COMO TRABALHA O PINTOR



(ALEXANDRE MELO E JOÃO PINHARANDA)

Pedro Calapez. Painel de madeira gravado e pintado. 1988


O artista está (pelo breve tempo de toda a sua vida) no lugar de deus. E não faz sentido entender esse assento como trono de um deus menor; nem se podem dividir as responsabilidades. Porque todas as suas obras são angústias sem partilha, dúvidas sem descontos – e porque só há lugares de solidão como recompensa da glória.
Vive numa época sem plenitude. Aspirar à construção do céu – como ele o faz – é um projecto de re-estabelecimento e salvação.

O céu é uma utopia de leveza. A temperatura da vigília, o conforto da imponderabilidade, uma paisagem infinita, uma cama lenta.
Mas não é imediatamente nada disto. O sentimento do céu é uma entrega e um abandono cuja integridade é assegurada pelo rigor das prévias travessias. A travessia dos raciocínios lógicos usados até aos limites epistemológicos de qualquer investigação. O confronto com a suspeita de que toda a ciência afinal decepciona.
Estas experiências intelectuais criam apenas a disponibilidades para um sentimento. É preciso continuar a ser metódico. Passar pelo tempo da exposição à exaustão das sensações: a sordidez e o luxo, a violência e o afecto, a dor e a comida. Os limites sabem-se, percebem-se, muito antes de atingir ou tentar inventar e essa antecipação cria a viabilidade da arte.
O realismo deste projecto de trabalho assenta no facto de não se apresentar alheado do mundo (da arte), de partir de cada um dos problemas nele existentes e forçar a sua superação. A sua integridade é garantida pela apresentação, no próprio processo de trabalho, de todas essas dificuldades e sucessos.

Ocupa o trono de um deus ausente ou morto e não é réplica da sua presença. Incerto do seu papel, do seu destino, dos seus poderes é um anjo inquiridor que se prepara para conhecer os segredos, dominar os gestos, possuir o fogo – tornar-se também infinito e fundador. Sabe como o seu estatuto é vulnerável: pode subitamente tornar-se num anjo caído. Impossibilidade de vencer a tentação do poder; impossibilidade de totalizar a criação. É sobre o fio deste duplo perigo que actua. Isto é uma atitude corajosa que anuncia uma escalada a partir da mais escarpada vertente, da mais lisa fachada: e o pintor não é anjo nem é operário.
A tarefa que se destinou não é, afinal, a de simular uma nova criação do mundo. A partir das instáveis imagens do existente tem sim inventado as imagens do mundo depois do mundo – o céu.
Os artistas são usurpadores de direitos e nenhum usurpador se deve deter na imitação dos actos do anterior monarca – contraria-os. A figuração do mundo já foi realizada e basta à nossa sobrevivência diária. O que não se verificou ainda foi a anunciada existência e glorificação dos lugares e das dimensões do real depois do real; ou seja, a figuração do céu. Uma parte significativa dos artistas trabalha, desde sempre, sobre este projecto: quando buscam, em cada músculo de um atleta, a própria ideia de vitória; quando procuram, sob os azuis enganosos do céu, o dourado coração da omnipotência divina; quando descobrem os arcanos do universo na geometria das suas composições. Mas querem apenas aproximar-se do que sabem (acreditam) existir para além deles, independente deles. Trata-se de um percurso de submissão.
Agora somos nós a inventar o próprio céu – porque podemos também estabelecer um fim para o nosso mundo.

O assunto é a criação do céu.
À partida não se trata de emoções metafísicas nem de abstracções líricas. Trata-se de mãos, madeira, papel, grafite, pastel, gestos repetidos em função de efeitos e objectivos deliberada e sistematicamente procurados.
O céu do artista é o resultado de um processo físico de produção material. Um céu feito à mão. Uma pessoa compreende que o ar à sua volta não lhe presta. Junta e movimenta as mãos e os gestos para separar as brisas, as linhas e as correntes, discernir e discorrer os tons e as inclinações propícias, camada sobre camada, linha sobre linha, afeiçoar-se o céu.
O processo material da criação do céu é inversamente proporcional à evidência da sua representação. A abertura do campo de experimentação sensual é o oposto do cliché. Porque o céu não tem medidas. É uma espaço virtual em que tudo existe como eventualidade e evanescência. O artista recusa os clichés da representação e a vacuidade de uma emoção psicologizante.

O processo desenvolve-se em função de regras de compatibilidade estética entre um determinado sentimento e determinadas estruturas formais.
A geometria é uma das vias. O rigor de um sistema lógico que tem as vantagens da clareza de um número limitado de princípios e da generosidade de um número infinito de possibilidades combinatórias. As limitações são as do elevado grau de formalização e arrefecimento do resultado final. A matemática não é celestial porque não é um afecto.
Uma outra via faz recurso à experiência das formas do mundo. Aqui se manifesta uma exclusão, a da figura humana, que tem um significado essencial à compreensão da natureza do céu em questão. Um céu de fusão que opera por absorção e dissolução. Pacificação radical. A casa do pai.

As formas eleitas são paisagens naturais ou estruturas arquitectónicas que surgem como reminiscência e evocações depuradas da pintura e iconografia religiosa tradicionais. Ou objectos isolados com referentes do mesmo tipo mas de leitura mais indeterminada e que desempenham uma função de suporte e sinal em relação a um espaço que os transcende.
O exercício fundador experimentado é um trabalho de invenção a partir de uma memória.
A memória é um lastro terreno, adquire-se no que se viu, no que se viveu e no que esperou. A memoria facultada a estes desenhos é restrita e selectiva: é uma memória que se esqueceu primeiro das palavras, depois dos homens, finalmente das próprias coisas e objectos. É um enorme buraco cheio de contornos luminosos e de luminosidades.
Os contornos são as auras dos objectos que transportam já no mundo a memória do céu: um templo, uma casa, ou um túmulo; um cálice, uma fonte ou um espelho; uma escadaria, um poço ou um cofre. As luminosidades vêm das cores derramadas pelos objectos em dissolução sobre a superfície dos céus.

Um trabalho sobre o trabalho de deus: acelerar a expansão do universo até que os volumes se volatilizem, as arestas se separem, as superfícies se tornem translúcidas. Contrariamente, na infinitude do céu a presença das formas mantém-se. São escassas, apenas devido ao processo de concentração de energia física e a simbólica em cada uma delas – não suportam a proximidade umas das outras. Um trabalho ao contrário de deus: contrair o universo até que os sentidos das coisas atinjam uma densidade e um peso insuportáveis, até que a matéria do mundo se reduza aos seus elementos primordiais. Trabalhos sobrepostos.

Assim cumpre o pintor os caminhos da luz e da treva, da água e da terra, da vida e da morte – todos os caminhos da arte (de deus): esconder e revelar, dar a ver e proibir.

Este céu vê-se de olhos fechados. Absorve e rodeia o homem. Os olhos do cosmonauta vagueiam perdidos do corpo, no espaço sem esperança


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Alexandre Melo e João Pinharanda, “Pedro Calapez: Desenhos sobre madeira”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Dezembro de 1988

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