PEDRO CALAPEZ: AS VERDADES DO ESPAÇO DE CENA



Atitudes Litorais : I Exposição de Artes Plásticas na Faculdade de Letras, 1984




Os filões da madeira
Pedro Calapez começou a trabalhar sobre papel, agora remonta à madeira. “Porque me rasgavam os papéis.” Razões banais que se transformaram um pouco: “o veio da madeira, o ar de madeira que surge debaixo das camadas de tinta, seduziu-me imenso”.

A cor roubada
Começou por usar grafite, pastel, agora faz a passagem às tintas diluídas. “A passagem é óbvia. Acompanha as ideias que tenho e que desejo realizar rapidamente. Ficava fisicamente esgotado ao cobrir uma superfície a pastel, para que ela ganhasse aquele grão... camadas sobre camadas sobre camadas.”
O suporte refere-se a uma situação antiga – a dos retábulos. A cor testemunha o tempo que desde então passou. “O que também me interessa desses frescos e retábulos é o ar estragado, o que lhes aconteceu. O dourado roubado pelo tempo. Agora tenho as tintas líquidas o que dá para sujar os vermelhos, os castanhos, os negros. O que faz a cor de um quadro resulta das misturas, das camadas – junto os restos. As cores alteram-se: há coisas que começam em encarnado e acabam em verde, o verde dos frigoríficos, das leitarias, o amarelo dos cafés. Eu não quero contrastes vivos, cores fortes.”

Pode haver alguma coisa atrás
Fez aparecer nos seus primeiros desenhos objectos isolados. Por isso colocou desde sempre a questão do espaço. Um sofá, por exemplo, é maciço e quase inerte; uma caixa não o é se a abrirmos e desdobrarmos, a olharmos por dentro, se nela fizermos uma sala ou um monumento. E quando passa aos jogos arquitectónicos (arcos, arcadas, muralhas, castelos, pontes, túmulos) Calapez acrescenta complexidade às iniciais questões espaciais.
As obras apresentadas na recente exposição Atitudes Litorais referiam-se já às posições dos volumes nos espaços – cenografias, mais do que arquitecturas. “O que me apetece são só estas ‘bandas’ que são realmente barreiras, muros finos e grossos ao mesmo tempo, assim no ar, que estão e não estão. E pode haver alguma coisa atrás.”

A cena da escadaria
Desenvolveu no Verão passado um projecto inacabado para a cenografia de Otelo. “Fiz desenhos de várias cenas. Procurei olhar para a época histórica a que se referia mas fui recuando até Giotto. Copiei os seus temas arquitectónicos e seleccionei as formas básicas.” Giotto, natural de Vespignano próximo de Florença, pastor e depois discípulo de Cimabue, amigo de Dante. Bocaccio reconheceu-lhe o poder de igualar a “obra de natureza”. Pintor de extensos programas narrativos (cenas da vida de S. Francisco e do Evangelho apócrifo de S. Tiago) mais do que a fidelidade da envolvência arquitectónica interessou-lhe situar as reacções psicológicas, definir os protagonistas da cenas.
“A minha ideia foi esvaziar: tirar as coisas que lá estavam a mais, as figuras, e deixar o que me prendia, as arquitecturas. Tirar a cruz e deixar os degraus; tirar o cadáver e deixar o leito.”

A ponte é o principal
Céus, a linha de terra que se torna chão ou palco ambíguo e impossível de habitar. Se nas pinturas aparecem tais referências naturais isso faz-se em função dos edifícios. “O meu quadro da ponte. Eu tenho um rio. Primeiro pintei-o muito destacado, depois dei-lhe amarelo por cima, da cor da terra, até quase o apagar. A ponte é que é o principal.”
“Não vejo cenas. Peripécias pois, paisagens, objectos. Há uma vontade de êxtase: desaparecer do cenário.”

Quando já se sabe tudo...
“Giotto deu-me os modelos formais directos, mas o sentido que dou a essas coisas é o dos maneiristas – é a ambiguidade.” O classicismo: “não me atrai a plenitude representação do mundo”.
.... já se pode destruir tudo.
Sem ser preciso pintar
“Comecei a desenhar só a preto, com grandes manchas. Havia um desenho inicial que se ia tapando. Alguns dos últimos ficaram todos negros. Não conseguia parar.”
“Agora quando traço um risco a lápis fico sempre parado antes de o encher de cor. Faço um quadro e queria deixá-lo assim despido de volume.” Em alguns desenhos que vai expor em Cascais há já um fundo empastado e pingado onde apenas se riscam as formas: “Como se fosse um traço que resolvesse tudo. Um risco seguro deixou ali uma forma e é aquela forma que é.”

Magnus Magister
A janela, com o Renascimento, tornou-se o lugar ideal para olhar o mundo. O antropocentrismo daria aos homens o orgulho de poderem criar uma obra igual à de Deus. Agora, pelo menos desde Kandinsky, o gesto fundador ocupa-se de outras tarefas; criar um mundo novo, não uma imitação. E a janela passou do ecrã para o cinema, agora de vídeo, onde tudo se pode ir construindo isolando as peças – sem céu, sem terra, sem fundo.

Absorvido pelo écran
“Criar uma sala de pintura, não um sala pintada. Conseguir entrar num outro mundo como numa sala de cinema em que só houvesse écran, como quando se desce a montanha russa – ser sugado pelo quadro. Quando pinto já estou a um metro do quadro. Faço-o e vejo-o muito perto porque o branco da parede me ofende.” Em 1982 na Diferença, com Ana Léon, enchera chão, paredes e tecto de Azul Vermelho. “Aí era mais o lúdico, aqui é o reflexivo, é o silêncio – tem a ver com o meu estar calado.”
“Estamos portanto a ver porque é que eu pinto.”
“Para criar uma outra situação onde eu possa viver – não exterior às pinturas. A atitude renascentista era de prova, eu não quero provar nada, quero ser absorvido por esse novo mundo que provoco. Já falei nisso.”
“(...) como no mundo inteiro não pode encontrar-se ninguém melhor que o mestre Giotto di Bondone este será chamado na sua cidade de Magnus Magister e publicamente reconhecido como tal.” – Resolução do Conselho da cidade de Florença no ano de 1334.

.............................
Alexandre Melo, João Pinharanda, “Pedro Calapez as verdades do espaço de cena”. in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 22/5/1984.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.