PAULO NAZARETH




ARTFORUM
Dezembro/December 2014


Paulo Nazareth, CA - for BLACK 2014


Quem entrou no Galpão durante a inauguração começou por sentir um som e um cheiro: o som de um canto pouco usual e um cheiro de comidas caseiras. O aroma era de comida tradicional brasileira oferecida num banquete familiar aos visitantes. O som da instalação sonora (em diálogo com o de um vídeo apresentado logo à entrada) é o dos cânticos que acompanharam a cerimónia de aceitação do artista (Brasileiro de Minas Gerais com ascendência europeia, indígena e africana),  como membro de uma tribo guarani-kaiowa. Che Cherera, título da exposição, significa na linguagem da tribo “o meu nome é” e funciona como um cartão de apresentação deixado em aberto. A palavra xará na linguagem corrente do Brasil designa alguém com o mesmo nome ou com quem nos identificamos de modo fraterno. Qual é, afinal, a verdadeira identidade do artista?

O nó mais profundo da problemática da exposição consiste no reconhecimento e na experiência da dificuldade ou impossibilidade de dar uma resposta categórica e definitiva à questão da identidade. O processo de trabalho do artista toma a forma concreta da viagem, deambulação, recolha e acumulação de objectos (pentes, sabonetes, pacotes de açúcar, abóboras ou maçarocas de milho), imagens (14 vídeos e 35 fotografias em registos simples a preto e branco), resíduos, lixos, recordações ínfimas e humildes da passagem por países, locais, ruas, rios, poeiras, mares, entradas de hotéis caros ou quartos de hotéis baratos . O autor designa o conjunto dos seus trabalhos por Cadernos de África, entendidos não como um tradicional caderno de desenhos ou apontamentos mas como acumulação de memórias de viagens, designadamente pelo Brasil, América Latina e África.
Nesta exposição, as trajectórias convergem numa pesquisa em torno daquilo que nos habituámos a ver, ou a não ver, aquilo que ainda não esquecemos, ou não queremos recordar, a respeito do que é ou foi “África” na nossa vida quotidiana, nas nossas memórias e estereótipos de percepção da realidade e da história.
Num saco amarelo ilustrado com o perfil do rosto de uma mulher negra lê-se “ arroz de grão longo Mama Africana Produto da Tailândia” sendo que o saco é um produto da Olam Moçambique em parceria com a Vodacom, que oferece um brinde aos compradores. Dois castiçais figurando criados negros estão dispostos sobre uma embalagem de cartão de um “criado mudo”, nome ainda hoje dado a “mesa de cabeceira” e que designava um escravo submisso. Um conjunto de figurinhas de teams de soccer Brasileiro são organizados segundo a gradação da cor da pele. Uma montagem de cartazes coloca lado a lado sorrisos de músicos e cantores, candidatos políticos moçambicanos e publicidade a produtos capilares quenianos. Mais adiante, numa fotografia, encontramos um cartaz em que o sorriso de uma mulher negra acompanha o slogan “Abre conta no Banco onde mais ganhas”.   Todas estas referências ao que o artista designa como a “África espalhada” são oportunidades de confronto com os nossos próprios clichés, preconceitos ou convicções. Por vezes o significado político das obras é mais evidente. Um vídeo em que um homem come terra refere-se a uma prática que visava permitir a reintegração nas suas comunidades de origem de antigos escravos regressados a África. Um vídeo em que o autor caminha recuando em círculos em volta de uma árvore evoca a prática de obrigar os escravos a circular em torno de uma árvore como forma de esquecerem o seu lugar de origem. 
Na enorme diversidade destes trabalhos o que mobiliza a nossa atenção de modo mais eficaz é o facto de a questão da identidade não ser apresentada como uma pergunta à qual pode ser dada uma resposta definitiva, mas como um processo de investigação, uma sucessão de viagens que se confundem com a própria trajectória de uma vida. Neste caso, literalmente, a vida do artista.
Quem visite esta exposição, se pensar na trajectória da sua própria vida, talvez descubra que aquilo que sentimos de forma mais profunda talvez não sejam convicções sistematizáveis em opções ideológicas, mas sons, aromas, imagens fugidias, pequenos objectos ou sensações muito fortes, mas não totalmente compreensíveis, que constituem o património mais genuíno das nossas heranças e esperanças. Vamos ficar à espera das próximas viagens de Paulo Nazareth. 

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Upon entering the Galpão during the inauguration of the exhibition the visitor is greeted by a sound sound of an unusual chant and the smell of home-cooked food. The aroma was of traditional Brazilian fare offered visitors in a family-style banquet setting. The sound came from a video installation shot entirely in the dark, making it a work to hear rather than see: Aprender a rezar Guarani e Kaiowá para o mundo não acabar (Learn to Pray Guarani and Kaiowá So the World Doesn’t End), 2013. The work documents the ceremony in which the artist, a Brazilian from Minas Gerais, of mixed indigenous, African, and European descent, was accepted into the Guarani-Kaiowá tribe of Mato Grosso do Sul. (Similar chants could also be heard in a sound work presented on headphones, Chanson de Voudou (Voodoo Song), 2013, also recorded with a group of Guarani.) In the language of the tribe, the title of the exhibition, “Che Cherera”, means “my name is” – and in a sense, it serves as an open calling card. It recalls the word xará, which in current Brazilian usage designates a namesake or someone with whom we identify in a close, family-like way.
Yet as it turned out, the most profound problem facing viewers was precisely the difficulty or even impossibility of providing a categorical answer to the question of identity. The artist’s work process took the form an actual journey, as he roamed, gathered, and accumulated objects: combs, bars of soap, sugar packets, pumpkins, sheaves of corn, images (fourteen videos and thirty-seven black-and-white photographs), residue, trash – all small and unpretentious mementos of his passage through and across various countries, streets, rivers, dusty roads, seas, entrances to expensive hotels, and rooms in cheap hotels. Since 2012, Nazareth has designated many of his works “Cadernos de Africa” (Africa Notebooks), characterizing them as repositories, of a kind, of his memories of his travels in Brazil, Latin America, and Africa.
CA – Mama Africa, 2014, for instance, is a yellow sack illustrated with the profile of a black woman’s face, which reads “African Mammy Long Grain Rice Product of Thailand”. The sack is merchandise from Olam Mozambique in partnership with Vodacom, which offers a complimentary souvenir to its buyers. Two candlestick holders depicting black servants (criados) are configured over a cardboard wrapping of a nightstand, or criado mudo (silent servant), as it is still called today the name a former designation for a submissive slave; this assemblage is CA – criado mudo, 2013. A set of figures of Brazilian soccer teams are organized according to gradation of skin color (CA – Figurinha repetida, 2014), while a montage of posters juxtaposes the smiles of musicians and singers, Mozambican political candidates, and ads for Kenyan hair products (CA – Samba, 2013-14); such references offer us opportunities to confront our own prejudices and stereotypes.
Another video, L’arbre d’oublier (Tree of Forgetfulness), 2013, shows the artist walking away from a tree in a spiraling path; it evokes the colonial practice of forcing slaves to circle a tree as a means of forgetting their place of origin. For Nazareth, identity is not a question with a definitive answer but rather a process of investigation, a succession of journeys that merge with the very trajectory of a life. A visitor to this exhibition, thinking about the path of his or her own life, might discover that what we feel most deeply may not be convictions systematized into ideologies but sounds, aromas, fleeting images, small objects, or highly powerful but not fully comprehensible sensations. These sometimes constitute the most genuine patrimony of our heritage and our hopes.


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Texto traduzido para inglês por Clifford E. Landers e publicado na revista mensal Artforum, na edição de Dezembro de 2014, por ocasião da exposição 'Che Cherera', (do Kaiowa “meu nome”), de Paulo Nazareth, na Galeria Mendes Wood DM (São Paulo), de 31 de Agosto a 25 de Outubro, 2014.


À PROVA DE RESSURREIÇÃO?




Deste Lado da Ressurreição. Joaquim Sapinho.


“A graça existe apenas, portanto, onde se reflete a ressurreição.”
(Karl Barth)

“ … e até os mortos vão ao nosso lado.”
(Vozes ao alto, letra de José Homes Ferreira e música de Fernando Lopes-Graça)

Um dos filmes mais importantes do século XXI chama-se Deste Lado da Ressurreição (Joaquim Sapinho, 2011). Levou tanto tempo a fazer quanto este jovem século. Não sei se é dos melhores. Quem sou eu, que cada vez tenho mais dificuldade em encontrar o pior, para saber o que é melhor. Direi apenas que o filme, tal como é, não poderia ter sido feito sem o ator Pedro Sousa.
No entanto, há uma ideia que resulta de algumas dezenas de horas de conversa com Joaquim Sapinho. É uma ideia simples: só há vida (a morte não é coisa que haja e por isso não é assunto ). No entanto, a vida, que é tudo o que há (e por isso também não chega a ser “um” assunto), é apenas o que há deste lado de uma linha inexistente que nos separa de um outro lado a respeito do qual nada pode ser dito, nem sequer que seja um lado e muito menos que seja outro. Tudo se faz e se diz em função desta impossibilidade. É este o lugar da palavra ressurreição. Há artistas (por exemplo Robert Bresson e haverão poucos mais exemplos) que tratam este assunto. Que assunto? Não se sabe.
Um autor chamado Karl Barth explica isto muito bem: “ Aquilo a que os homens, deste lado da ressurreição, chamam ‘Deus’ é, de um modo muito característico, não Deus. O ‘Deus’ deles não redime a sua criação, mas permite o livre curso da humana ausência de retidão; não se declara a si mesmo como Deus, mas é a plena afirmação do mundo e dos homens tais como são. Isto é intolerável, porque, apesar das elevadas honras que lhe oferecemos para seu engrandecimento, ele é, de facto,  ‘Não-Deus’. O grito de revolta contra um tal deus está mais perto da verdade do que os sofismas com que os homens tentam justificá-lo. Só porque não têm nada melhor, só porque lhes falta a coragem do desespero é que a generalidade dos homens, deste lado da ressurreição, não cai no mais ostensivo ateísmo” (A Epístola aos Romanos, 1919).
 Há quem prefira a miséria que por aí se vê ao esplendor da desesperança, mas importaria não confundir a resignação com a complacência.
De modo inesperado, o tema da ressurreição surge como traço de união entre algumas das minhas mais intensas experiências artísticas deste ano. Na Art Unlimited, uma exposição paralela (este ano comissariada por Gianni Jetzer) à Feira de Arte de Basileia, onde se mostram obras de artistas representados por galerias participantes, Douglas Gordon apresentou Henry Rebel (2011). Numa sala escura dois grandes ecrãs equilibram-se, em cruz, um em cima do outro. Antes de passar à explicação vamos recuar um pouco.
Cheguei mesmo em cima da hora a uma projecção matinal do Festival de Cannes 2011 para ver Restless (Gus Van Sant, 2011). Em Cannes é difícil conjugar o horário da noite com o da manhã. A consequência foi não ter prestado a devida atenção aos credits de abertura. Por isso me senti acossado (haunted, como o realizador pretendia), ao longo do filme,  pela circunstância de reconhecer um olhar (ver uns olhos conhecidos) mas não os conseguir identificar (onde e de quem?). Os credits finais trouxeram a resposta. Soube com exactidão que tinha visto aqueles olhos num dos mais belos screen tests de Andy Warhol: o de Dennis Hopper. O rapaz chama-se Henry Hopper e tem, como deve ser, os olhos do pai.
Não sabia que Douglas Gordon viria a convidar Henri Hopper para uma obra integrada no projeto Rebel, iniciado por James Franco.
Douglas contou-me que estava um pouco nervoso quando convidou Henry para ir a Berlim falar do projeto. Na dúvida foi esperá-lo ao aeroporto mas ficou a dúvida : vou cumprimentá-lo ou beijá-lo, tratá-lo por tu ou por você? Henry aproximou-se, poisou a mala, abraçou-o e disse que era a segunda vez que estava em Berlim. Nunca se esqueceria da primeira vez porque foi em Berlim que recebeu a notícia da morte do pai: o pai.
Henry Rebel é uma dupla projecção, 1h30 em loop. As imagens registam o que podemos considerar duas performances, a solo, intensas como se de cortar a respiração (prefiro dizer que são hipnotizadoras e sufocantes, como os afundamentos e os exercícios carnais do protagonista de Deste Lado da Ressurreição). O ponto de partida são duas sequências não filmadas do guião de Rebel Without a Cause (Nicholas Ray,1955) envolvendo corpos, fogo e chicote. Para que não se pense que estou a contribuir para o altar habitual devo dizer que   naquela história o meu favorito não é James Dean, é Sal Mineo.
Não vou especular sobre o que Henry Hopper, em concreto, faz ou deixa de fazer. Só quero chamar a atenção para o que (em nome do ...) o corpo dele faz por todos os acima mencionados que já não estão nem ali nem entre nós, e por nós próprios que, bem vistas as coisas, também não estamos aqui.
Ainda em Basileia, na Fundação Beyeler , uma exposição que é a obra máxima de Phillipe Parreno. Marilyn Monroe deixou escrita em papel timbrado do Hotel Waldorf Astoria uma descrição do seu quarto no hotel.
Philippe Parreno, num filme intitulado Marilyn (2012) permite-nos, em plano-sequência subjetivo, ver aquilo que viram os olhos de Marilyn ao percorrer o quarto do hotel e ouvir o texto dita pela voz de Marilyn (não há nenhuma dúvida quanto ao facto de ser mesmo a voz de Marilyn, a voz do Happy Birthday, Mr President ... que todos ouvimos ao lado de JFK). Para eliminar qualquer derradeira dúvida, Parreno mostra-nos a caneta de Marilyn escrevendo o texto acima referido com a caligrafia de Marilyn.
Tudo isto tem uma explicação tecnológica mas o que aqui importa são as implicações espirituais. “ ... porque estas Mortas regressam, sim, estas Mortas regressam, senhores, porque eu as amo, e por saberem isso elas obedecem-me ; só o amor ressuscita os mortos” (Monsieur de Bougrelon, Jean Lorrain, 1897).
Numa outra sala, é apresentado o filme Continuously Habitable Zones aka C.H.Z. (2011), uma viagem às profundezas de um “jardim negro”, criado pelo autor para um coleccionador privado, algures no Norte de Portugal.
As imagens dos filmes existem, e são eternas, mas elas são também as imagens que delas permanecem na nossa memória. A memória não é um gravador, é um agente ativo de transformação que potencia a criação de novas imagens que passam a conviver com as imagens do passado e as suas sempre renovadas (por cada pessoa, em cada momento) memórias.
Importa dedicar aqui um pensamento a River Phoenix cuja existência e preservação tem inspirado tantos cuidados.  Slater Bradley, em colaboração com Ed Lachman, diretor de fotografia de Dark Blood (1993), o filme que River Phoenix estava a rodar aquando da sua morte (overdose à porta do The Viper Room em Sunset Boulevard), realizou uma série de desenhos a partir de fotografias de rodagem (Look up and stay in touch, 1993/2011) e dois filmes (Shadow, 2010 e Dead Ringer, 2011) que retomam situações perdidas do filme inacabado (cuja apresentação pública foi, por fim, anunciada para este Outono).
James Franco, em colaboração com Gus Van Sant, dedicou-se à re-criação de My Own Private Idaho, a obra prima do ator.  A instalação Memories of Idaho inclui os filmes My own private River, reunindo takes de River não utilizados na versão final, e Idaho, uma espécie de versão fantasma do filme feita a partir de um script não utilizado. Vi estas obras no Festival de Toronto 2011 no mesmo dia em que assisti à dia estreia mundial de Deste Lado da Ressurreição. Joaquim Sapinho não esteve presente porque teve de regressar a Portugal devido à morte do pai. Tema de um dos seus próximos filmes.
Quem está ou não está entre nós? Estamos entre quem?  Senti que estava entre eles (ou deveria dizer entre nós?), ao entrar na escurecida sala que, no verão passado, acolheu o melhor trabalho da Documenta 13, Kassel.
Estava escuro e não sabia para onde dirigir os passos nem onde pôr o corpo, não sabia se caminhar na direção de um centro ou derivar à procura de uma parede. Havia um som de fundo no escuro, um som de muitas vozes talvez humanas, e o som das vozes tomou volume e começaram a mover-se e a crescer à minha volta corpos que eram com toda a certeza humanos.
Esta é uma descrição da obra de Tino Sehgal. Algo que poderíamos caracterizar como uma performance interativa. A questão dos limites entre a realidade e a encenação, entre a luz e as trevas, ou o silêncio e a voz, é corporizada de modo a incluir o nosso próprio corpo como parte plena do que está a passar-se, que se não sabe o que é.
Antes de terminar é preciso referir a curta-metragem Manhã de Santo António (2012) de João Pedro Rodriques que encerrou a Semaine de la Critique em Cannes. O autor encontra na maior abstração formal uma intensidade maior. Qual é o estatuto real ou ficcional, fnio ? Quem recebeu o poder e a graça e daquelas raparaigas que regressam de uma noite de santo Ant. Estava escuro e nlaboraçm-meísico ou espiritual, dos rapazes e raparigas (fantasmas? mortos-vivos?) que regressam desta noite de Santo António?


Quem falou que a vida é à prova de ressurreição ?

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Artigo publicado em 'Quociente de Inteligência', suplemento de cultura do Diário de Notícias, a 8 de Dezembro de 2012. (pp: 20-21)

À PORTA DE UMA ESQUINA EM GREENWICH VILLAGE



Mesmo ao lado do pequeno estúdio que desta vez me calhou arrendar, à porta de um modesto e simpático restaurante italiano, estou a ver um rapaz a fazer conversa de angariação de clientes, com muitos gestos e sapatos sem meias com os atacadores soltos. Achei que podia ser um excelente actor e acabei por saber que tinha chegado há pouco de Nápoles, tem saudades do mar, começou há dois dias a estudar inglês e já era ou ia ser ator. Por mim já é e é bom saber que os bons estereótipos nova-iorquinos continuam a funcionar. Está agora a falar ao telefone com a mãe e vê-se que está muito contente.
É um pouco ridículo pretender caracterizar uma coisa tão extraordinária como Nova Iorque mas o artista Lawrence Weiner, para além de me oferecer ao almoço búzios frescos comprados no mercado, a mim que pensava que só havia mar em Portugal, disse duas coisas que tive de anotar : “Nova Iorque é a única cidade em que se pode estar em casa sem ter a sensação de ser um looser (perdedor)” e uma outra, mais enigmática, “Em Nova Iorque a chuva não vem do céu, vem do chão”. One way & another & another, lê-se numa série recente de trabalhos do autor. De todas as maneiras ao mesmo tempo, a possibilidade de todos os caminhos, as maneiras de levar todos os tempos à comunhão, a contemporaneidade, portanto.
Este é um tema  de The Nightman Cometh (2011) de Yang Fudong (Pequim, 1971). Numa paisagem coberta de neve (a preto e branco), um guerreiro de tempos antigos: ferido e perdido depois de uma batalha perdida. Entre sonho e reflexão, hesita sobre o caminho a tomar e os seus pensamentos dão lugar a três personagens com roupas modernas que, na mesma paisagem, partilham as suas dúvidas e expectativas.
Fudong descreve o filme não como histórico ou alegórico mas como “neo-realista”: “‘Neo-realismo’ é um teatro da história onde entram em jogo as condições correntes das sociedades contemporâneas. Quem realmente existe é o guerreiro nobre com o seu traje de época ou o fantasma com roupa moderna? Quando a cena do campo de batalha e outros eventos históricos aparecem e reaparecem, eles pertencem a quê, ao passado, ao presente ou ao crepúsculo do futuro?”.
The Fifth Night (2010), outra obra incluída na recente exposição na Galeria Marian Goodman, apresenta em 7 ecrãs - a acção vai transitando de uns para outros – estilizadas cenas do quotidiano numa praça que evoca Xangai nos anos 30. Diferentes grupos de  pessoas, na sua maioria homens e mulheres jovens, vão passando, descansando, cruzando olhares e trajectos que nunca se chegam a encontrar. Vamos descobrindo sucessivos fragmentos do espaço até compreendermos que estão todos no mesmo lugar - mas não sentimos que estejam juntos - e que tudo está afinal a ser filmado. Quererá isto dizer que não esteja a ser vivido ?
Lidamos aqui com características da nossa contemporaneidade que a torna talvez diferente de anteriores contemporaneidades. (Hipótese 1) Não só todos os tempos existem ao mesmo tempo, num tempo que não sabemos qual é - embora saibamos que tem de ser o presente -, como não é possível distinguir entre realidade e representação. Os novos meios tecnológicos, no âmbito do cinema e da realidade virtual, fazem com que esta impossibilidade de distinção seja uma evidência técnica (uma questão crucial da reflexão artística atual é a revisão das noções de documentário e ficção e das relações entre elas). Podemos ver com o maior detalhe realista coisas que nunca aconteceram ou aconteceram há muitos séculos atrás e, ao mesmo tempo, por mais câmaras que lhes apontem, não conseguimos ver o que se passa neste momento em praças cheias de pessoas por esse mundo fora, porque ninguém sabe para onde virar a câmara nem o que fazer com o que ela vê. Mas a questão não é tecnológica. Diz antes respeito à noção de realidade e à necessidade do seu abandono ou de uma nova conceptualização que lhe dê textura. Uma reinvenção da terceira dimensão não, agora, na pintura, mas na velha realidade, ela própria.

(Hipótese 2)
Na realidade, aquilo a que as pessoas chamam realidade (incluindo as pessoas que acham que criticam a dita realidade) é tão desprovido de sentido que somos forçados a concluir que não existe. Mas então o que é que existe? Existem os corpos vivos, ou seja os corpos que se mexem, e existe o cinema. Vamos por partes. Mas então os corpos vivos não são reais? São, mas, pobres corpos, não chegam para fazer uma realidade, muito menos “a” realidade. O cinema é preciso fazê-lo. Pode-se fazer tudo o que se quiser e depois de estar feito é eterno como a vida. Mas não é a mesma coisa. Para acabar rapidamente com esta deriva especulativa que talvez pareça absurda digamos que não se deve confundir a vida com a realidade. Só há vida.
Já é um hábito. Quando vou à Galeria Marian Goodman, a menos que seja uma inauguração seguida de jantar, passo depois pela Abercrombie & Fitch para descontraír e apreciar um dos melhores castings do mundo (refiro-me aos funcionários). É difícil suportar a música e a roupa só é possível porque a banalidade a salva da vulgaridade mas as pessoas fazem fila de espera para entrarem ou serem fotografadas ao lado do rapaz de tronco nu que adorna a entrada (no Inverno põem-lhe um aquecedor por cima ou um casaco de peles, sintético, imagino).
Ouso falar desta loja porque lhe descobri alguma legitimidade artística na pessoa do autor que faz as pinturas murais que acompanham as escadas. Na galeria Clampart, em Chelsea, soube que se chama Mark Beard. A exposição que assina enquanto curador reúne pinturas de Hippolyte-Alexandre Michallon (1849-1930) e Bruce Sargeant (1898-1938). Segundo as biografias disponíveis, Michallon, de origem francesa, ensinou em Londres e caiu em descrédito, no início do século XX, devido à sua recusa do modernismo e fidelidade à representação académica do corpo humano. Em 1922, Sargeant (de quem Beard diz ser sobrinho-neto) era o seu único discípulo e se não tivesse morrido aos 40 anos teria alcançado o prestígio de nomes como Whistler, Thomas Eakins ou Winslow Homer, “artistas com os quais o seu estilo muitas vezes é comparado”. Trata-se de personagens inventadas e todas as pinturas são feitas por Beard.  Vários tempos ao mesmo tempo com realidade, história e ficção entrecruzadas.
Falamos de corpos em movimento e talvez não seja por acaso que a performance é a nova estrela em ascensão no panorama da arte contemporânea. A retrospectiva de Marina Abramovic, no MoMA, foi o momento revelador e, enquanto a artista se encena cada vez mais enquanto diva da performance e atinge a consagração absoluta, a Bienal do Whitney consagrou a tendência, dando à dança e à performance um lugar e um espaço (físico, um andar inteiro, e conceptual) da maior relevância e um prémio.
Numa discreta esquina de uma zona de passagem que passou despercebida a muitos visitantes da Bienal, entre paredes cobertas com pequenos esquemas do interior de uma complicada casa, o manequim de um rapaz muito jovem, com um fantoche numa mão, diz um monólogo interior em que os labirintos indecifráveis do seu tenro espírito se confundem com corredores paralelos de uma casa sem fim e sem saída. De vez em quando os lábios mexem ou o peito respira soltando um suspiro. O texto é de Dennis Cooper, um dos maiores escritores americanos vivos (pensem em Sade ou Hervé Guibert no século XXI). Leia-se o livro mais recente, The Marbled Swarm, (em Portugal o autor está editado pela Bico de Pena, com Purosexo.com e Fio Solto), que se relaciona diretamente com esta peça. A habitual fixação em corpos jovens atormentados, na carne e no espírito, e abandonados a cruéis narrativas, errantes e sem redenção. O resultado final desta colaboração entre o escritor e a artista Gisèle Vienne há-de vir a ser uma encenação ou performance.
Quando entrei na Galeria Elizabeth Dee, para ver a exposição de Ryan McNamara (jovem artista americano que trabalha em dança, performance e artes plásticas), o artista convidou-me, como a todos os visitantes, durante duas semanas, para me associar a umas pessoas que já lá estavam numa pequena coreografia que ele propôs e fotografou. A mim, como não quis fazer exercício físico, coube-me ficar em pé em cima de uma cadeira enquanto um casal circulava à minha volta mexendo os braços. Com todas as fotografias que produziu, McNamara fez uma série de colagens com as quais cobriu painéis, esculturas e outros objetos apresentados no mesmo espaço, nas duas semanas subsequentes, constituindo a segunda parte da exposição. Uma maneira original e eficaz de responder a uma questão da maior atualidade – como é que se expõe performance? - , tendo até o cuidado de assegurar a participação do público.  
Para entrar no stand da Galeria Sean Kelly, na Feira de Arte em Basel, não passei por uma porta mas pelo estreito espaço disponível entre um homem e uma mulher nus, virados um para o outro. É uma recriação de uma performance de Marina Abramovic (Imponderabilia, 1977). Perguntei o preço mas por estranho que pareça a obra não está à venda.


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 Última das três crónicas nova-iorquinas publicadas no Jornal 'Público', a 16/17/18 Agosto de 2012, na secção de Cultura. (pp: 24-25)

UM ABRAÇO CADA VEZ MAIS APERTADO




“Let the best man win!”
Gore Vidal


Foi uma alegria ver The Best Man (Gore Vidal, encenação de Michael Wilson) no Gerald Schoenfeld Theatre, decorado como se para uma Convenção Partidária à americana, com bandeiras por todo o lado e funcionários com chapelinhos a condizer. Uma comédia de bom gosto sobre tráfico de influências, jogos de sotaques retóricos, boas maneiras e chantagem (tudo o que adorna uma democracia saudável) nos bastidores da escolha de um candidato presidencial (em rigor nos quartos do hotel onde decorre a convenção). Quão deliciosa seria a vida política se Gore Vidal lhe escrevesse todos os diálogos e se os papéis fossem interpretados por pessoas como James Earl Jones, Angela Lansbury, John Larroquette ou Candice Bergen.
Joseph Alsop não lhes escrevia os discursos mas andava perto. Foi um dos mais influentes comentadores políticos americanos nas décadas de 1950 e 60, com acesso directo às orelhas dos Presidentes. Imaginar um tempo em que o que se escreve num jornal tem alguma importância e são os jornalistas que telefonam aos políticos a dar conselhos.
John Lithgow  tem uma interpretação admirável como Joe Alsop em The Columnist (David Auburn, encenação de Daniel Sullivan), uma peça um pouco escolar e entediante, se excetuarmos a cena de abertura em que um jovem agente da KGB (Brian J.Smith) se veste depois de um exercício de espionagem na cama, destinado a posterior chantagem.
Para não falar só deste lado do poder também vi Death of a Salesman (Arthur Miller, encenação de Mike Nichols) que, apesar da notável performance de Philip Seymour Hoffman, continua a parecer-me uma das peças mais desagradáveis e menos inteligentes do respectivo período. No entanto, milhares de pessoas precipitaram-se na blogosfera alegando as mais emocionadas identificações com os desgraçados protagonistas.
Uma pungente demonstração da tristeza do mundo contemporâneo e da miséria ideológica a que parece condenado.
Da representação teatral temos de passar para a política já que (Hipótese 1) a política é  gestão de imagem e discurso : encenação, texto, televisão, internet.
Vi umas pessoas que estavam em Washington Square e que alguns cartazes e papeis me  revelaram pertencerem ao movimento dos “ocupadores”. Há algo de tocante, quase poético, nesta insistência em ser ouvido apesar de não ter nada para dizer, estar presente a nada fazer. Tudo muito anos 70. Já saiu um disco em que os cabeças de cartaz são os meus queridos David Crosby & Graham Nash e há uma participação de Yoko Ono, pessoas que tanto nos alegram só por estarem vivas.
É interessante  ouvir os “ocupadores” falar dos 99% que dizem representar, os que não são os mais ricos (1%). Era tão bom que tivessem uma ideia sobre a forma de organizar uma sociedade mais feliz. Poderiam criar um movimento político e não teriam dificuldade em ganhar eleições (sempre são 99%). É uma pena.
O que nos obriga a falar de política, política a sério, ou seja, teatro sob a sua forma mais vulgar. Falemos das presidenciais.
A primeira vez que vi Rick Santorum (ainda alguém se lembra dele?) pensei que era um wannabe actor contratado nos confins da sua terra (personagem que sempre inspira algum carinho) para animar as ficções da Fox News (não é que Bill O’Reilly precise de ajuda) que, ainda assim, já é, 24 horas por dia, a melhor non-stop truly conservative soap-opera dos saudosos anos 50. Vieram-me as lágrimas aos olhos quando o ouvi falar do Demónio, e da maneira como ele se insinua junto de casados e abençoados casais heterossexuais para os induzir a usar contraceptivos, ou do modo como na europeia Holanda os idosos são obrigados pelo Estado a andar com uma pulseira antes de, quando se tornam demasiado idosos, serem mortos nos hospitais públicos. Deixei as lágrimas escorrer quando uma assessora de imprensa, confrontada por um ofendido funcionário da embaixada da Holanda, lhe respondeu com um profundo sorriso : “He always speaks from the heart” (“Ele diz sempre o que lhe vai no coração”). Que mais se pode pedir ?
Apesar da Fox, não deixa de ser enigmático que um dos políticos mais carismáticos dos últimos tempos, com a cor certa, um Prémio Nobel e uma retórica quase evangélica que já arrebatou Berlim, Chicago e Hollywood, esteja empatado nas sondagens com Mitt Romney (entretanto, na última quarta-feira Obama passou-lhe à frente), a respeito do qual não ocorre nada para dizer.
É estranho que Obama não tenha conseguido convencer uma clara maioria de americanos que a culpa da crise económica era dos operadores financeiros e não do governo federal (e dele próprio), nem tenha conseguido explicar as vantagens da sua grande aposta, a reforma do sistema de saúde (parece que também ninguém se deu ao trabalho de ter a certeza que a reforma não era inconstitucional). Já há quem insinue que, afinal, Hillary Clinton era o homem certo para o lugar. Ela tem quase tudo what it takes.
Claro que a culpa é sempre da economia (e/ou da religião) mas quem ler o último livro de Paul Krugman (End this Depression Now!), mais um Prémio Nobel, poderá perguntar porque é que, com a devida vénia a Keynes, não se aplica a receita (os estímulos) para acabar com a crise. Ele diz que é tão fácil.

(Hipótese 2)

Mas há um problema. O saber económico não é uma ciência nem nada que se pareça. Não há consenso entre os economistas nem sequer em relação aos princípios fundadores e objectivos fundamentais do exercício da disciplina. Mesmo que coincidam no diagnóstico dividem-se entre terapêuticas opostas e incompatíveis. Chega a ser cómico. Como alguém já disse, nunca aconteceu nada que não fosse previsto por um economista, só que, perante a mesma circunstância, tudo o que não aconteceu também foi previsto pelos economistas.
Por isso é tão fácil deslocar as questões para o plano ideológico e defender a liberdade e o direito à luta pela felicidade (que algumas pessoas associam à obtenção de muito, muito, muito dinheiro) como prioridades absolutas, mesmo contra o mais elementar bom senso em matéria de política económica. O discurso anti-capitalista mais radical (com apogeu histórico no terror comunista) não faz mais do que reforçar o paradigma oposto.
Também gostava de falar de política na sua forma mais superior até porque se trata da experiência mais substancial desta Primavera nova-iorquina. O ciclo O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner, encenado por Robert Lepage no Metropolitan. Não sei falar de música nem cantores e tive sorte porque Lepage diz que fez uma encenação destinada a quem não é melómano. A grande máquina cénica que provocou controvérsia é uma espécie de teclado gigante cujos movimentos vão criando rampas, escadas e plataformas, servindo ainda de suporte às projecções que constituem uma parte substancial da cenografia. Não me incomodou. 
A hipotética equivalência entre palco e ecrã é, aliás, um tópico fascinante para debates estéticos contemporâneos.  
O meu cenário preferido é (apesar de Chagall) o próprio Metropolitan, por fora e por dentro, de fora para dentro e de dentro para fora, as escadarias e, acima de tudo, em todos os sentidos, os candeeiros. Gostei muito de ver as quatro óperas em sequência em duas semanas. Torna-se possível tentar perceber. Tentar.

O meu herói é Wotan. O homem, ou seja, quero dizer, o Deus (trata-se afinal do último Deus ou do primeiro homem ou será a mesma coisa?) , fez tudo o que era possível, e mesmo algumas coisas impossíveis, e mesmo assim saiu tudo mal.
O problema, já sabíamos, é o problema de saber o que é que se pode saber. Desde o 1º ano da universidade, nutro uma grande simpatia pela epistemologia porque se for levada a sério consegue cancelar todos os outros saberes.
Será possível conciliar o conhecimento, o poder, a lei, o amor e a liberdade? Parece que não. Nem para os deuses, nem para os heróis, nem para os homens e mulheres comuns.
É possível ser feliz? Parece que não mas se querem mesmo saber perguntem a Wotan.
Há agora uma nova espécie de conselheiros terapêuticos, com procura crescente, chamados wantonists (não confundir com wotanists), cuja função é dizer às pessoas o que é que elas querem. Sempre é um ponto de partida.
Mas talvez a ignorância seja uma forma de santidade. Será que um abismo de ignorância pode produzir uma Santa?
Há muitos anos que me perturba o facto de dizerem que não se deve ficar o dia inteiro deitado numa praia a apanhar Sol, com pequenas pausas para banhos de mar. Sarah Palin libertou-me deste problema. Segundo se ouve em Game Change (documentário ficcionado sobre a campanha presidencial) fico a dever-lhe a única explicação que até agora consegui compreender em relação ao problema do aquecimento global.

É Deus a querer abraçar-nos com mais força ainda. Nunca quis outra coisa na vida e no meu caso nem precisa de ser Deus.



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Segunda das três crónicas nova-iorquinas publicadas no Jornal 'Público', a 16/17/18 Agosto de 2012, na secção de Cultura. (pp: 26-27)

EU E O BEAU NA CIDADE QUE NUNCA DORMIU : NOVA IORQUE




“ -  I’m trying to recover.
   - From what, from life ? ”   
(de uma conversa com Borriss Mir)

Ele disse que se chamava Beau. Faz pensar em Beau Brummell, modelo insuperável de dias perdidos, Londres, final do século XVIII, dandies. Um século depois foi Oscar Wilde. No século passado, Andy Warhol inventou-se. Agora,    como é que se pode ser dandy em Nova Iorque no princípio do século XXI ?
 
A pergunta não é fútil porque (Hipótese 1) seria útil encontrar uma atitude que combine o distanciamento necessário ao exercício da inteligência (um estilo: um distanciamento estético; porque o distanciamento intelectual, dito crítico, é uma falácia) e a empatia com a infinita diversidade do mundo (cosmopolitismo), sem rendição ao obsceno dramatismo com que o mundo se expõe sob os modos mais  grosseiros. Para desenhar esta atitude as artes e ficções são talvez mais adequadas que análises correntes que pressupõem a existência da realidade que deviam produzir.
É  uma questão decisiva mas não adianta muito para este texto. Não é possível. Vale mais esperar pelos novos anos 20, pensar em decadências e smokings cor-de-rosa e comparar com Gatsby. Não era Beau mas sim Bo, como em Boris, o pai nasceu na Rússia, a mãe na Letónia. É um músico ou cantor ou apenas, como qualquer um, performer. O suficiente para me levar a sítios que estiveram e se calhar ainda estão em moda no Lower East Side.
Era para ser Brooklyn mas levaram-me para ali. Parece tudo igual a East Village, há 30 anos, quando fui pela primeira vez a Nova Iorque e me disseram, sem serem conservadores, para não andar pela Bowery, não passar para baixo de Canal Street e não ir ao Bronx. Era perda de tempo, não havia lá nada para ver. Não é nada tudo igual. É melhor porque estamos vivos e Nova Iorque é imortal. Nem todos os fundamentalistas do mundo, todos juntos, poderiam destruir o coração da liberdade. Hão-de morrer todos, um por um, porque a vida é a liberdade.
Nunca percebi como é possível não gostar de Nova Iorque. 

(Hipótese 2)
Nova Iorque não é o centro real de um mundo tão grande e tão global que já não pode ter centro. Também é cada vez menos, embora ainda o seja, o centro do mundo das artes, porque este se está a tornar, pouco a pouco mas depressa, de facto, o mundo. Depois do 11 de Setembro, acontecimento inaugural do século XXI,  Nova Iorque é apenas, mas de modo absoluto, o centro mítico (no sentido em que se fala de Atenas ou Roma) de um Império da Liberdade que se distingue pela capacidade de, enquanto forma cultural, acolher todos os que reclamam a liberdade do exercício da imaginação e o direito à procura da felicidade. A Internacional da Liberdade contra as Internacionais do Terror.
Um dos lugares chamava-se Hotel Chantele e havia um Frank a oferecer bebidas  a quem conhecia quem o conhecia. O costume. Há quem diga que nunca se é demasiado rico, nem demasiado magro. Não creio que se possa ser mais magro  que estes jovens que se alimentam de margaritas, saladas e migalhas de drogas. É sempre agradável estar na presença de um bando de frágeis tesouros. A quem não persiga o ouro da magreza, Nova Iorque oferece múltiplas possibilidades. Até é possível comer estrelas Michelin a preços relativamente módicos desde que seja à hora de almoço e se dispense o vinho e a sobremesa.
Fiquei comovido quando ao fechar da noite ouvi uma canção muito antiga chamada Let’s Dance. Se não estivesse sentado era capaz de ter dançado. Assim só me levantei para ir dali para um sítio que não tinha nome nem existia antes de pessoas mais ou menos recomendáveis que estavam na rua nos terem dito para ir lá ter dali a meia-hora que foi o tempo de montar uns plasmas, arcas frigoríficas, cadeiras desirmanadas e uns lençóis pendurados do tecto para criar ambiente. Um after-hours artesanal com cerveja barata e tudo.
Num outro dia, depois de almoçar, estava a chover e estava por ali numa esquina a discutir a questão da magreza com o jovem realizador Daniel Schmidt quando apareceu uma pessoa muito magra a perguntar onde é que podia comprar cigarros. Uma magreza e penteado peculiares, assim de tipo mais antigo e europeu.
Uns dias depois, na estreia de Antigone Sr. Twenty Looks or Paris is Burning at The Judson Church (L) no New York Live Arts, vi que era Rob Fordeyn, um bailarino belga tão admirável quanto Thibault Lac, francês, que (com Stephen Thomson e Ondrej Vidlar) faz o novo espetáculo (parte de um work-in-progress) do coreógrafo (e também bailarino) Trajal Harrell.
O que poderia ter acontecido se os bailarinos do Voguing no Harlem se tivessem encontrado com os bailarinos “pós-modernistas” do Judson Dance Theatre ?
Esta resposta passa pela tragédia grega e desfiles de moda. “Mais do que uma ficção histórica trata-se de transplantar a proposta para um contexto contemporâneo. Esta experiência era impossível nos Bailes ou em Judson, mas, aqui e agora, criamos uma terceira possibilidade” (press-release).
Numa conversa anterior ao espetáculo, Bill T. Jones referiu que seria interessante “levar este trabalho de volta às comunidades onde o Voguing teve a sua origem” e fez algumas observações sobre o peculiar modo de andar, pleno de consequências, dos homens negros. O que se confirma, mesmo sem ir ao Bronx, observando namorados a passear ao pôr do Sol no Hudson entre West Village e Tribeca.
Harrell sublinhou que lhe interessa sobretudo explorar as possíveis histórias alternativas, o trabalho da “imaginação histórica”. No programa, André Lepecki escreve: “O que é necessário não é apenas olhar (repetidamente, pelo menos vinte vezes...) para Judson e Harlem mas ligá-los através das mais improváveis conjunções, nas mais diversas instâncias, de modo a produzir tantas contramemórias quantas as ocasiões em que a obra for dançada, em tantos presentes quantas as versões que da obra se proponham”.
Imaginar o  pagode baiano dançado em pontas é uma das minhas fantasias favoritas.
Duas coisas aconteceram ao mesmo tempo mas não se cruzaram. Se hoje as cruzarmos, quantas coisas estão a acontecer? A história muda? E se forem coisas que não aconteceram ao mesmo tempo? E se as cruzarmos com coisas que nunca aconteceram ou não chegarão a existir apesar de estarem a acontecer?
É um pouco confuso porque se trata não já da condição pós-moderna mas da era que se lhe seguiu. Todos os tempos e todos os lugares, ficção e realidade.

(Hipótese 3)
É mais uma questão decisiva: os cruzamentos dos espaços e tempos socioculturais; a indissociabilidade de uma infinita diversidade de tempos e espaços passados, presentes e futuros, reais, imaginários ou ficcionais.
Tudo o que existe é um produto contingente da dinâmica do processo de confronto e negociação entre estes espaços e tempos. É por isso que não há identidades, a própria palavra identidade é um abuso ideológico. Não se devia utilizar. Só há cruzamentos, contradições, confrontos e negociações sempre em processo de metamorfose. A extrema complexidade dos mundos da arte, hoje, e a generalizada implantação de dinâmicas de contaminação transdisciplinar é uma consequência deste fenómeno social e cultural mais geral, global.
A propósito do seu trabalho sobre o último filme (inacabado) de River Phoenix falei com Slater Bradley sobre a impossibilidade da nostalgia: o que já foi continua a ser ao mesmo tempo que o que é. Os fantasmas estão entre nós e são mais ou menos como nós. Isso provoca melancolia (título da exposição deste artista que irá inaugurar a 20 de Setembro na Galeria Filomena Soares).
Esta conversa foi à volta de uma piscina no telhado de um clube-hotel chamado Soho House que parece estar em voga (é preciso dar o nome e mais o nome de um membro anfitrião) para a gente das artes. Estava muito Sol mas é estranho porque a cena pertence a Los Angeles ou Miami e no entanto estamos em Manhattan e sem praia e também pode ser assim.
Uns dias depois, Slater mandou um SMS a dizer que estava a pensar mudar o título da exposição para Le Diable, Probablement. Dennis Lim (crítico de cinema no New York Times e Artforum) tinha-me dito que a não perder em Nova Iorque, nos cinemas, só as novas prints dos filmes de Robert Bresson.
Vi Le Diable, Probablement, talvez em estreia mundial, no Grande Auditório da Gulbenkian. Lembro-me da emoção com que João Bénard da Costa o apresentou    e sei que não dormi e passei a primeira aula da universidade do dia seguinte a escrever não sei o quê (não encontro o papel) a propósito do filme. Voltou a funcionar. Não é fácil ser mais eloquente nem mais atual. Os tempos estão a ficar todos ao mesmo tempo. “Qui nous manoeuvre en douce? Le diable, probablement”. O filme passou na BAM (Brooklyn Academy of Music) e já que estava  daquele lado fui comer um steak ao Peter Luger porque há quem diga que  é o melhor steak do mundo.
Gostei muito. 

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Primeira das três crónicas nova-iorquinas publicadas no Jornal 'Público', a 16/17/18 Agosto de 2012, na secção de Cultura. (pp: 26-27)

ESTAR E NÃO ESTAR / BONECOS




João Pedro Henriques e João Rui Guerra da Mata
Santo António, Mimesis Art Museum, Coreia do Sul


Santo António de João Pedro Rodrigues

ESTAR E NÃO ESTAR
PARA JOÃO PEDRO RODRIGUES

Uma figura moldada por um tecido sintético negro move-se com uma determinação cujo desígnio ou destino não conseguimos adivinhar sobre uma extensa paisagem de detritos noturnos. Esta é uma descrição simples de  uma das últimas sequências de “O Fantasma” (2000), primeira longa-metragem de João Pedro Rodrigues, que desde logo o estabeleceu como um dos autores mais significativos e originais da sua geração.  
Quem quisesse evocar referências poderia falar de uma combinação peculiar entre ecos de Bresson e de Pasolini, tornada inconfundível por uma forma única de olhar (enquadrar) e por uma forma também única, e radical, (ambas se mantêm até hoje) de trabalhar o desenho das personagens e dos corpos até ao limite da exploração das suas possibilidades ou das suas impossibilidades (físicas e/ou ficcionais). Mais exatamente trata-se de trabalhar sobre a linha de delimitação (e os problemas da inviabilidade da sua rigorosa definição) entre as possibilidades e impossibilidades dos corpos. Por isso, a questão das metamorfoses dos corpos assume um papel preponderante que se torna ainda mais explícito nas duas longas-metragens seguintes “Odete” (2005) e “Morrer como um homem” (2009). As metamorfoses incluem, na sua expressão mais evidente, o uso de diferentes tipos de adereços (associáveis, por exemplo, às práticas s/m, fetish ou drag) ou a modelação pelo body-building dos corpos filmados na recente curta-metragem “O corpo de Afonso” (2013). No entanto, as expressões mais relevantes desta lógica da metamorfose consistem sobretudo na elaboração de surpreendentes e complexas formas de relacionamento e transmutação entre mortos e vivos ou entre homens e mulheres (incluindo o tema da transexualidade). O potencial metamórfico dos seres (físicos ou ficcionais) inclui ainda as relações entre seres humanos e animais que - desde a primeira curta-metragem “Parabéns” (1997) - é fundamental no trabalho do autor, incluindo esta instalação em que, entre os seres vivos, só os animais, nas suas breves aparições, sugerem a presença de uma vitalidade que se costuma considerar exclusiva dos humanos. Para além dos animais, as presenças mais vivas são as dos anúncios publicitários rotativos e as dos automóveis.

Com a instalação “Santo António”, realizada especialmente para o Mimesis Art Museum, a partir  de imagens registadas durante a rodagem da curta-metragem “Manhã de Santo António” (2012), João Pedro Rodrigues, depois de consagrado no mundo do cinema, faz a sua primeira intervenção no chamado mundo das artes plásticas. Este movimento biunívoco entre o mundo do cinema (festivais e salas de cinema) e o mundo das artes plásticas (museus e salas de exposição) tem adquirido um significado preponderante na conjuntura artística das últimas décadas envolvendo nomes tão significativos quanto Apichatpong Weerasethakul, Chantal Akerman, Douglas Gordon, Eija-Liisa Ahtila, Isaac Julien, Matthew Barney, Pedro Costa ou Yang Fudong.  Das galerias para as salas de cinema ou dos festivais de cinema para os museus estes são exemplos muito diversificados de um trânsito cada vez mais fluído que leva muitos artistas hoje em dia a trabalhar já de forma ddireccionadae diferenciada para os dois circuitos. Estes trânsitos são feitos dos modos mais variados e não cabe aqui sugerir uma tipologia nem fazer comparações com João Pedro Rodrigues até porque se trata do seu primeiro trabalho neste contexto.

Consideramos que a forma encontrada para esta instalação, que nos situa no interior de um cubo cujos 4 lados são totalmente ocupados por 4 imagens, é particularmente feliz e adequada à valorização de dois aspetos fundamentais relacionados com a concepção espacial desta narrativa. Neste filme (tal como no filme que lhe deu origem) há dois tipos de espaços : um espaço quadrado, potencialmente fechado, que é desenhado pela malha urbana de prédios e escadas e tem a sua expressão mais acabada na praça quadrada dominada pela estátua do Santo ; e um espaço vectorial unidirecional, abstracto e indeterminado, que não se confunde nem com as ruas nem com as irrupções da natureza (veja-se como uma personagem atravessa as próprias árvores) e que é o espaço desenhado pela deslocação das personagens segundo uma lógica e um horizonte que, mais uma vez, não podemos adivinhar.
A montagem (na dupla acepção de editing e instalação) das imagens no interior de um cubo permite, em simultâneo, instaurar uma situação claustrofóbica (em que estamos rodeados por diferentes fragmentos de um mesmo espaço) e uma dinâmica de fuga interminável, porque as deslocações das personagens deslizam de um ecran para o outro, de um lado para o outro, traçando um movimento sem princípio nem fim, apesar dos limites físicos do local onde nos encontramos.

Voltando ao início arriscaria dizer que este filme começa onde acaba “O Fantasma”. Para além do raccord entre as figuras compare-se a frase que acompanhou a divulgação de “O Fantasma” – “Não se pode viver sem amor” - com a quadra de Fernando Pessoa evocada  nesta instalação “ ... “.
Importa reconhecer, entretanto, que  esta obra surge muito tempo depois e muitos corpos depois. Muito tempo depois, no que diz respeito ao tempo das transformações sociais, culturais e comunicacionais, designadamente o advento do tempo das vãs glórias digitais. Muitos corpos depois, no sentido de uma progressiva exaustão das possibilidades de uma produtividade física ou narrativa (produção de imaginário) auto-sustentada pelo próprio corpo.
A narrativa do filme percorre um arco muito rápido e muito tenso (embora o olhar e os enquadramentos ultra-rigorosos o façam parecer frio e suave) entre a banalidade urbana e quotidiana de uma circunstância típica da cidade de Lisboa (junto à Praça de Alvalade, onde se encontra a estátua de Santo António, um grupo de jovens regressa das comemorações da festa popular da noite de Santo António) e a absoluta indeterminação da situação ontológica ou metafísica destes jovens seres que se movem numa direcção cujo sentido nos escapa.  
Eles têm ainda os atributos físicos dos corpos humanos (urinam, vomitam, um tem manchas de sangue?) na camiseta, alguns estão semi-despidos, permitindo admitir alguma prévia actividade física) mas não falam e não nos é concedido acesso aos seus rostos ou olhares (será que foram apagados como nalguns filmes de terror particularmente aflitivos?). Caem, levantam-se e continuam caídos. Adormecem e continuam acordados, acordam e continuam a dormir. Parecem, por vezes, como é o caso da protagonista, ser guiados por telemóveis que nunca abandonam mesmo que o caminho conduza ao afogamento. Este pormenor não parece ser muito importante. Talvez no universo digital em que pequenitas máquinas ( e só nelas a custo se vê o reflexo de um rosto) conduzem os homens a questão da morte tenha outros contornos. Talvez estas personagens sejam já seres ressuscitados, uma espécie de zombies que a saciedade tornou inofensivos, ou objectos de uma intervenção para-psicológica extra-terrestre cujo objectivo não nos foi revelado. Ou talvez sejam apenas pessoas normais, pessoas como nós (admitindo que nós somos pessoas normais, o que é pouco provável), e estejam apenas mais ou menos ressacados. Continuam a andar não se sabe bem porquê nem para onde e cada um de nós é livre de os seguir ou não.

(Agora, entre parêntesis, surgem algumas imagens que me disseram terem sido filmadas em Acapulco. Mas, na verdade, de facto, de onde vêm estas imagens? De um improvável continente a que outrora nos habituáramos a chamar realidade ? Ou serão talvez, apenas (?), imagens interiores de um pensamento?)

O único néon de imagens no interior de um cubo permite em simultâneo que as mãos façam parecer frio. O único ponto de vista está atrás dos nossos olhos e é o ponto de vista de uma câmara. A câmara de João Pedro Rodrigues. O olhar do Santo, no final, é um olhar cego e mudo que não nos traz a salvação. Ou será esta a salvação?

Santo António de João Rui Guerra da Mata


BONECOS
PARA JOÃO RUI GUERRA DA MATA

O conjunto de desenhos de João Rui Guerra da Mata apresentado em paralelo à instalação “Santo António”, de João Pedro Rodrigues, permite desenvolver algumas reflexões sobre a natureza das respectivas estratégias de figuração. Designamos por estratégias de figuração o conjunto de processos através dos quais um determinado modo de olhar para os corpos e avaliar o modo como os corpos se põem e movem no mundo, dá lugar a uma determinada forma de apresentação ou representação desses mesmos corpos.
Sabemos e poderíamos adivinhar que os desenhos de JRGM – uma pequena selecção de um vasto conjunto de trabalhos do mesmo tipo que vem realizando desde 1985 - partem de um determinado modo, pessoal, de olhar e avaliar corpos, designadamente, neste caso, alguns dos corpos dos actores e outros colaboradores envolvidos na produção do filme “Manhã de Santo António” que esteve na origem da instalação “Santo António”. A observação dá lugar, na maioria dos casos, a fotografias que servem de ponto de partida para um trabalho de transformação das figuras, sobretudo rostos ou, por vezes, torsos.
O processo passa por diferentes fases que, no essencial, correspondem a sucessivas etapas de um processo de eliminação de informação específica particularizadora, no sentido psicológico, da pessoa em causa,  e de subsequente valorização de determinados traços (também no sentido gráfico literal da palavra) da sua fisionomia e postura : e não, de modo algum, da sua expressão, já que se trata, antes de mais, de banir a expressão.
Se o ponto de partida da relação com o corpo representado é a fotografia (por vezes associada aos métodos próprios do trabalho de casting), já o tipo de traços retidos e o tipo de linha que os configura poderiam ser relacionados, na sua origem, com alguns exemplos consagrados da BD francesa e belga, ou, nalguns aspetos mais particulares, com a BD e a animação japonesas.
O resultado final, apesar de se tratar de um trabalho totalmente feito à mão, tem pontos de contacto com formas de figuração gráfica e digital que hoje se multiplicam nos écrans das pequenitas máquinas sem as quais tantas jovens criaturas parecem não saber o que fazer nem com as mãos nem com os olhos.
... e no entanto, mesmo sem alma (como se diz ser próprio de alguns animais) e sem carne (como é próprio das imagens) a existência de corpos (ou uma espécie de pré-existência de corpos) é sinalizada pelas linhas que lhes designam pontos de consistência e pelos traços que lhes apontam vetores de deslocação que, quem sabe, um dia, ascenderão ao estatuto de vocações.

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Texto realizado por ocasião da exposição 'Santo António' de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, no Mimesis Art Museum, na Coreia do Sul, inaugurada em Novembro 2013.