RUI SANCHES - RETIRAR A MATERIALIDADE DAS PERSONAGENS



Rui Sanches. Orfeu. 1989.

O traçado de um perfil é um bom pretexto para sortir informações biográficas que normalmente não caem bem no contexto dos escritos mais pretensiosos.

Nasceu em Lisboa há quase trinta e seis anos, sob o signo de Touro, ascendente Gémeos. Os dados astrológicos funcionam sempre pela leveza e humores para leitores mais fúteis ou como indícios reveladores para crentes e especialistas.

O artista cultiva pela astrologia um interesse relativo. Nunca o aprofundou.

Confessa que da infância e adolescência não se lembra de nenhum segredo ou revelação que tenha sido determinante no encaminhar da sua carreira, ou que seja decisivo para a compreensão actual do seu trabalho. Mas lembra-se mesmo assim de algumas coisas. “A primeira exposição que me lembro de ter visto e de me ter provocado uma impressão forte foi ‘Um século de pintura francesa 1850/1950’ em 1965. Tinha 11 anos. Lembro-me perfeitamente dos trabalhos de Soulages. E de Cézanne. Quanto a influências, na minha família não havia ninguém especialmente dados às artes. Apenas alguns professores, no Pedro Nunes, me encorajaram a ir para Belas-Artes mas nada de realmente decisivo.”

Foi e depois deixou de ir estudar medicina entre 1971 e 1974.

Primeiro porque queria ser psiquiatra com a boa intenção humanista de entender o seu semelhante – e a si próprio, como era próprio da idade. Mas como nunca se interessou pelos aspectos clínicos, tinha até aversão a doentes, rapidamente chegou à conclusão de que a psiquiatria não era a sua vocação. Saiu de Medicina para o Ar.Co para obter uma “formação básica” em matéria de artes. No ano seguinte trabalhou em Bragança, no Gabinete de Apoio Técnico às Autarquias, dirigido por Pedro Vieira de Almeida; maquetas, desenhos, trabalhos de apoio. A seguir, mais um ano no Ar.Co, em pintura, a preparar o concurso ao Goldsmith’s College em Londres – onde foi aceite em 1977 e ficou até 1980.

“Antes de ir para Inglaterra houve uma coisa importante que foi o contacto com o trabalho e as ideias à volta do trabalho de Jasper Johns – através dos livros bem entendido – que teve nessa altura uma influência significativa. Enquanto estive em Portugal só trabalhei em pintura cada vez mais minimal, quase monocromática. Quando fui para Inglaterra tive um grande choque cultural. Faziam-se coisas que eu nunca tinha visto. Trabalhos como textos, fotografias, performance. Durante um ano experimentei tudo e mais alguma coisa e quase deixei de fazer pintura. Comecei a produzir coisas cada vez mais tridimensionais usando materiais do quotidiano: espelhos, bocados de vidro, painéis forrados ou pintados. O meu trabalho centrou-se numa investigação sobre a perspectiva. Comecei a interessar-me pela pintura clássica do séc. XVII, tratados de perspectiva, escritos e experiências de Duchamp em torno da óptica”

Depois de Londres foi para os Estados Unidos. Yale University, New Haven, entre 1980 e 1982.

“Depois do habitual período de choque e adaptação, trabalhei numa espécie de instalações, coisas muito abstractas, jogos de composição, com placas e riscos no chão e nas paredes. Utilizei caixas que serviam como módulos, organizados de uma maneira que remetia para os pontos de vista dentro da sala. A seguir comecei a fazer coisas baseadas em Poussin.”

Este é o momento de colocar a questão de saber até que ponto é que o trabalho de Rui Sanches denota marcas efectivas de uma formação anglo-saxónica, e que significado é que a referência anglo-saxónica pode efectivamente ter, quer em termos absolutos quer em termos relativos a um meio artístico como o português, tradicionalmente suposto muito influenciado pelas tradições culturais francesa, literária e psicológica.

“Nessa altura, foi muito importante o contacto com a Arte americana, sobretudo a arte minimal, que só conhecia de reproduções. Igualmente importante foi o conhecimento da maneira de estar e da atitude americana em relação ao trabalho do artista. A continuidade do trabalho, como se fosse outro trabalho qualquer, a presença regular e diária no estúdio, em vez de ficar em casa à espera da inspiração. A ideia de que é no estúdio que o trabalho se resolve. Fez-me ver, ainda quando por oposição, a diferença entre a ‘maneira europeia’ e a ‘maneira americana’, mais puritana”.

Voltou a Lisboa em 1982 e voltou ao Ar.Co, agora como professor de desenho e escultura. “Em 1983 não fiz nada de escultura porque não tinha local para trabalhar. Só desenhos. Os desenhos vieram um bocado a partir da escultura. Li coisas sobre Poussin e a mitologia clássica. Precisei de copiar alguns diagramas de escavações arqueológicas em cidades gregas, que começaram a ganhar uma importância autónoma enquanto desenhos. A partir daí apareceram mapas, vistas aéreas, sempre representações do espaço”.


A primeira exposição de desenhos foi em 1984 na SNBA. Voltou a expor desenhos em 1987 na Diferença (“Preto e Branco”) e em 1989 na Loja de Desenho (“A Marat”). “Hoje em dia, o desenho continua a funcionar para mim como uma actividade paralela à escultura. Por vezes, os desenhos são totalmente independentes das esculturas. Outras vezes tratam os mesmos temas utilizando os meios próprios do trabalho em duas dimensões; foi o caso ‘Marat’, escultura e desenhos. Outras vezes, ainda, os desenhos são feitos a partir de uma escultura, como a exposição ‘Preto e branco’ a partir da escultura ‘Natal’ (1986). O desenho serve para equacionar o problema de relação entre as duas e as três dimensões, problema que também surge na minha escultura. É uma outra maneira de trabalhar sobre a mesma questão.”

Em 1984 fez a decoração do Bar Frágil. Segundo a lógica de um movimento pendular, depois do excesso romântico da decoração assinada por Cabrita Reis, Rui Sanches joga na eficácia discreta de um sistema frio de pontuação do espaço. Rigor geométrico, sobriedade formal, cores e linhas puras. Desocupação do espaço e vectorização do olhar.

É altura de não esquecer que Rui Sanches é um escultor. Por uma vez, aliás, a aplicação do qualificativo de escultor nem sequer se afigura polémica. A sua primeira exposição individual de escultura foi em 1984 na Diferença: “Et in Arcadia ego”.

Desde então e embora, por estranho que pareça, não tem realizado nenhuma ou outra individual de escultura, tem mostrado regularmente as suas obras em sucessivas significativas colectivas. “Arquipélagos”, em 1985 na SNBA, e “Cumplicidades” em 1986 na EMI-Valentim de Carvalho, marcam a inclusão num “grupo de afinidades” em que também se incluem Pedro Calapez, José Pedro Croft e Cabrita Reis. A III Exposição Gulbenkian em 1986 e a V Bienal de Cerveira em 1986, a Bienal de São Paulo em 1987, o Primeiro Prémio Unicer em Serralves, 1988, prémios e aquisições, marcam o começo de um reconhecimento generalizado à escala nacional. Já em 1989 expôs com António Campos Rosado e Pedro Campos Rosado.


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Alexandre Melo, “Rui Sanches – Retirar a materialidade das personagens”, in Artes&Leilões, Ano 1, Nº2,  Lisboa, Dezembro - Janeiro de 1989-1990.

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