EU SOU ARTE



Helena Almeida. Pintura Habitada. 1975.

Helena Almeida. Seduzir. 2002.


«Pés no Chão, Cabeça no Céu» é o título da exposição antológica que abrange 35 anos de carreira de Helena Almeida no Centro Cultural de Belém. Um título que exprime bem a unidade de uma obra em que, entre o chão do atelier e o azul do céu, tudo passa pelo corpo de Helena Almeida. O trabalho mais antigo, Tela Rosa para Vestir (1969), uma foto da autora vestida com uma pintura, funciona como antecipação de uma trajectória.

No final dos anos 60, Helena Almeida praticou uma pintura que problematizava os elementos materiais e conceptuais constituintes da definição de pintura. Manchas que se desviavam dos limites da tela. Telas que se soltavam da grade que deveria agarrá-las. No início dos anos 70, abandona as concepções tradicionais de pintura e inicia um original conjunto de práticas que ainda hoje continua a desenvolver e que têm como ponto de partida o seu próprio corpo. Tudo começa «Dentro de mim», como diz o título de uma série de trabalhos de 2001. «Dentro de mim» não na acepção psicológica de uma subjectividade que se exprime, mas na acepção performática de uma matéria física (o corpo) que se apresenta.

Helena Almeida, elegendo como «media» a fotografia, cria sucessivas séries de fotografias, a preto e branco, de si própria. As fotos registam momentos de acções, que são as de se deslocar, pintar ou desenhar no espaço do atelier. Não se trata de pintar ou desenhar no sentido tradicional, mas de realizar acções em que o movimento do corpo (a performance) transforma o corpo em pintura ou desenho.

Em vários trabalhos (por exemplo, das séries «Pintura Habitada» e «Desenho Habitado», de 1975) vemos a artista fazendo o gesto de pintar ou desenhar tendo na mão um pincel ou um lápis dos quais saem manchas de tinta azul ou um fio negro que têm uma presença física, real, sobre ou saindo da superfície da fotografia. A apresentação de um vídeo e de uma gravação sonora realizados em paralelo à criação da série «Sente-me, Ouve-me, Vê-me» (1978/79) ajuda-nos a compreender a dimensão performática do trabalho que dá origem às fotos.

A dinâmica transdisciplinar que anima estas obras leva não só ao abandono das práticas tradicionais das disciplinas consagradas como a uma progressiva tomada de consciência da necessidade de passar de umas para as outras como forma de compreender e ultrapassar os respectivos limites. A necessidade de interrogar os limites da pintura ou do desenho implica uma dimensão performativa que, sendo inicialmente servida pela fotografia, acaba por acarretar uma valorização das relações com o espaço, a qual, por sua vez, impondo o confronto com problema específicos da escultura, se resolve no domínio da chamada «instalação».

Na série «Dentro de mim», através da acoplagem de espelhos a diferentes parte do corpo, este abre-se para deixar entrar o espaço, a luz e tudo o que o rodeia. O movimento do corpo no atelier refaz o espaço que o rodeia, e refaz-se a si próprio, enquanto corpo, através da absorção desse mesmo espaço. O modo como a autora «instala» o seu corpo no atelier modifica o que seria a nossa percepção normal do espaço, gerando um efeito de «instalação».

Ao longo de mais de 30 anos de trabalho, Helena Almeida vem explorando questões como estas: como é que o corpo e o movimento de um corpo – o da artista – faz pintura ou faz desenho?, como é que durante o processo é o próprio corpo que se torna pintura e desenho?, e, depois de experimentadas várias formas de interacção (absorção, penetração, ocultação, habitação) entre o corpo e as obras de arte que dele decorrem, o que é que fica para a arte que não seja já apenas a marca da travessia de um corpo? A resposta a esta última pergunta talvez esteja no título de uma série recente: «Seduzir» (2000/2002). Nesta série, composta por fotografias e um vídeo, assistimos a uma encenação peculiar de algumas poses, que podemos interpretar como um comentário aos estereótipos da noção de «sedução feminina». Mas o efeito mais perturbante resulta de a artista nos confrontar com a presença do seu corpo de um modo que nos obriga a tomar consciência do lugar e dos limites da acção e do poder do nosso próprio corpo, enquanto observadores.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 29 de Maio 2004, p. 40.



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