ALICE NA PRAÇA DE SÃO MARCOS




Takashi Murakami, Superflat Jellyfish Eyes 2, 2003


A Praça de São Marcos é uma das mais belas do mundo, com a característica suplementar de ser incomparável. De dois em dois anos, os habitantes do mundo da arte voltam a poder experimentar o mesmo deslumbramento quando se deslocam a Veneza para visitar a Bienal mais famosa do mundo. Este ano, para a 50ª edição que abriu ao público esta semana, o Museo Correr, ao fundo da Praça, em frente da Basílica, exibe um cartaz anunciando a exposição «Pintura – De Rauschenberg a Murakami – 1964-2003». O título da mostra inscreve-se sobre uma imagem que é o ponto de partida desta crónica.

Um fundo negro sobre o qual se desenham, com irrepreensível elegância gráfica, sobreposições de formas circulares em que podemos identificar olhos estilizados que, aos pares ou isolados, fechados ou abertos, com pestanas ou sem pestanas, flutuam alegremente no espaço, servidos por um generoso reportório das mais alegres e joviais cores, sugerindo o ritmo de uma música benfazeja e o dinamismo de uma dança feliz.

A imagem de que apresentámos uma possível descrição tem por base a obra Superflat Jellyfish Eyes 2, de Takashi Murakami.

Nascido em 1962 em Tóquio, onde vive e trabalha, Murakami tornou-se, ao longo da última década, o mais famoso e internacionalmente consagrado representante do que poderíamos chamar uma corrente neo-pop à moda do Japão que se tem revelado uma das mais animadas fontes de renovação da cultura visual contemporânea. Uma onda em que as referências às artes plásticas são tão importantes quanto as influências e ligações à banda desenhada, ao cinema de animação, às imagens produzidas em computador, ao «design» em geral e ao «design» gráfico em particular. As filiações sociais e culturais alargam-se ao conjunto das formas mais actuais da cultura juvenil no Japão, de que o género «manga» é uma das expressões mais consagradas.

Toda esta rede de conexões estéticas e culturais é bem exemplificada por um outro trabalho de Murakami incluído na mostra. Superflat Monogram, o primeiro filme de animação do autor, foi realizado na sequência do convite dirigido a Murakami por Marc Jacobs, enquanto «designer» responsável pela marca Louis Vuitton no sentido de o artista redesenhar o famoso padrão que ostenta o logótipo LV. O filme conta-nos, com a suavidade da mais delicada animação japonesa, a história de uma jovem e contemporânea Alice que, em frente de uma loja Louis Vuitton, se confronta com uma afável criatura onírica que, voando a partir das letras do logótipo, lhe tira o telemóvel arrastando-a para um vertiginoso mergulho num mundo surreal habitado por maravilhosas variações coloridas do logo LV e dos diferentes tipos de formas, acima referidas, características do trabalho do autor. Uma Heidi que se transforma em Alice para visitar um mundo em que, com a bênção do mais sofisticado «design», se suspende qualquer pretensa contradição entre a imaginação e o «marketing». O trabalho ganha uma acrescida acuidade, em termos de problematizações sociais, numa cidade em que, por todo o lado, as lojas de luxo das grandes marcas convivem com vendedores ambulantes de imitações de produtos dessas mesmas marcas, com grande destaque para a nova geração das malas Vuitton. Digamos que as contingências da economia deram um sentido ainda mais amplo e literal ao conhecido propósito da arte pop de quebrar as barreiras entre arte e a rua e de fazer com que as imagens tradicionais da história de arte se confrontem com a imensa diversidade do universo visual urbano e quotidiano. O filme foi apresentado nas montras Vuitton, em Março deste ano, juntamente com as novas colecções.

A riqueza estética das conexões transdisciplinares do trabalho de Murakami, designadamente a relação entre animação, «design» e artes plásticas em sentido estrito traduzem-se também, aqui, num polémico alargamento da noção de pintura. A intensidade das suas conexões sociais e culturais mais alargadas, nomeadamente com a moda e as culturas juvenis nipónicas, conduz-nos a um outro aspecto que terá sido determinante para o destaque concedido a Murakami na concepção, e desde logo no título, desta mostra.

Trata-se nada mais nada menos que de pôr Murakami a par com Rauschenberg, nome primordial da arte pop e da pop Americana em geral, cujo triunfo na Bienal de Veneza em 1964 marcou o reconhecimento e consagração da deslocação para Nova Iorque do centro de gravidade do mundo da arte.

Com os olhos bem abertos postos nos olhos de Murakami, pretende-se talvez formular um voto para que o mundo da arte continue a saber mover-se e descentra-se, em novas direcções, reconhecendo energias como, por exemplo, as que, através de Murakami, nos chegam do Japão. Veneza visa assim, também e de novo, sublinhar o seu papel geográfico e simbólico de encontro entre o Ocidente e o Oriente.

Mas há ainda uma última crença que parece animar o trabalho de Murakami e que dota o seu trabalho de uma energia positiva muito rara na arte contemporânea: a crença na possibilidade de criar novas formas de beleza que nos propiciem os ritmos e as coras da experiência da alegria. Quero acreditar que não há contradição entre este apelo jovial e a alegria eterna de voltar a ver a Praça de São Marcos.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 21 de Junho 2003, p. 40.

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