COMUNIDADE DE ALEGRIA



Beatriz Milhazes. Ilha de Capri, 2002 (à esquerda)


Tudo começa sob o signo da cor, entendida, ou melhor, sentida, de um determinado modo. Não como um valor formal abstracto, mas como indutora de simpatias, ou seja, veículo de um acordo entre a percepção visual de formas e a experiência física de uma situação. O sentimento das cores é uma aposta política. O sentido político das obras de arte decide-se nas diferentes formas através das quais elas se disponibilizam para a experiência de diferentes tipos de políticas do imaginário.

A maneira como Beatriz Milhazes escolhe e dá forma às cores, que distribui como quem compõe uma música na superfície dos quadros, instaura um lugar visual para um determinado tipo de trabalho do imaginário. Uma aposta no estabelecimento de uma comunidade de alegria.

Na obra de Beatriz Milhazes, o trabalho de composição, regido pelo modo de utilização da cor, obedece ao que poderíamos chamar princípios de contaminação e desmarcação.

Contaminação, por analogia com o que se passa, por exemplo, na dança, em que cada movimento de um corpo desencadeia um movimento do corpo mais próximo gerando um efeito em cadeia que vai acabar por determinar a forma final da coreografia. Também aqui cada uma das formas nucleares da pintura da autora exerce o seu poder centrífugo, desenrola-se, contaminando o espaço em seu redor.

A aplicação do princípio da desmarcação, ao criar saltos, rupturas, contrastes, e distâncias no interior dos quadros garante que a contaminação expansiva nunca se transforma em redundância. Por exemplo, nos fundos, para além da alternância entre diferentes zonas de cor e zonas brancas surgem também zonas listradas que trazem um diferente tipo de vibração às formas que sobre elas se recortam. Formas figurativas, formas abstractas e marcas gráficas convivem livremente, umas vezes complementando-se, outras vezes opondo-se, no âmbito de um contínuo dinâmico e metamórfico. O que importa é que o quadro permanece vivo e obriga a nossa percepção a refazê-lo, como se tivéssemos participado na sua feitura, cada vez que o olhamos.

«Se a sinfonia das cores não funciona, a sedução acaba. Não estou mais preocupada com atordoamento visual. Mas sim em fazer o olho girar» (B.M. citada por Paulo Herkenhoff). Os olhos giram graças a um sentido ritmo que rege toda a composição e leva à procura dos equilíbrios mais singelos e mais vibrantes. Para que nada seja óbvio e nada seja complicado. Para que tudo bata certo.

Quando se fala no trabalho de Beatriz Milhazes, fala-se de Moda, por causa dos padrões, e do Brasil, por causa de tudo. Mas importa esclarecer o significado destas super-entidades.

Quando dizemos «Brasil» nem sempre estamos a referir-nos realmente ao Brasil. Estamos a dar o nome de algo que realmente existe, ninguém sabe muito bem como, ao lugar do nosso desejo de mais cor e mais calor. «Brasil» é o nome de um lugar melhor. Quando dizemos «Moda» não estamos a referir-nos às realidades de produção de roupa. Estamos a dar um nome ao desejo de mais beleza. «Moda» é o nome de um lugar ideal de sedução.

Se o trabalho de Beatriz Milhazes tem a ver com Moda ou Brasil não é tanto pela via de eventuais influências ou citações mas porque aposta na criação de lugares físicos – os seus quadros – que correspondem ao mesmo tipo de lugar ideal.

Quando a autora dá aos quadros títulos como Avenida Brasil, Praga ou Ilha de Capri mostra que se relaciona com estes lugares não através de referências concretas mas da evocação de uma aura utópica. Cada quadro é a realizada utopia de si próprio oferecida em partilha. Cada quadro é um lugar maravilhoso, animado pelo sentimento da cor, vocacionado para a demanda da alegria, e construído segundo um processo musical.

Um taxista de Salvador, explicando a euforia do Carnaval, disse-me: «Tem momentos em que você não quer nem dançar nem pular mas o corpo vai sozinho no meio do povo».

Tem momentos em que talvez você não queira nem sorrir nem sonhar mas os olhos vão sozinhos no meio das cores e dos ritmos de um quadro de Beatriz Milhazes. Não vale a pena resistir. 

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 3 de Julho 2004, p. 46

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