A ÚLTIMA ARTE




ARTMOVIE
Pedro Portugal & Adriana Alcântara




Film still. Pedro Portugal & Adriana Alcântara. ARTMOVIE. 2014

Se há assuntos dos quais se pode dizer que têm demasiado assunto, um deles é, por certo, o cinema. Mesmo quando se trata, como é aqui o caso, de abordar apenas a relação entre cinema e arte (aqui entendida na aceção mais estrita de artes plásticas ), através da montagem de excertos de filmes em que aparecem obras de arte, identificadas ou referenciadas enquanto tais. Claro que o uso da palavra “apenas” foi abusivo.
As possibilidades são infinitas. Por isso este trabalho de Pedro Portugal e Adriana Alcântara tem uma escala e uma ambição que o condenam à partida ao sucesso e ao fracasso. Sucesso porque é difícil não querer saber, de entre todas as infinitas possibilidades de seleção e montagem de cenas, quais foram adotadas pelos autores. Fracasso porque a cada momento nos lembramos do que poderia lá estar e não está, de outros instantes para cortar e colar, de conexões, confrontos  ou critérios de organização temática e estrutural que não foram escolhidos. Deixamos esta avaliação ao livre arbítrio de cada observador, porque caso optássemos por uma tentativa de sistematização de uma análise deste tipo ( o que falta em vez do que está e como deveria estar em alternativa ao modo como está ) nunca mais saíamos daqui ( como os autores terão tido ocasião de constatar durante o trabalho de montagem ).
“Nunca mais saíamos daqui”, no sentido mais literal da expressão. Não haveria tempo ( tempo, repito ) suficiente para abordar o tema de forma sistemática ( já nem digo esgotar ). Este despretensioso jogo de palavras permite avançar para algumas hipóteses gerais a respeito da relação entre arte e cinema, enquanto tema.
Como é sabido, no início da sua história, o cinema viu ser-lhe recusado pelos especialistas (de arte) o estatuto de arte. Talvez por isso as obras de arte e os (verdadeiros) artistas aparecem nalguns filmes (tendencialmente mais antigos) como coisas extraordinárias. Levou tempo até ser concedida ao cinema a distinção de ser arte. A sétima arte. Julgo que sétima no sentido cronológico (data do aparecimento) e não no sentido hierárquico ( nível de qualidade ). Mesmo assim, ainda hoje há quem entenda útil discutir se o cinema é arte ou indústria ou tentar distinguir entre cinema que é arte e cinema que não é arte. Evidentemente não vou comentar estes tópicos.  
Quando por fim foi aclamado como arte, o cinema já nem precisava de o ser (e na verdade tanto se lhe dava como ainda hoje se lhe dá), porque entretanto se tornara (como ainda hoje se torna, cada vez mais) a única categoria ( enquanto prática artística mas também enquanto conceito ) que se pode relacionar diretamente ( isto é, no mesmo plano ontológico e epistemológico ) com a noção de realidade ( seja qual for o estatuto que se lhe queira atribuir ). Com o cinema, a relação entre artes plásticas e realidade passou a ser um tema com um interesse quase só historiográfico. Há quem entenda que as formas específicas da evolução das artes plásticas (modernismos e por aí fora) desde o aparecimento do cinema devem ser explicadas, antes de mais, pela própria expansão e triunfo global do cinema. Ou seja, a questão da relação entre arte e realidade passou a ser uma questão do cinema. Isto para evitar dizer que cinema e realidade se tornaram (quase) equivalentes. Talvez por isso nalguns filmes (tendencialmente mais recentes) as obras de arte aparecem como objeto de paródia ou chacota.
Em termos mais práticos, e passando para o campo da arte contemporânea, assistimos à emergência da transdisciplinaridade como uma das principais caraterísticas das atuais dinâmicas criativas. Um dos efeitos é a generalização do uso do cinema pelas artes plásticas (e outras disciplinas), quer como técnica de trabalho, quer como material de referência. É como se cada vez mais, para a arte contemporânea, o cinema tivesse passado a funcionar como história da arte se não mesmo como história (da realidade). Neste sentido podemos imaginar que, no futuro próximo, o grande gesto destrutivo não consista em destruir obras primas da história da arte (como vemos em tantos filmes e também na prática quotidiana dos terroristas) mas sim em destruir filmes.
A generalização da transdisciplinaridade tem como consequência uma essencial desestabilização das definições identitárias de artista ou cineasta (surgem híbridos como o artista que faz filmes, filmes de artista, o cineasta que faz arte, etc). No plano mais institucional, uma outra consequência é um cruzamento de circuitos de circulação mercantil e legitimação discursiva, que adquire um peso crescente na gestão das carreiras e dos critérios curatoriais ou de programação de cada vez mais pessoas e instituições. Cada vez mais artistas plásticos (de origem) fazem filmes ( e apresentam-nos em festivais de cinema), cada vez mais cineastas (de origem) apresentam os seus filmes em locais institucionais de artes plásticas (galerias, museus, grandes exposições) ou fazem obras de artes plásticas (normalmente fotografias ou instalações mas também esculturas, desenhos ou outra coisa qualquer). Muitos artistas, a partir do mesmo material de base, fazem versões para sala de cinema, festival de cinema, grande exposição, galeria de arte, colecionador privado, etc. É uma situação normal ( e poderíamos dizer que seria uma solução óbvia se alguma vez tivéssemos admitido que existia um problema) e uma consequência de um contexto em que a especificação do estatuto da atividade criativa deixou de ter de ser feita em função das categorias disciplinares tradicionais. As motivações e as vantagens deste tipo de multiplicação e cruzamento de circuitos podem ser de natureza económica (diversificação de fontes de financiamento ou rendimentos), intelectual (enriquecimento e diversificação dos discursos de legitimação e instâncias de debate intelectual) sociocultural (ser famoso em dois mundos é melhor do que num só) ou, pura e simplesmente, filosóficos, isto é, civilizacionais : cada vez mais, os artistas, tal como deveriam fazer todas as pessoas, fazem o que querem, até porque, por definição, não têm mais nada para fazer.
Mas então, perguntarão : “What does it mean ?”. A resposta é simples : “Whatever you want it to mean.”
Para terminar vou contar uma história cuja relação com este texto levaria demasiado tempo a explicar. Há já muito tempo, no último dia de uma exposição de fotografias de Robert Rauschenberg, em Nova Iorque, um colecionador importante entrou na galeria, e o vendedor, apercebendo-se de que só restava para venda uma fotografia de um pepino, comentou, com apaixonado entusiasmo: “Look at the freshness of the vegetable !”


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Texto realizado por ocasião da projecção do filme ARTMOVIE de Pedro Portugal e Adriana Alcântara, no Centro de Arte Contemporânea (CAM), de Novembro a Dezembro de 2014.

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