A INOCÊNCIA DO DETECTIVE


Jorge Molder
The Secret Agent, 1991






A relação com referentes culturais exteriores, literários em particular, tem sido uma constante do trabalho de Jorge Molder que, aliás, trabalhou frequentemente em colaboração directa com escritores e artistas plásticos. Servem de exemplo: a série “Uma exposição”, a propósito de Edward Hopper, em colaboração com Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge (1980); a série “Face lavée d’oubli” sobre um poema de Saint-John Perse (1984); a série “O Fazer suave do preto e branco” realizada em paralelo a uma série de desenhos de Jorge Martins (1985); a série “Cabinet d’amateur” acompanhada de pinturas de Gäetan (1988); ou ainda a série “Uma narrativa”, baseada em Hermann Broch (“Die schuldlosen”) e destinada a acompanhar uma encenação de “Zerlina”. Mais recentemente duas séries reportáveis a Joseph Conrad deram origem ao livro “Joseph Conrad” da colecção “Lieux de l’écrit” com texto de Jacques Darras (1991) e ao álbum “The Secret Agent” (1991).

A frequência deste tipo de articulações não significa, porém, que as fotografias de Molder mantenham uma relação ilustrativa com os materiais com que convivem. Antes dá testemunho da pertença do trabalho de Molder a uma universo cultural complexo e multifacetado, que se situa para além das estritas e estreitas fronteiras da fotografia entendida na sua acepção mais tradicional, e se projecta em direcção a zonas de convívio privilegiado, por exemplo, com a poesia ou a filosofia. Dir-se-ia que a multiplicidade de determinações culturais implícitas numa imagem proporciona ao autor uma margem acrescida de distanciamento, um mais vasto terreno de jogo.

De igual modo modo, quando se trata de fotografar uma paisagem, uma casa, um objecto, isto é, quando o referente é o chamado real, o que prevalece não é a vocação documental da fotografia.

O olhar de fotógrafo de Molder como que se suspende antes de chegar ao momento em que o real se reproduziria com a consistência plena da sua vulgaridade. Por isso as fotografias de Molder são capazes de sugerir a velada zona profunda de imponderáveis que o real-já-dado pressupõe, oculta e ingloriamente procura esconjurar.

Pelo contrário, dir-se-ia que a multiplicidade de virtuais determinações de uma imagem proporcionam ao autor uma margem acrescida de distanciamento, um mais vasto terreno de jogo. Os referentes reconhecíveis, ou adivinháveis, cercam cada imagem de um conjunto de sentidos e significados possíveis, mas que permanecem sempre como sentidos suspensos. Porque o modo de fotografar de Molder consiste precisamente em destacar de um fundo, em arrancar a uma atmosfera, determinados objectos, elementos, ângulos de visão, que, sem deixarem de reflectir essa atmosfera e de para ela remeter, se constituem em imagem autónoma, isolada, com um peso e uma eficácia próprias. As imagens de Molder escapam assim quer à ilustração, quer à arbitrariedade. São ao mesmo tempo o sintoma de uma atmosfera genérica e o centro de um mistério particular. No centro de um quadrado negro dois aparos sob um foco de luz, ou um embrulho atado com duas fitas brancas (fotografias da série Joseph Conrad) tanto podem ser dados de uma intriga como enigmas abstractos. É o que chamaríamos a vocação narrativa suspensa, ou virtual, das imagens de Jorge Molder.

Esta ambivalência é inerente à ideia de base do que é para o autor a fotografia.

“A fotografia tem um lado limitativo, e ao mesmo tempo nobre, porque à partida é algo feito a partir de outra coisa. Vive de um mundo que lhe é exterior. Mas é o fotografo, através da sua interpretação, que constrói esse mundo exterior. Todas as minhas imagens correspondem à minha forma de me relacionar com a fotografia. Tento elaborar um pequeno sistema de linguagem submetido à minha ideia do que é fotográfico: a luz como matéria que constrói as coisas, a presença física dos objectos na imagem e o lado icónico dessa mesma fotografia. Estive sempre muito próximo da poesia. Isso marca o que faço, pois tento sempre dar uma marca poética à imagem, tal como um poeta procura a sonoridade da palavra”.

A série The Secret Agent – neste sentido prenunciada pela série The Portuguese dutchman (1990) – desenvolve até às última consequências a vocação narrativa latente no trabalho de Molder. Ao mesmo tempo prolonga uma prática do auto-retrato que neste caso pode ser lida como uma alegoria: o fotógrafo – o autor – como “agente secreto”.

O livro organiza-se segundo uma série de sequências ou capítulos, comparáveis à estrutura de um romance policial. Apresentação do “herói”, o “agente-secreto”, auto-retrato enquanto detective. Os objectos que configuram o caso, de que se destacam uma caixa fechada e uma tina de vidro. As acções e investigações do detective. Exploração das possibilidades da caixa. Experiências com a tina da vidro, de que acabará por resultar a revelação de uma imagem.
A imagem a que se chega, no final, é a do auto-retrato que abre o volume. E na última fotografia duas mão seguram um livro aberto em que se vê esse mesmo auto-retrato e se lê o título “The Secret Agent”. O círculo fecha-se.

As potencialidades para uma leitura em termos de narrativa policial são óbvias, embora menos lineares e mais abertas do que esta descrição deixa entender. Múltiplas variantes se poderiam esboçar. As variações são, de resto, suscitadas e estimuladas pelos diferentes conjuntos e organização sequencial das fotografias escolhidas para cada exposição. Fora do esquema, naturalmente mais rígido, do livro, cada imagem, integrada num conjunto mais restrito e numa sequência mais flexível, vê aumentadas as possibilidades de projecção do seu mistério particular. Ao mesmo tempo que pode insinuar novas pistas de aproximação.
Em todo o caso, um conjunto de questões persistem sempre e constituem o próprio fundo da investigação deste agente secreto que, não por acaso, é um fotógrafo. Questões que se prendem, portanto, com os temas da autoria, da verdade e da culpa. O fotógrafo é o autor da fotografia, mas quem é o autor da imagem que o fotógrafo capta, revela e mostra?

Nos tempos em que ainda era Deus que tinha criado o mundo, o fotógrafo estaria destinado a uma função religiosa. Uma função de revelação. Mas talvez por isso mesmo nesta altura ainda não havia fotografia. Será então que foi a fotografia que destituiu Deus, assim deixando o mundo ao abandono, privado de um princípio de bem? Talvez por isso o fotógrafo se tornou detective. Para investigar a razão de ser do mundo. Conferir a realidade como fiscal tendencialmente corrupto.

O detective investiga um caso. Procura o culpado. Mas se o caso for o próprio mundo, este mundo abandonado por Deus, não há fio condutor nem parábola redentora que possam guiar e salvar o detective. Ele terá de inventar o seu próprio caso e construir a sua própria história. Se a história não for verdade, será ele o culpado. Mas uma imagem, tal como o mundo ou a realidade, nunca podem ser verdade. A verdade é uma categoria que não se lhes aplica. Portanto, o detective, o fotógrafo, o autor, é sempre o responsável, o culpado. É aqui que o “agente secreto” vai recorrer ao seu último truque. Durante o processo de investigação, o detective passa de investigador a investigado. No final das suas pesquisas e experiências descobre a sua própria imagem: resolve então desistir da responsabilidade e da culpa de sujeito e de autor. Desliza para o lado do objecto. Joga o jogo da confusão das identidades. E deixa-nos a nós, observadores, na posição de detective. Deixa nas nossas mãos uma imagem de si próprio e o incontornável mistério particular de cada imagem. E a responsabilidade de inventarmos nós uma história e a ameaça de sermos nós os culpados.


A imagem continua a brilhar na inocência do seu mistério, e o resto é a nossa culpa.

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Alexandre Melo, "A inocência do detective", in Arte & Leilões, N. 15, Junho-Setembro 1992, p.42-46.

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