NATUREZA ECONÓMICA



Paulo Climachauska 
Galeria Lurixs, Rio de Janeiro



Paulo Climachauska, Cordilheira.




O trabalho de Paulo Climachauska sempre me cativou de um modo contraditório em que se combinam a sedução e a perplexidade. Nada é evidente. Ou melhor, tudo parece evidente, mas nada sendo aquilo que parece, ficamos sem nenhuma certeza quanto ao que quer que seja esse tudo (ou nada) que parece evidente. Afinal é fácil ou difícil?  Ao aceitar o convite para escrever este texto a propósito da exposição na galeria LURIXS de pinturas da série Natureza Económica, aproveito a oportunidade para tentar, em duas laudas, explicar ou, pelo menos, enunciar este paradoxo. Em primeiro lugar, creio que existem dois métodos para começar a escrever sobre o trabalho (ou, neste caso, ambição mais modesta, estes trabalhos) do autor. Estes métodos eu chamaria de método formalista e método contextual.
Segundo o que aqui chamamos método formalista, podemos fingir que nos colocamos na posição de alguém que não tem qualquer informação sobre as referências e os processos que geraram os trabalhos, e que recorre apenas à experiência pessoal de confronto com as pinturas. A palavra apenas aqui é bastante forçada já que esse confronto, por menos informado que seja, já mobiliza toda a memória do nosso observador. Adotando esta postura vejo uma pintura abstrata que me seduz pela depuração geométrica, a elegância do ritmo, o rigor da composição e uma saborosa sabedoria na utilização das cores. Mais (ou menos) que de uma tendência minimalista podemos talvez falar, remetendo para trabalhos anteriores do artista, de uma obsessiva pulsão de “subtração”, que é também uma forma de “esvaziar” clichés. Reparando melhor, talvez não se trate de verdadeiras pinturas abstratas, mas de representações estilizadas de paisagens montanhosas. Será abstrato ou figurativo? Em qualquer dos casos é um prazer continuar a olhar para estas pinturas, e é fácil imaginar a perfeita localização de uma destas pinturas na parede de uma sala. Lembro-me da montanha e do vale em frente da minha casa no Norte de Portugal e tento acertar com as cores das várias intensidades e posições do Sol. Mas não é bem isto. Lembro-me então do meu fascínio infantil por lápis de cor e de como gostava mais de olhar para eles alinhados na caixa uns ao lado dos outros do que propriamente de usá-los. Lembro-me de tentar resolver esta contradição ainda criança, desenhando com os lápis de cor de todas as cores disponíveis na caixa, uns ao lado dos outros, tal como os via na caixa. Esta solução também tinha a vantagem de produzir um desgaste uniforme em todos os lápis, o que permitia que suas pontas se mantivessem alinhadas dentro da caixa. Será que esta recordação inesperada tem alguma pertinência? Como poderia  saber ... uma vez que não existe (ou não o recebi, ou não acreditei nele) um livro de instruções para ver esta (ou, de fato, qualquer outra) pintura. Já que estou em uma exposição de arte, lembro a história da abstração geométrica e da abstração hard-edge em particular. Nesta perspectiva, subjetiva, ingênua, e formalista, sinto prazer diante destas pinturas em função de memórias da minha experiência pessoal genérica e da minha informação artística em particular. O prazer se acentua pela perversidade das linhas oblíquas e quebradas que posso considerar mais excitantes que as linhas retas, ou pela possibilidade de comparações (cores, ângulos, ritmo), por exemplo, com a série de trabalhos  Modelo para armar (2011). Uma comparação que abre um campo de hipóteses de especulação (que aqui não cabe desenvolver) sobre a unidade e diversidade de diferentes séries, aparentemente muito diversificadas, do trabalho do autor. A lógica do jogo.
Chegou agora o momento de exemplificar como seria este texto de acordo com o método contextual. Neste caso, quando olho para as pinturas já sei que a inclinação destas linhas corresponde a valores estatísticos da economia, tal como costumam aparecer nos gráficos com que os economistas gostam de adornar (como eles gostam de mostrar quadros coloridos na televisão ...) a exibição da sua ignorância. Olho então para as linhas quebradas em declive acentuado em direção ao canto inferior esquerdo, e penso, por exemplo, no gráfico que vi há pouco na televisão representando a evolução do valor das ações do Banco Espírito Santo. Um acontecimento que está em vias de se tornar a maior falência da história económica recente e, suspeitamos, um dos mais notáveis episódios da história do crime organizado em Portugal. Já as linhas ascendentes sugerem os gráficos, com os quais convivo diariamente há vários anos, da evolução da dívida externa portuguesa. Nesta perspectiva, as pinturas nos oferecem um modo alternativo de lidar com dados básicos da realidade econômica e social que nos rodeia, desautorizando ou parodiando os discursos estereotipados dos responsáveis institucionais, habituados a recorrer a números para disfarçar a corrupção e a incompetência. Mas esta deslocação não é feita segundo os estereótipos críticos tradicionais (a vulgata marxista) que acha que a arte deve ter uma função medicinal (de diagnóstico ou terapêutica) em relação às doenças sociais que nos assolam. A arte não pode ter essa função, dadas as formas da sua inserção cultural (privilégio quase exclusivo de uma elite) e económica (inevitável dependência em relação ao mercado) no conjunto da sociedade. Essa função medicinal dependeria da existência de organizações políticas ou cívicas informadas, honestas e competentes, ou seja, entidades que a maioria das sociedades contemporâneas se revelam obviamente incapazes de gerar. O que a arte pode ser é aquilo que ela é: uma forma de pensamento e de trabalho que mobiliza a inteligência e a sensibilidade de um modo peculiar. Um modo que nos obriga a voltar a acreditar que é possível ver as coisas de uma maneira que ainda não tinha sido inventada e que ainda não é possível entender completamente. Poderão agora perguntar qual é afinal a maneira mais correta de olhar para as pinturas de Paulo Climachauska. Responderei que não existe uma maneira que seja a mais correta e que essa ambiguidade, eventualmente perversa, cria a fria tensão semântica que é o segredo do fascínio da obra do autor.
Agora vou abrir, mais uma vez, como se fosse a primeira vez, as minhas caixas de lápis de cor.

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Texto realizado por ocasião da exposição individual de Paulo Climachauska, na Galeria LURIXS, no Rio de Janeiro, de 22 de Agosto a 17 de Outubro de 2014.  




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