerente ao tempo «depois da festa». Não devemos esquecer que Sagres é o lugar onde terá existido uma escola de navegação que esteve na origem da viagens marítimas e o nome do navio-escola da armada portuguesa.

O jogo entre os materiais «pobres» e os efeitos «ricos» de cor e luz, fazendo eco ao jogo entre luxo e o kitsch, é outra das formas tomadas pelo jogo dialéctico de contradições que estruturam esta escultura e, de resto, o conjunto da obra do autor.

O mesmo tipo de deslocações formais e simbólicas realizadas a partir de objectos relacionados com a expansão colonial está patente num conjunto de 13 esculturas de menores dimensões apresentadas na galeria Layr: Wuestenhagen, em Viena. As referências são objectos da colecção do Imperador Maximiliano II, hoje guardados no Kunstkammer do Kunsthistorisches Museum de Viena. Produto da curiosidade antropológica e das fantasias associadas à exploração colonial, estes objectos pretendiam ilustrar o exotismo de paragens distantes. Portugal foi um dos principais fornecedores devido à presença em Lisboa da Rainha Catarina de Áustria e à acção de um «dealer»/«advisor» que funcionava como espião do Imperador. Para alimentar uma procura crescente os fornecedores inventaram seres estranhos como o unicórnio (cujo adorno era afinal um bico de Narval) ou o «homem silvestre» (escravos africanos cobertos de pêlos de cabra para serem exibidos como raridades).

Esta invenção cruel serve de referência a uma das peças mais conseguidas da exposição: Ecce Homo. A forma de uma taça transforma-se num corpo exótico, metade tronco de cola termofusível, metade peruca afro-disco de Carnaval, que se equilibra sobre os cornos invertidos de um capacete viking de Carnaval, forrado de cabedal e tachas douradas, e uma ponta de chapéu de chuva. Um colar de pingentes de imitação de tartaruga e um penacho com penas de galo chinês completam o conjunto. Nesta exposição, a multiplicação das invenções formais e a combinação dos mais improváveis materiais geram uma irrisão do exotismo que é acompanhada de uma paródia às fantasias sexuais colonialistas com acentuado valor desmistificador.

No conjunto das suas peças mais recentes, Vale aprofunda um trabalho de citação e metamorfose de objectos pré-existentes através do recurso a materiais pobres e inusitados que sabotam a distinção entre o belo e o horrível, a humildade e a sofisticação. A valorização das formas populares de criatividade é posta ao serviço de uma análise das fantasias colonialistas em que desmitificação das ficções de dominação abre o caminho a uma pluralidade de possibilidades igualitárias de invenção híbrida de novos jogos plásticos e simbólicos.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa.



QUANDO VALE A LETRA Z?







Doglas Gordon e Philippe Parreno. Zidane, A Portrait of XXIst Century. 2006.




Uma atitude optimista assume que todos queremos a letra A, primeira e inaugural: «Top of the list, king of the hill / A number one» (New York, New York). Lembro-me de ouvir Laurie Anderson dizer que o problema era todos quererem ser 1 e ninguém querer ser o 0, o que, na melhor das hipóteses, é uma maneira tristonha de não dizer que o problema é haver quem não queira ser 1 e não se importe de ser 0. Mas isto é uma questão política.

Falei em A porque quero falar em Z. A última letra do alfabeto tem o acréscimo de potência que lhe advém de, sendo uma última oportunidade, concentrar a energia do ajuste de todas as contas que ficaram por fazer desde o já longínquo empalidecimento da auro do A.

Houve um tempo risonho em que as tardes de domingo da televisão eram animadas pelas proezas de Douglas Fairbanks, o senhor da espada que desenhou o mais belo Z da história do cinema e da Humanidade. Falo de The Mark of Zorro (1920) e Don Q, Son of Zorro (1925).

Doug é o modelo positivo do herói prometido à glória do século XX que então nascia em Hollywood: «Ninguém conseguiu retomar a frescura, o sentido de um perpétuo narcisismo, inocente e adolescente, que Douglas Fairbanks trouxe para os ecrãs» (Richard Schickel, His Picture in the Papers, Charterhouse, New York, 1973). Tudo era apenas alegria e «tudo era apenas a capacidade de usar o corpo inteiro para manifestar carácter, atitude e emoção» (Jeanine Basinger, Silent Stars, Knopf, New York, 1999).

Quase cem anos depois os artistas plásticos Douglas Gordon e Philippe Parreno realizaram sob o signo da letra Z um filme a que deram o subtítulo «A Portrait of the XXIst Century» (Um retrato do século XXI).

Vi pela primeira vez este filme em Maio em casa de Douglas Gordon em Nova Iorque. Conversámos e resolvi esperar para o ver ao vivo, em Junho, no magnífico estádio de futebol de Basel. Entretanto, fui ouvindo opiniões: em Cannes, Jean-Michel Frodon, director dos «Cahiers du Cinéma», dizia-me, sem má vontade, que o filme não se aguentava enquanto «cinema». Por fim tive ainda que esperar pela diluição dos efeitos do Mundial de Futebol, já que o Z deste filme é o Z de Zinédine Zidane.

Os autores filmaram com 17 câmaras (35mm, alta definição) o corpo de ZZ durante toda a sua prestação num jogo do Real Madrid realizado em Madrid a contar para o campeonato nacional de Espanha.

O filme é uma das primeiras obras-primas do novo século, fundamental para o questionamento do actual devir das práticas artísticas, e desloca a obra de Douglas Gordon para o mais elevado nível de ambição.
Registe-se o cruzamento entre a história da artes visuais e do cinema, entre as referências eruditas e o espectáculo popular de massas, entre registo documental e narrativo, entre filme e televisão. Note-se a experimentação técnica em termos de filmagem, montagem e banda sonora. As possibilidades de análise são imensas.

Começo pelo subtítulo que tem um duplo significado e permite colocar duas questões: como é que se pode, se é que se pode, fazer o retrato da realidade de hoje? Como é que se pode, se é que se pode, fazer, hoje, o retrato de alguém?

O filme coloca a hipótese de ser, ele próprio, um retrato do século XXI (intenção que se torna clara no uso do texto e nas imagens do intervalo) e leva-nos a perguntar se é possível produzir imagens eleitas capazes de elaborar um ponto de vista específico, autoral, sobre um mundo que é já ele próprio conjunto de imagens. (A mesma questão é colocada de uma outra maneira e com uma outra resposta, que analisaremos noutra ocasião, no admirável filme Diários da Bósnia, de Joaquim Sapinho.

O futebol faz aqui o papel de mundo: o real, como se costuma dizer. Para quem gosta de futebol este filme é a realização de um sonho que todos alimentamos sempre que vemos, ao vivo, um jogo de futebol. Vivos na moldura do estádio à volta do relvado não podemos ver, em rigor, nem rostos, nem sorrisos, nem suor nem quase gestos. Também não podemos ver o todo porque não há todo se não o que se dispersa pelos quatros cantos do horizonte onde as tentações do olhar nos fazem andar quase sempre um pouco atrasados atrás da bola, que afinal nem se vê bem se entra ou não entra. Um jogo de futebol ao vivo é menos uma experiência visual do que uma experiência sensorial e social total. Um jogo de futebol ao vivo é como a vida ao vivo. Nunca se pode ver nem perceber, rigorosamente, nem tudo nem nada.

Sentimos o que nos calha com o fulgor possível, pensamos um pouco e adaptamo-nos mais ou menos ao movimento dos corpos nos tempos que nos cabe.

O contrário destas impossibilidades (quem tem a sua positiva contrapartida de euforias comunitárias no que se passa a propósito do que se passa no relvado) seria uma experiência da omnividência que só as câmaras permitem simular. Este filme é uma concretização desta utopia disfórica através da focalização exclusiva do corpo de um jogador. O processo de selecção realizado através da filmagem e montagem produz um fio condutor: o corpo de Zidane, impossível herói de uma improvável narrativa.

Chegamos aqui à segunda questão: a possibilidade contemporânea do retrato, na acepção que a tradição artística lhe atribui de representação unívoca e pacífica de um sujeito que assim se consagra. Douglas Gordon escolhe o seu herói, como se impunha, num dos espectáculos que mais fascinam as multidões de hoje: o futebol.

Sobre a questão do herói, cito um breve texto inédito escrito por Douglas Gordon aquando da sua passagem por Lisboa, em Junho passado:
«Nothing existed before ‘Adam’ and nothing after. No future, no past, heroes where always what was needed ‘how’. Call Superman ‘now’. Not yesterday, too late. Not tomorrow, too need...». («Nada existiu antes de ‘Adão’ nem depois. Nem futuro, nem passado, heróis sempre foram o que foi necessário ‘agora’. Chamem o Super-homem ‘agora’. Não ontem, é demasiado tarde. Não amanhã, não será preciso...»).

Hoje, como o filme nos mostra, o retrato só pode ser um retrato em movimento, os pontos de vista têm de ser muitíssimos e o retratado está sempre no meio de uma parada de gentes e acontecimentos. O sujeito precisa de ser isolado, para que o retrato tenha sentido enquanto retrato, mas a operação faz o retrato perder o sentido que só o contexto lhe daria. O sentido do retrato de um ser individual acaba por ser a falta do que perder para poder ser retratado, isolado. Parece um paradoxo mas parece-se ainda mais com o estatuto contemporâneo da identidade individual.

A forma como Zidane é recortado e separado do contexto do jogo, cujas peripécias se tornam quase incompreensíveis, conjuga-se com o seu comportamento glacial, como que indiferentes ao que o rodeia, sem risos, lágrimas ou afeições comunicativas. Vendo-o arrastar as chuteiras no relvado, recordamos a figura radical e solitária do matador, sozinho em frente do touro ou, segundo alguns especialistas, da morte. Reparando na indiferença como que se afasta ou desvia o olhar do pólo de acção em que se decide o destino da jogado que ele próprio incitou, mas onde já não tem nada a fazer, lembramos o cowboy solitário que se afasta em direcção ao deserto abandonando a festa no povoado que ajudou a salvar. Imaginamos um herói trágico que vence batalhas mas não se consegue salvar. Fim do jogo. Fim de carreira. Fim. Eis o homem que perdeu. A conclusão deste filme, confirmada pela violência do gesto conclusivo da carreira de Zidane, desenha a terrível imagem de um anti-herói contemporâneo: um herói negativo para o século XXI.

Por esta razão e por todas as outras razões este texto é dedicado a Ronaldinho Gaúcho e às rulotes da Catedral.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa.


VOCÊS SABEM LÁ



Ang Lee. O Segredo de Brokeback Mountain. 2005.



Há pouco tempo vi na televisão um documentário realizado durante o Festival de Cinema de San Sebastian de 1972 em que se incluía uma rara entrevista com Howard Hawks. A entrevista tinha um lugar a bordo de um pequeno barco, as perguntas tinham a saudosa candura do cinema amador, e as respostas, como seria de esperar, tinham a grandiosa inocência do grande cinema.

Quando perguntaram a Hawks quais os filmes que mais tinha gostado de fazer, ele respondeu qualquer coisa como isto: «Os filmes que mais gostei de fazer: os ‘westerns’ com John Wayne. Eu só tinha de lhe explicar o que queria que ele fizesse. Ele fazia, e eu filmava».

Há alguns anos, uma perversa distância horária entre a aula da tarde e a aula da noite do meu horário de professor deixou-me o tempo exacto para, ao longo do semestre, ver – sempre na companhia de pipocas – uma série de filmes de uma hora de Lone Star Productions em que pude apreender a mais elementar gramática do «western» e apreciar o nascimento de John Wayne antes de ele se tornar o John Wayne histórico.

Nesses filmes preciosos, com títulos como Neath the Arizona Skies, Blue Steel ou Riders of Destiny, o jovem John Wayne dá o corpo a uma figuração masculina que veicula, dir-se-ia que com uma absoluta naturalidade, a imagem da pureza e inocência original do novo homem do novo Oeste, que é também, para o efeito, o novo Ocidente, ou, se quiserem, a nova Europa, isto é, a América. Claro que a naturalidade de que falo não é a da Natureza, que é tudo menos natural, mas sim a do cinema, que é a única natureza que nos foi dado produzir e, portanto, conhecer.

O corpo de John Wayne foi o portador de um olhar, um sorriso, uma pose que tinham ao mesmo tempo a evidência de uma encarnação do bem e de uma plena presença masculina («How many times do I gotta tell you, I don’t acta t all, I re-act»). A celebração desse John Wayne é feita de modo magistral pela escritora americana Joan Didion num texto comovente, intitulado «John Wayne: A Love Song» (1965), incluído no livro Slouching Towards Bethlehem, uma das obras máximas da autora. Didion conta como ficou para sempre à espera que um homem prometesse construir-lhe uma casa «at the bend in the river where the cottonwoods grow» e cita Raoul Walsh com a sintética eloquência que o caracteriza: «Dammit. The son of a bitch looked like a man».

Estavam criadas as bases para a construção da figura mítica que o cinema de Walsh, Ford e Hawks celebraram e consagraram: o «cowboy», uma das figuras mais fortes do imaginário cultural do século XX. Um estereótipo é antes de mais uma ideia de bem e um ideal de beleza modelados sob uma forma que permite gerar processos de identificação de massas. Um exemplo privilegiado da eficácia genérica da imagem do «cowboy» é a famosa campanha publicitária da Marlboro centrada na figura do «Marlboro Man». Através de anúncios cada vez mais depurados, em que foram deixando de existir quaisquer palavras ou mensagens explicitas, a Marlboro limitou-se a fazer deslizar o seu nome da marca para dentro de um universo que, através das mais simples imagens de paisagens e homens a cavalo, continha a vastidão de um mundo inteiro, o mundo do «cowboy».

São estas imagens da publicação da Marlboro que, nos anos 80, vão ser apropriadas por Richard Prince, um dos mais importantes artistas plásticos americanos do nosso tempo. O apropriacionismo é uma tendência da prática artística contemporânea que consiste em usar algo já existente, com alterações mínimas, mas apresentando-o de um modo diferente, num contexto diferente, abrindo assim um espaço de multiplicação, subversão ou inversão de sentidos.

«A imagem do ‘cowboy’ é tão familiar na iconologia americana que se tornou quase invisível devido à sua banalização. Ao mesmo tempo, o ‘cowboy’ é uma das mais sagradas e teatrais (‘masklike’) figuras culturais. No sentido cultural e geográfico, o ‘cowboy’ é uma imagem de ‘endurance’ e um símbolo, um estereótipo do cinema americano. É ao mesmo tempo o vagabundo (‘wanderer’) e o símbolo mítico da mobilidade social» (Rosetta Brooks, in Catálogo Richard Prince, Whitney Museum). Quando Prince reenquadra e refotografa as imagens dos anúncios da Marlboro e as apresenta no contexto do mundo da arte contemporânea, recria uma distância suplementar que permite um novo olhar. As imagens do mundo do «cowboy» são depois despidas de todas as suas especificações mais particulares, mais fechadas ou mais vinculadas e deslocadas para um terreno de indeterminação dos sentidos que abre, por um lado, para a nostalgia dos desejos de pureza original e, por outro, para todas as possibilidades de novas conexões e conotações.

Pensa-se por vezes que um estereótipo é uma entidade fechada. Foi talvez essa crença que tornou o «cowboy», num dado momento, um alvo preferencial das caricaturas típicas da propaganda antiamericana. Mas um estereótipo é o representante de um mundo inteiro, e, por isso, a dinâmica de liberação dos sentidos não se pode fazer contra o estereótipo, mas sim abrindo no coração do estereótipo um espaço liso que lhe devolve a tensão originária e o horizonte infinito do que nos habituámos a chamar liberdade. Se falamos de horizontes de liberdade não pode haver evocação mais feliz do que a do «cowboy».

Brokeback Mountain é, por certo, o filme do ano, uma majestosa história de amor e uma obra-prima do melodrama. É também uma lição de moral e uma demonstração do anacronismo cultural dos grandes inquisidores e falsos liberais, que continuam a promover a homofobia e a discriminação com base nas preferências sexuais. Mas Brokeback Mountain é, sobretudo, a demonstração da capacidade do grande cinema para transportar toda a carga mítica da sua tradição e, ao mesmo tempo, abrir espaços infinitos para a imaginação das histórias que hão-de dar novos destinos aos nossos heróis eternos. É a celebração do cinema como triunfo da liberdade que pode unir num mesmo abraço Jake Gyllenhaal, Heath Ledger, John Wayne, Dean Martin e todos os «cowboys» do mundo.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 25 de Março 2006

UM HOMEM E UMA MULHER



João Pedro Rodrigues. Odete. 2005.



É muito desagradável deixar cair coisas no chão. Em determinadas circunstâncias, a queda de uma chávena de chá meio cheia sobre o soalho de uma sala pode ter consequências susceptíveis de comprometer de forma definitiva uma carreira mundana.

Imaginem agora que, não sabemos por quantos momentos, sustentamos entre as nossas mãos um coração. O coração de alguém. O perigo é imenso. Um coração é um objecto vivo e muito sensível. Deixar cair um coração, partir um coração, é por certo o maior crime que contra a humanidade se pode cometer, e não é nada fácil encontrar quem o sabia redimir.

Numa das sequências mais belas e mais terríveis de toda a história do cinema (não sei se devo acrescentar português), Diogo Dória atira violentamente para o chão o vaso de vidro que contém o coração de Francisca. Falo de Francisca, de Manoel de Oliveira, inventada a partir de Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís, e de um trágica história de amor do final do século XIX.

Francisca é o século XIX ou a pré-história do cinema: o cinema que havia, sempre houve, na pintura e no romance, antes de haver cinema. Entre Francisca e Odete está o século XX, ou seja, a histórica do cinema. É esta a matéria-prima, a paixão e a sabedoria de João Pedro Rodrigues: o conhecimento apaixonado da história do cinema. É esta a matéria-prima, a paixão e a sabedoria de João Pedro Rodrigues: o conhecimento apaixonado da história do cinema. Histórias de vida, sexo, luz, morte e amor. É por isso que João Pedro Rodrigues é um dos mais fortes e originais autores emergentes no panorama do cinema contemporâneo. Odete é a Francisca do século XXI.

Esta é a história de um coração partido e de um coração posto em estado de desassossego. Dois incidentes iniciais. Pedro, o namorado de Rui, morre, ou parece morrer, num acidente de automóvel. O namorado de Odete mostra desagrado em relação à hipótese de ter um filho. A obsessão de Odete com a ideia de ser mãe atira a protagonista para uma errância que servirá de fio condutor à narrativa.

A deriva de Odete é movia pela ideia de maternidade. Um tema recorrente sob formas que valeria a pena comparar em vários filmes portugueses recentes, como Glória, de Manuela Viegas, ou A Mulher Policia, de Joaquim Sapinho.

Veja-se a relação de Odete com a mãe (Teresa Madruga) de Pedro, cuja evolução nos dá a chave dos pontos de viragem da narrativas. As mães acabam sempre por se entender.

A deriva de Rui não é uma deriva e não é motivada por nenhuma ideia. Porque um coração partido não tem ideias. Não sabe bem tem para onde ir e só pode ficar onde está, no chão, à espera que alguma coisa lhe aconteça.

A morte de Pedro é apenas um pretexto ficcional. No cinema, como na vida, a morte não existe, só existe a vida. O problema é que a vida não existe por si só. Só existe antes e depois da morte de alguém.

O coração de Nuno Gil (Rui) é o centro, o campo de batalha e objectivo deste filme, ou, pelo menos, deste texto. Ana Cristina de Oliveira (Odete) vai fazer com que aconteçam coisas, que é a sua grande especialidade pessoal, mesmo quando não está num filme. Escrevo aqui os nomes dos actores antes do nome das personagens porque no cinema de João Pedro Rodrigues os actores, para além de intérpretes de personagens, são, antes de mais, os portadores dos seus próprios corpos. Reveja-se o caso exemplar de Ricardo Meneses em O Fantasma.

O objectivo de Odete é o mesmo de qualquer pessoa saudável e ambiciosa. Encontrar um corpo, ter um corpo, que seja ao mesmo tempo o seu corpo, um filho e um amante. Deixo ao vosso critério discernir se quando falo do seu corpo me refiro aqui ao corpo próprio, ao corpo de alguém que se tem, se é que se pode ter alguém (ter um filho, possuir um corpo), ou a ambos.

É um programa óbvio, embora não seja fácil de concretizar. Não é executável, mas é praticável. Não é um programa na acepção de plano susceptível de ser executado, mas no sentido de um dispositivo de referência susceptível de gerar práticas, exercícios, acontecimentos (à maneira de Deleuze). Um campo de acção, como seja por exemplo um corpo, é, neste sentido, infinito.

Odete, sendo um filme e revelando o entendimento das possibilidades da vida que só o cinema proporciona, vai demonstrar de um modo implacável que por causa do desejo e do amor todas as impossibilidades se tornam plausíveis. As cores do arco-íris são apenas a expressão do triunfo da luz sobre um céu carregado de nuvens. A expressão de uma eterna aliança. Em volta de duas alianças circulam as metamorfoses dos sentimentos desta história, que se desequilibra entre a assustadora efemeridade e a potencial eternidade de qualquer aliança amorosa.

Voltamos à diferença entre o século XIX e o século XXI. Conjugando um romantismo radical e pós-humano com a clareza do nihilismo optimista do jovem século. Odete não é uma tragédia. Também não é um Breakfast at Tiffany’s. É um «Later Dinner at Starbucks». Uma comédia dramática a que João Pedro Rodrigues teve a generosidade de oferecer um «happy end»: ou seja, um final tão feliz quanto possível.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 11 de Fevereiro 2006


CARNE DE SOL



Adriana Varejão. Parede com Incisões à la Fontana. 2002.
Adriana Varejão. Linda da Lapa. 2002.




A primeira vez que Marcantonio (um amigo e galerista histórico de Adriana, pioneiro da divulgação de arte contemporânea brasileira no mundo) me mostrou trabalhos de Adriana Varejão pareceu-me, e não sei se ousei dizê-lo, tal era o seu entusiasmo, que eram excessivos. Demasiado. Barrocos, pós-coloniais, decorativos, expressivos, viscerais, antidecorativos, sexuais, multiculturais: demasiado. Parecia-me que o trabalho de Adriana correspondia de modo demasiado perfeito aos estereótipos da minha visão do Brasil, que, então, ainda não conhecia. Depois viria a descobrir que o estereótipo era meu e era eu o responsável pela sua projecção sobra a obra de Adriana. É um erro muito comum.

A primeira vez que encontrei Adriana Varejão voltei a sentir uma impressão de excesso, mas desta vez era uma espécie de excesso de doçura. Para me poupar o trabalho de procurar uma palavra que acabaria por se revelar ainda menos apropriada, chama doçura à indeterminável qualidade de sedução que Adriana transporta no olhar. Esta paradoxal sensação de excesso haveria de longa e lentamente alastrar, até se dissipar em tempos de convívio que se desdobraram por botequins do Rio, lugares de música e dança, samba, choro e outros coisas de que não retive o nome, uma casa em festa com vista sobre Ipanema, uma tempestade tropical na floresta carioca, um estúdio cheio de saunas aberto para um jardim, um mega-evento em Inhotim. As qualidades do olhar, portanto.

Alguém disse, a propósito das pessoas, que os olhos são janelas da alma, ou coisa que o valha. Tratava-se, por certo, de um mentiroso, se não mesmo um criminoso, que com este estratagema retórico visou e provavelmente conseguiu obter ganhos ilícitos. Os olhos só revelam a alma dos cães, até porque as pessoas não têm alma. Quando se pensa dizer ou se diz a alguém que no fundo dos seus olhos queremos ver ou estamos a ver um mundo inteiro, o mundo inteiro, isto é apenas o princípio de um grande erro. No fundo dos olhos de quem quer que seja não há nada e à superfície há apenas o reflexo do nosso olhar. Cair neste equívoco é mais do que um erro, é um perigo.

Toda a riqueza, a felicidade e o infinito da vida começa, está e nunca acaba dos olhos para fora e não dos olhos para dentro. Afinal, o que é que está do lado de fora de um olhar? O mundo inteiro, isto é apenas o princípio de um grande erro. No fundo dos olhos de quem quer que seja não há nada e à superfície há apenas o reflexo do nosso olhar. Cair neste equívoco é mais do que um erro, é um perigo.

A partir do ponto de vista de Adriana Varejão, dos olhos para fora, posso deixar de projectar os meus estereótipos sobre o Brasil, a arte brasileira, ou a arte, a expressão ou barroco em geral.

Um corpo não é um saco de lixo psicológico para dentro do qual se espreita através dos olhos ou de qualquer outro improvável orifício. O corpo é carne. Nalguns casos mais milagrosos, o corpo é carne de sol, que é carne mais saborosa do mundo.

Falemos de Linda da Lapa e de Linda do Rosário (2004), duas esculturas agora apresentadas no CCB (numa mostra antes vista na Fondation Cartier, em Paris) que, tendo origem na anterior série dos «charques», fazem referência ao desabamento, em 2002, no Rio, de um hotel vocacionado para encontros sexuais.

O espaço revestido de azulejos que estas obras nos sugerem não é um espaço virtual, neutro, separados do mundo. É um espaço que nos remete para situações concretas: um talho, um bar, uma cozinha, uma casa de banho, um hospital, ou, aqui, um hotel. O espaço social, o espaço doméstico e o espaço íntimo fazem, assim, a sua entrada no espaço da arte. São espaços em que o corpo deve estar contido e protegido, do mesmo modo que os azulejos protegem uma parede e esta, por sua vez, circunscreve a estrutura de um edifício. O objectivo seria manter o corpo sob controlo. Mas este objectivo é inviável.

O trabalho de Adriana Varejão demonstra que não é possível ocultar o corpo. Em todos estes trabalhos, o rebordo lateral das superfícies pintadas toma a forma de uma larga massa de carne que extravasa todos os limites. A obra surge como uma imensa e monstruosa sanduíche de carne em que as paredes ocupam a posição das fatias de pão. A extraordinária presença desta massa de carne é o verdadeiro acontecimento maior destes trabalhos. O acontecimento em que se inscreve o nosso espanto e a nossa excitação, o lugar do escândalo e do fascínio. O que é esta carne? De onde vem esta carne e o que está aqui a fazer?

A carne é, antes de mais, a carne de um corpo. Tal como sucede nas pinturas com fendas, a autora inscreve o corpo nos seus trabalhos, não sob as formas figurativas tradicionais, mas do modo mais directo e ostensivo: a exibição da incontrolável explosão da carne.

A demarcação em relação aos estereótipos de representação do corpo toma frequentemente, na obra de Adriana Varejão, a forma de desconstrução dos modelos colonialistas de representação dos povos subjugados. Neste sentido, a carne é também, num sentido metafórico, a carne de uma comunidade social específica: as populações subjugadas do Brasil colonial e contemporâneo e as correspondentes formas culturais populares, em que a expressão corporal tem um papel destacado (dança, música, Carnaval). A presença da carne torna-se, assim, a expressão da espessura de uma experiência histórica.

Finalmente, a carne é ainda – e inscrevem-se aqui as especificidades femininas ou feministas da obra da autora – a expressão da irredutibilidade de uma memória e de uma experiência pessoais, biográficas, através das quais se manifesta a autonomia de uma afirmação autoral.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 12 de Novembro 2005, p. 54-55

JUVENTUDE PERDIDA




Gus Van Sant. Last Days. 2005. Michael Pitt (protagonista)


O único mistério da vida é a adolescência. O nascimento é apenas um acontecimento, devido à ausência de consequências racionalmente processáveis, é um não-acontecimento. A ideia de mote produz imensos efeitos, mas a morte, na realidade não existe. Tem falta de um depois documentável. A velhice, sendo talvez uma coisa boa, é o que é. A idade adulta também. Isto é: também é a velhice.

A infância, do ponto de vista do próprio, não é nada, porque o próprio não tem ponto de vista próprio. A infância são as mães. Uma coisa extraordinária mas que não chega a ser um assunto, porque é sempre bastante mais. A infância também serve às vezes para ser depois inventada.

A adolescência é o único mistério. Um rapaz já é um homem, mas ainda não sabe bem o que é, e isso é susceptível de gerar inúmeros equívocos, que por vezes se viram contra o próprio ou contra os que o rodeiam. A violência adolescente aparece como uma espécie de cena de pancada em que agressor e vítima são a mesma pessoa, se é que se lhe deve chamar pessoa. A adolescência é uma forma de fome. A comida disponibilizada pelos mais velhos não presta, e os adolescentes comem a sua própria carne, que por vezes se torna venenosa.

A melhor alternativa à violência são os espelhos, mas estes nem sempre funcionam do modo mais desejável. A descoberta do espelho é a maior descoberta da história da humanidade de cada homem. O rapaz passa a poder ser um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, uma legião de imagens de homens capazes de arrumar e usar o mundo à medida das suas vontades, fantasias e prazeres. Nos melhores casos, o sortilégio dos espelhos inspira imagens de sucesso, que são também uma promessa de sexo.

Mas é preciso ter muito cuidado com os espelhos, porque nunca se sabe exactamente qual a imagem que nos vão devolver. Uma descoincidência radical pode geral uma decepção com consequências catastróficas.
Um dos grandes especialistas da contemplação da adolescência, na plenitude do seus potencial de sedução, é o realizador Gus Van Sant. Recordemos uma das suas primeiras obras, a média-metragem Mala Noche (1985), ou Matt Dillon em Drugstore Cowboy (1989), River Phoenix e Keanu Reeves em My Own Private Idaho (1991). Até chegarmos ao que ele agora considera ser uma trilogia, composta por Gerry (2002), com Matt Damon e Casey Affleck, Elephant (2003) e Last Days (2005), com Michael Pitt no protagonista. Em todos estes casos trata-se de filmar corpos portadores do que chamamos o mistério da adolescência. Um esplendor pasmado, mesmo quando afligido por uma agitação frenética. Consideramos aqui que o estado de adolescência se pode prolongar para além do prazo de validade estética dos candidatos ou do período cronológico que lhe está destinado. É o caso da referência central de Last Days, Kurt Cobain, e de alguns outros mártires juvenis, por vezes um pouco estúpidos.

No meio da desoladora beleza dos desertos de Gerry, um dos protagonistas pergunta: “Para onde é que vais?” Resposta: “Não sei. Ajuda-me a chegar lá”.

A adequação da maneira de filmar de Gus Van Sant aos seus objectos privilegiados revela-se sob a forma de uma frieza e distanciamento peculiares. O autor não finge ser possível uma identificação com a interioridade dos objectos filmados. Este efeito de decepção sistemática é particularmente perturbador no caso de Last Days. Jamais nos é concedida a ilusão de entrar dentro da personalidade dos protagonistas, sentir o que eles sentem ou pensar o que eles pensam. Podemos vê-los de um modo atento, demorado, lento, levemente voluptuoso. Podemos por vezes julgar ver o que eles vêem. Mas nunca saberemos nada sobre eles, como nunca saberemos nada sobre ninguém em estado de adolescência. Ou seja, antes de cair dentro dos formatos vulgarizadores que fazem com que já não reste quase nada que valha a pena ser, porque tudo é já mais do que sabido.

A aparente frieza do método do Gus Van Sant não se confunde com a indiferença, porque é vitalizada por uma empatia estética com os corpos filmados que nalgumas passagens se aproxima do fascínio obsessivo.
Há quem considere Last Days sublime, à maneira de Dreyer. Veja-se a cena da ressurreição e ascensão. O respeito da câmara impede-os de segredar uma psicologia. A aura dos corpos permanece imaculada, transformando-os em maravilhosos exemplos da perdição contemporânea.

Ian Curtis, Kurt Cobain e Michael Jackson são os três (anti?) heróis da Doppelganger Triology (Triologia do Duplo, 2001/2004), que começou a tornar conhecida a obra do artista plástico Slater Bradley, nascido em São Francisco em 1975, estudante na UCLA (Los Angeles), hoje activo em Nova Iorque e cada vez mais presente em galerias e museus nos Estados Unidos e na Europa...

A trilogia reúne os vídeos Factory Archives (2001/2002), Phantom Release (2003) e Recorded Yeasterday (2004), dedicados às três figuras referidas. Nestes vídeos, os protagonistas são interpretados por Benjamin Bock, um efectivo duplo do autor cujo papel é representar Slater Bradley a representar o papel das suas personagens de eleição. A estética adoptada evoca a filmagem clandestina de concertos por fãs amadores, os filmes atingidos pela degradação física ou as experiências de manipulação directa da película na tradição do cinema experimental.

O efeito oscila entre o culto nostálgico das estrelas caídas e a atmosfera fantasmática dos suspiros e aflições do imaginário em busca de objectos e ideias de identificação. No seu filme mais recente, Intermission (2006), o artista retoma a figura de Michael Jackson, mostrando-o a passear na neve e a subir a uma árvore, numa referência pungente a uma infância inviável. A encenação de um relacionamento com um outro tipo de heróis da cultura popular juvenil (Darth Vader) pode observar-se por exemplo, na fotografia de grandes dimensões Uncharted Settlements I (2005), visível numa exposição de grupo na Team Gallery (Nova Iorque).

Na exposição «Bridge Freezes Before Road», comissariada por Neville Wakefield para a Gladstone Gallery (Nova Iorque), encontramos The Yeat of the Doppelganger (2004).

O filme mostra uma rapaz de tronco nu e cabelo louro, um pouco desgrenhado, descendo as bancadas desertas de um estádio para se ir sentar em frente de uma bateria instalada no centro do relvado e iniciar um frenético solo. À sua volta treina um grupo de atletas que correm para trás e para a frente, em explosões de velocidade, como quem ensaia sempre recomeçados arranques de corridas que de imediato se transformam em «sprints» finais. A descrição destas imagens serve de resumo e conclusão desta crónica.

Last Days, de Gus Van Sant, tem estreia marcada para 13 de Outubro.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 27 de Agosto 2005, p. 30-31




O MELHOR VERÃO DA MINHA VIDA




Munteau & Rosenblum. Untitled (what has happened?). 2002.
Munteau & Rosenblum. Untitled (The day doesn't promise...). 2003.



Sempre que se aproxima o Verão, desperta em mim uma tentação melancólica em que uma vaga promessa de excitação, que se advinha já frustrada, se confunde com uma imensa e bem familiar nostalgia em relação a coisas que nunca existiram.

Neste estado de espírito encontrei um objecto ideal de contemplação nas pinturas e desenhos de Muntean/Rosenblum, uma dupla constituída pelos artistas Markus Muntean e Adi Rosenblum que, a partir de Viena, tem vindo a assegurar uma presença constante e imediatamente reconhecível no circuito internacional das artes, graças às suas representações de adolescentes, de acordo com os mais singelos códigos de uma figuração aproximável das ilustrações de livros infantis.

São retratos de jovens surpreendidos em situações de total tédio e descontracção em que uma branda expectativa convive com uma sensação de conforto destituída de qualquer espécie de euforia.

É uma atmosfera de suspensão em que o suave torpor da saciedade parece ter-se antecipado à descabida rudeza da exibição da força de vontade.

As personagens que compõem estas cenas, compostas em tons de pastel de acordo com harmonias quase clássicas, manifestam, nas suas poses, roupas e acessórios, uma plena comunhão com os ideais de juventude, beleza, bem-estar e prosperidade veiculados pelo bom gosto das melhores revistas de moda e «life-style». No entanto, a intensa leveza das cenas que congregam tão cordatos seres humanos, modelados por uma tendencial androginia de recorte pré-rafaelita, está talvez mais próxima da soberana placidez de algumas cenas religiosas (que por vezes servem de referência directa aos artistas) que do pasmo elegante de uma sessão de fotografias de moda.

A atitudes destes jovens configura um nihilismo tranquilo em que a sensação de vazio ou de falta que, noutros contextos, terá inspirado celebradas rebeldias e desesperos deu lugar a uma sabedoria precoce. Uma filosofia da vida contemporânea que prescinde de exaltações heróicas, que já sem sabem mistificadoras quando não trágicas, para dar lugar a uma confortável amenidade que aceita a plenitude da vida como um infinito inconsequente que se estende até ao céu a partir de um vazio central. Aquilo que falta, aquilo que sempre falta. A menos que se considere que a espera é sempre uma promessa. Mas de quê?

As especulações gratuitas que aqui me permiti são legitimadas pelos textos que, à maneira de legendas, acompanham as pinturas e desenhos dos autores e que, por vezes sob a forma de colagens de lugares-comuns das meditações mais quotidianas, configuram uma ética específica.

São palavras que não sabemos se correspondem às reflexões ou à voz interior das personagens representadas, dos autores ou de nós próprios. Por isso mesmo permitem diferentes mecanismos de identificação e ajudaram Muntean/Rosenblum a tornarem-se interlocutores privilegiados do meu próprio estado de espírito.

Se eu fosse uma personagem destes quadros, a legenda do meu retrato diria que o melhor Verão da minha vida foi o que nunca tive durante a adolescência.

Todos os anos, quando as aulas se extinguiam, pensava ou sentia que tinha direito a um Verão perfeito como aqueles cuja imagem inventara a partir de bocados de anúncios a gelados, bebidas e bronzeadores, fotografias de revistas, capas de discos e momentos de filmes ditos fúteis.

Um Verão com grupos alegres de «teenagers», em motas e carros descapotáveis, sempre a caminho de festas, praias e pores-do-sol, à descoberta do sabor da pele dourada, dos lábios salgados e de outras coisas assim.

Não sei se isto é possível fora do glorioso reino do imaginário. Em todo o caso sobraram para mim as obras completas de escritores como Pessoa, Duras, Wilde, ou Fitzgerald que não podem vir mais a propósito. Para não ficar o resto da vida, como os heróis de Fitzgerald, a lamentar um Verão que nunca existiu dediquei-me, com relativo sucesso, a coleccionar fragmentos de um Verão que, assim, a pouco e pouco, vai deixando de não ter existido.
Entre muitos cenários possíveis, e até para variar em relação aos bucólicos cenários mais habituais nos Munteau/Rosenblum, escolho para mim, para efeito desta crónica, o muito cinematográfico cenário de Los Angeles e destaco alguns itens mais pitorescos de uma colecção pessoal que deve ser vista como um «work-in-progress». Mas progresso em direcção a quê?

Tomar o pequeno-almoço num terraço de madeira sobre as areias de Malibu; adormecer e acordar a olhar para as palmeiras e pequenas ondas de Santa Mónica; ir beber «dry martinis» ao fim de tarde a uma casa cor-de-laranja e verde de um amigo; ir ver o pôr-do-sol com um outro amigo no ponto mais alto de uma grande mansão secreta; fazer compras na melhor «boutique» do mundo (Max Field) e dar um salto a Rodeo Drive; pedir um Gibson no Musso & Frank (Hollywood Boulevard); flutuar na piscina do Mondrian antes e depois da intervenção de Philip Starck; mergulhar e ouvir música barroca debaixo de água; dormitar na bóia cor-de-rosa da piscina do Standard; ver os cumes dos arranha-céus reflectidos na superfície da piscina no topo do Standard Downtown à meia-noite; ir passar o dia a passear em Venice a ter ideias para livros que ainda não tive tempo para ir para lá escrever; aprender a conduzir só para poder deslizar de carro pela PCH (Pacific Coast Highway) e pelo Sunset Boulevard.

Podia escolher outros cenários mas enumeração corria o risco de se tornar fastidiosa e já foi cumprido o objectivo de ilustração de uma modalidade particular de identificação com as personagens de Muntean/Rosenblum. É altura de passar à conclusão.

Sei que o Verão voltará a brilhar, perfeito, sobre um corpo, mas entretanto há ainda algumas lágrimas a secar no caminho.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 18 de Junho 2005, p. 52-53