O QUADRADO DE OURO



Pedro Cabrita Reis
1987



Da ordem e do caos, 1986. 100 x 210 cm



A expressão “quadrado de ouro”, que se exibe em título a este comentário à obra de Cabrita Reis, não pretende insinuar, para o seu trabalho, nem uma devoção doutrinal mística, nem uma vocação ficcional narrativa. Excluídos estes dois pontos de fuga, correntes na produção artística contemporânea, o “quadrado de ouro”, designa: por um lado, a dimensão emblemática e ritualizante dos trabalhos de Cabrita Reis; por outro lado, as duas lógicas contraditórias – uma analítica, outra pulsional – que movem a sua obra e que, na sempre provisória resolução, em cada peça da sua contradição, fazem a tensão interna do processo criativo. Assinalam o lugar estratégico do local de Cabrita Reis no terreno do confronto das tendências plásticas contemporâneas.

Uma lógica analítica.
O quadrado evoca, na sua evidência geométrica, uma lógica analítica que se manifesta de duas formas.
Em primeiro lugar numa complexa conceptualização prévia de cada trabalho ou exposição que se traduzem: por um lado, numa recorrência de estruturas e motivos formais, constatável em diferentes trabalhos de uma mesma fase ou mesmo diferentes fases; por outro lado, num poderoso e envolvente efeito espectacular de instalação que tende, em limite, a transformar as exposições numa ocupação integral do espaço. Em segundo lugar, e ainda mais evidentemente o quadrado, como figura geométrica elementar, aponta aqui uma tendência obsessiva do artista para cristalizar a referência aos universos temáticos e formais a que se reporta, em torno da representação dos seus símbolos mais depurados – linhas quebradas, escadas, redes espirais, labirintos, cruzes, manchas e transparências orgânicas, outras formas geométricas e ortogonais. No mesmo sentido se dirige a tendência que, na continuidade da sua obra, se vem desenhando para convocar elementos cada vez mais simples, cada vez mais únicos, cada vez mais geométricos.
Um sentido global de depuração está igualmente patente na austeridade das cores predominantes utilizadas – negros, terras, óxidos, cinzas, castanhos – e na gestão dos efeitos de luz e brilho. Mais do que a cor em si própria, valoriza-se a degradação, o desgaste, a erosão, como que provocados pela passagem do tempo.
Vemos assim que o que designámos por lógica analítica recobre um trânsito de simultânea permanência e reabilitação de uma postura conceptual, por um lado, e de um escrúpulo geométrico tendencialmente minimalista, por outro.
Esta lógica, detectável em muitas evoluções actuais, sempre conviveu em Cabrita Reis com uma lógica oposta pulsional, que a potenciou e abriu a situações de maior complexidade e originalidade. É a essa outra lógica, de excesso e teatralidade, que nos reportaremos ao fazer referência ao ouro.

Uma erosão pulsional.
O ouro assinala, por referência directa a uma das cores mais utilizadas por Cabrita Reis – geralmente contraposto ao negro – e por alusão bastante óbvia, um sentido de exuberância, do excesso e do espectáculo que geralmente se associam ao barroco.
Se estes são sentidos pertinentes para a evocação do ouro, a sua profunda razão de ser no contexto deste comentário é, porém, de natureza metafórica, e remete para níveis menos aparentes e superficiais.
O ouro, em sentido metafórico, é aqui evocado em duas direcções. Por um lado, como o mais precioso dos metais preciosos, que o trabalho da mão humana conseguiu arrancar à terra, constituído assim uma evocação das origens. Por outro lado, material mítico em que se consubstanciam as utopias teleológicas – “A Idade do Ouro” – evocação dos fins. Estas duas acepções correspondem a características marcantes do trabalho de Cabrita Reis:
- A ancoragem em valores míticos, situações vitais e elementos materiais de natureza primordial e ancestral;
- A valorização da energia e fulgor físico dados ao processo de construção material de cada obra;
- A irreprimível aspiração a um absoluto e a uma totalidade utópicos que sistematicamente o artista implica na sua atitude e nos seus trabalhos.
A ancestralidade e a primordialidade estão patentes que nas fixações temáticas de anteriores trabalhos quer no tipo de materiais utilizados e na forma da sua utilização.
Os trabalhos anteriores centram-se insistentemente nos temas da guerra – “Cenas da Caça e da Guerra” (Galeria Diferença, Lisboa, 1983), acções e territórios de combate, heróis, troféus – e nos temas de religião, em sentido lato – “Os discretos Mensageiros” (Galeria Cómicos, Lisboa, 1984), “A Anunciação” (Galeria Cómicos, ARCO 85, Madrid), “De um santuário e certos lugares...” (Galeria “JN”, Porto, 1985), a obsessão da morte, túmulos, altares, objectos rituais, de culto.
Quanto aos materiais e modo de execução, assistimos a um progressivo adensamento, desde os tradicionais papel ou tela, utilizados no princípio da década, até à diversidade actual: peles, folha de ouro, barro, madeira, ardósia, metal, vidro. Um processo em que tiveram importância decisiva a madeira, as grandes massas de tinta, utilizadas como suporte de devastadoras intervenções – perfuração, colagem, “assemblage”, pintura – de que acabavam por resultar verdadeiros relevos murais, entendíveis como instalação. Frequentemente, aliás, a experiência da tridimensionalidade e da manipulação dos destroços de materiais foi levada até à construção de esculturas propriamente ditas.
Na evolução desde uma pintura plana até à agitação de objectos literalmente impostos ou arrancados ao primitivo suporte, fica implícito um tipo de execução que, na sua fisicidade, dá conta da diferença, qualitativa que se manifesta, para cada peça, entre a conceptualização prévia e o resultado final. E é essa diferença que instaura a dimensão utópica do trabalho de Cabrita Reis.

Epílogo
O ponto de partida é, como vimos, o de uma lógica analítica, conceptual. Mas essa lógica não se subordina nem se limita ao exercício de uma posição teoricamente elaborada, seja ela minimalista ou outra. Cabrita Reis investe no próprio acto de fazer, no excesso nele inscrito, na vocação espectacular por ele desencadeada, com a convicção dum resultado final – a obra – em que a evidência de uma autoria iniludível venha dotar de uma totalidade utópica o rigor do projecto.
“Da ordem e do caos” (Galeria Cómicos, Lisboa, 1986), “Anima et macula” (Cintrik Gallery, Antuérpia, 1987), títulos das suas duas últimas exposições individuais, dão conta, com exactidão, da convivência dos dois pólos contraditórios que, no seu conflito, definem uma tensão criativa original.

O rigor do conceito obriga-se a passar pelo arrebatamento do fazer para que o absoluto a atingir, a totalidade, jamais deixe de se constituir em espectáculo necessário e evidentemente assinado.

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Alexandre Melo, “O quadrado de ouro”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 3/8/1987

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