AS MEIAS







Que tipo de meias é que um homem pode ou deve usar ou não?  Não se trata de um tema fútil, muito menos agora que se aproxima a época da praia. O corpo sempre foi um dos meus temas, aliás é mais que um tema. Portanto: arte, corpo, pernas, pés, meias. Vamos ao que interessa. Devem ser pretas. São como os automóveis nos tempos dos bons velhos Ford – os automóveis – que podiam ser de qualquer cor desde que fossem pretos. Esta é a regra. Há excepções, uma excepção: o branco. Outras cores não se afiguram efectivamente muito possíveis.

Excepto em casos muito particulares. Os arquitectos e os designers, por exemplo, parecem susceptíveis de usar meia das mais variadas cores e até mesmo estampadas; isto é, com uma espécie de bonecos. Os escritores, sobretudo os poetas, são, pelo seu lado, absolutamente imprevisíveis e fica-lhes bem.

Regra geral, porém, o preto é a única cor possível para as meias de um homem.

O que está muitíssimo longe de resolver todos os problemas. Vejamos quais são então alguns dos problemas que subsistem. Não nos chegaria o espaço para examiná-los todos e desta vez eu fiz questão que a fotografia saísse grande.

Apenas alguns aspectos técnicos. As meias têm de ser justas, para não deslizarem, mas não demasiado justas, para não marcarem a carne, deixando uma desagradável impressão ao serem retiradas. As meias têm de estar esticadas, para evitar um ar desleixado, mas não demasiado esticadas, para não sugerirem obediências burocráticas. Devem ser suficientemente espessas, para não serem, sequer, translúcidas, mas suficientemente finas para não adquirirem volume próprio.

Agora a excepção: as meia brancas. Em adultos, só em casos muito raros com sapatos e calças muito especialmente seleccionados. Calças talvez brancas ou em tons pastel.

Já os adolescentes afiguram-se-nos particularmente felizes com meias brancas. Podem mesmo levá-las vestidas para a cama. Mas os adolescentes, como se sabe, até podem andar sem meias. Coisa evidentemente absolutamente proibida para um adulto, mesmo a caminho da praia. Um adulto sem meias, só descalço. Quando se descalçam os sapatos descalçam-se as meias, quando se calçam sapatos, calçam-se meias. É simples.

A questão das sandálias, naturalmente, não se põe, porque os homens não usam sandálias.

Depois há as loucuras, as transgressões. A história de Boris Ieltsin que terá sido visto num aeroporto, cambaleante de álcool, sentado na mala, só com uma meia. A meia rota no pé fora do sapato numa intervenção pública de um primeiro ministro francês. As meias brancas felpudas de Bryan Ferry a crescer como pêlos nos peitos dos pés. Extravagâncias pouco recomendáveis.

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Alexandre Melo, “As Meias”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº37,  Lisboa, Julho 2000

MARCANTONIO



Retrato de Marcantonio Vilaça


Num curto período de tempo, Marcantonio, à frente da Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo, tornou-se um dos maiores embaixadores da arte contemporânea brasileira. Em Portugal, na Europa, dos Estados Unidos, em todo o mundo da arte, a sua galeria, o seu trabalho, as suas palavras e os seus gestos, deram um contributo decisivo para colocar os nomes dos artistas brasileiros de hoje no lugar de destaque que a vitalidade e originalidade dos seus trabalhos reclamam e merecem, e que, feliz e finalmente, começam agora a ocupar. Em Veneza ou em Nova Iorque, em Lisboa ou em Paris, onde quer que se falasse da América Latina, o nome de Marcantonio tornou-se rapidamente um dos primeiros nomes nas agendas e nas conversas da gente da arte.

A partir do ponto de vista de quem trabalha num país pobre da periferia europeia, como é Portugal, é possível avaliar devidamente a dimensão ciclópica do trabalho de divulgação e promoção que é necessário desenvolver para, num curto espaço de tempo, ultrapassar uma enorme acumulada distância geográfica, histórica e cultural, e os correspondentes complexos de inferioridade, e afirmar o trabalho dos criadores dos nossos países, de uma forma ambiciosa e desassombrada, como parte plenamente integrante da dinâmica da criação artística contemporânea, à escala mundial. Para que um tal trabalho produza resultados rápidos e visíveis, são necessários um empenhamento e uma entrega sem limites.

De Marcantonio conhecemos o profissionalismo exemplar, a assombrosa energia, a absoluta dedicação ao trabalho, a obstinação sem quebra na defesa dos seus artistas, dos seus princípios, dos seus valores. Os valores de uma cultura contemporânea viva, aberta, dinâmica, cosmopolita. Uma cultura brasileira e cosmopolita, porque quando se trabalha no plano da verdade, não há contradição entre culturas locais, culturas nacionais e culturas globais. E este é o verdadeiro espírito do cosmopolitismo, o espírito de Marcantonio, príncipe brasileiro de uma arte sem fronteiras.

Falei de profissionalismo, de sucesso, de capacidade de trabalho de afirmação. De tudo isso vive o mundo da arte contemporânea e vivemos todos nós. Os que não conhecem o mundo da arte, os que nunca o viveram por dentro, e dentro de si próprios, pensam mesmo que é só disso que vive o mundo da arte: fama e sucesso. Mas não é verdade.

O que é que faz correr, então, essa coisa louca que é o mundo da arte? É a vontade de viver das pessoas que querem viver uma vida mais rica, mais intensa, mais veloz. Uma vida excepcional, que faz apelo a tudo aquilo que não tem lugar nas rotinhas burocráticas e tecnocráticas das vidas quotidianas mais banais.

Estou a falar de desejos de pessoas que querem encontrar pessoas extraordinárias, que querem gastar noites inteiras em discussões extravagantes, que querem sentir emoções fora do comum, que querem ser confrontadas com objectos incompreensíveis, que querem lidar com desafios intelectuais nos limites do absurdo. Não poupam horas, nem a energia, nem as palavras, nem os sentimentos.

É isto que faz bater o coração do mundo da arte. A vontade de sentir mais. A obstinação na exigência de mais. Mais de tudo, de outra maneira. sempre mais e sempre de outra maneira.

Todos os momentos que passei com Marcantonio foram momentos de entusiasmo, exaltação, bem estar, alegria. A alegria da comunhão, da fraternidade, da cumplicidade.

Esta é a maior riqueza do mundo da arte. E não há maior riqueza que o coração de um nos possa revelar. A alegria dos entusiasmos e dos sentimentos partilhados é imortal. Porque um dia a sentimos e, porque a sentimos, jamais a poderemos esquecer.

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Alexandre Melo, “Marcantonio”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº36,  Lisboa, Junho 2000


OBJECTOS E PALAVRAS



Jorge Molder. The Secret Agent series. 1991


Os objectos artísticos, salvo casos deliberadamente “programáticos”, raramente se submetem sem abuso a uma arrumação exclusiva, e isto por força da eficácia especifica da sua presença. Se nos pomos o problema da análise concreta de um objecto concreto, acabamos por ter de ensaiar a aplicação de todas as lógicas a todos os objectos, mesmo quando em aparente contradição com o que parecia ser a sua lógica ordinária. Ver como é que funciona. Apercebemo-nos rapidamente da larga medida em que a lógica de funcionamento do objecto vai depender das formas concretas da sua localização e contextualização social, cultural, teórica. Sendo que o nosso próprio discurso é parte integrante desse mecanismo de contextualização.

O “relativismo” inerente a esta conclusão só poderia embaraçar-nos se entendêssemos, primeiro, que existia uma verdade do objecto a descobrir e, segundo, que existia uma teoria cuja aplicação conduzia a essa descoberta. Pertencendo tais crenças a uma horizonte de anacrónicos preconceitos gnoseológicos, defendemos a pertinência de um discurso a propósito das obras de arte não como instrumento da verdade mas como liberdade e possibilidade de funcionamento e de pensamento. Se as obras de arte se caracterizam por dizer – admitindo que se pode aqui utilizar a palavra dizer – algo que não pode ser dito de outra maneira, qual é a natureza daquilo que se pode dizer sobre essas mesmas obras? O discurso sobre obras de arte não pode dizer de outra maneira aquilo que elas dizem (?). Mas pode dizer algo sobre a maneira como elas dizem (?). E de que maneira pode dizê-lo?

A comparação entre o estatuto do poema e o do objecto artístico – no âmbito das artes plásticas – permite alguns paralelismos. O primeiro diz respeito ao efeito de estranheza ou, se quisermos, ambiguidade. As palavras mais simples e mais correntes podem, no contexto de um determinado poema, produzir efeitos imprevisíveis e ilimitados. Do mesmo modo, formas e objectos simples e correntes podem, quando desviados e agenciados no contexto de um objecto artístico, desencadear cadeias inesgotáveis de conotações e significações.

O segundo paralelismo diz respeito à questão do ritmo. Tal como a leitura de um poema exige uma sintonização de cadências e de afectos, também a leitura de um objecto artístico exige um sintonização que recobre diferentes aspectos. Um primeiro aspecto é a capacidade de apreender a modelação sensível da superfície visível do objecto. Neste âmbito, a sensibilidade rítmica é particularmente útil para abordar a natureza descontínua de objectos em que frequentemente se cruzam diferentes lógicas, processos e registos. Um segundo aspecto da sintonização é a capacidade de, para além da superfície visível, ser capaz de ficcionar a emergência de uma personalidade ou a força de um enigma.

A cada passo encontramos elementos que funcionam como chaves, portas, fechaduras. Remetem umas para as outras de forma imperativa e necessária mas nunca definitiva. Nada se abre e nada se fecha de uma vez por todas. A rede é cada vez mais rica e mais tensa mas a solução é sempre diferida. Esta dinâmica circunscreve uma espécie enigma central. Mas o enigma não é encarado nem de um forma mística – uma super-essência oculta – nem de uma forma lúdica – um jogo de escondidas. O enigma tem um valor prático, operacional. É um centro virtual que serva para activar deslocações. As peças do processo vão sendo exibidas, completadas, aumentadas, complexificadas. Mas nunca são explicitadas as condições da sua decifração integral. A sombra do enigma serve para instaurar uma disciplina cruel. A crueldade é a obstinação em objectos imperativos e necessários. Sem que a necessidade seja explicitada ou evidente. A disciplina é a obstinação, no rigor das demarcações. Objectos criminais. Obras de arte.

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Alexandre Melo, “Objectos e Palavras”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº34,  Lisboa, Maio 2000

ARTE E DESIGN



Bertrand Lavier. Calder sur Calder. Mobile sobre aquecedor. 1988


Qualquer objecto pode ser uma obra de arte. Qualquer coisa, mesmo que não seja um objecto, pode ser uma obra de arte. Ao longo do século XX, com o trabalho das vanguardas dos anos 10, dos anos 60, dos anos 90, deixaram de existir limites formais ou fronteiras objectivas para definir aquilo que pode ou não ser arte.

Tal como deixaram de existir fronteiras rígidas entre as artes plásticas e as outras disciplinas criativas, entre as quais o design.

As regras da excepcionalidade – aquilo que só a mão de um génio pode fazer –, da unicidade – aquilo que não pode ser repetido -, ou da universalidade – aquilo que todos consideram belo -, deixaram de ser critérios absolutos. A tecnologia permite que tudo seja discutido ou contestado. A arte torna-se um território infinito de imaginação e liberdade.

Todos os objectos têm design. Mesmo as coisas que não são objectos têm design. Pensemos na iluminação, design da luz, na coreografia, design dos gestos, na retórica, design da fala.

Todos os objectos alguma vez produzidos resultaram de um conceito pensado, ou resultaram de um determinado sistema de pensamento, mesmo que este não se traduzisse conscientemente em conceitos aplicados à produção de objectos. Tudo é design. Mesmo o ar que respiramos, é moldado, filtrado, desenhado pelo desenho do espaço – arquitectura, decoração, equipamentos urbanos – em que respiramos.
Então, onde é que está a diferença? Então, porque é que falamos de arte ou de design?

Porque quando fazemos arte ou design, quando chamamos arte a uma coisa ou dizemos que uma coisa tem design, estamos a ganhar uma outra consciência e a dedicar uma outra atenção às coisas que estamos a observar ou a conceber.

Essa outra consciência e essa outra atenção caracterizam-se por um estado de alerta de toda a nossa inteligência e sensibilidade, caracterizam-se por um investimento intelectual mais forte e uma disponibilidade emocional mais intensa, caracterizam-se por uma máxima abertura de espírito e um mais sério empenhamento na pesquisa.

Uma consciência aberta e disponível, uma atenção entusiasmada e afectuosa. É isso que os distingue da mera repetição das rotinas do quotidiano. É por isso que um quotidiano e uma sociedade sem arte nos condenaria à infinita repetição das mesmas coisas, sem prazer, sem novidade e sem entusiasmo.

Ao falarmos de arte e design falamos de objectos que se situam no território da complexidade. Mesmo que sejam simples. O território da complexidade não remete para qualquer tipo de complicação formal mas sim para uma disponibilidade do objecto para instaurar diferentes níveis de leitura e de funcionamento. Sem que esses diferentes níveis possam ser reduzidos uns aos outros e sem que possam ser esgotados no interior de um sistema fechado. Daí resulta a ambiguidade. A capacidade do objecto preservar uma margem de indecidibilidade e inapropriabilidade. Para além daquilo que o objecto é, na força da sua presença, e para além daquilo que ele é, na rede dos discursos que o articulam, o objecto mantém uma capacidade para ser mais. E esse mais remete para a sempre renovada actualidade uma experiência.

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Alexandre Melo, “Arte e Design”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº34,  Lisboa, Abril 2000