UM PIRATA NA SALA DOS SONHOS




Jon Routson. Bootleg (8 Mile). 2003
Jon Routson. Bootleg (Cremaster 4). 2002


O caso que hoje apresento é muito especial e a palavra caso vale quer na acepção estética quer judicial. Jon Routson nasceu em Washington, em 1969, vive e trabalha em Baltimore e está em princípio de carreira. Não sei se virá a ser um artista famoso, nem sei se os leitores estarão dispostos a considerá-lo um artista – excepto no sentido que às vezes se dá a palavra «artista» quando se admoesta um jovem mal comportado.

Passemos à apresentação do caso, tal como ele se nos depara na sua segunda exposição individual na galeria Team, em Chelsea, Nova Iorque. Jon Routson foi ao cinema com uma câmara de vídeo escondida, filmou na íntegra, a partir do seu ponto de vista, um conjunto, actualizado ao longo da exposição, de filmes em exibição nas salas de cinema, e apresentou nas paredes da galeria de arte os filmes tal como os filmou, com ruídos, interferências e distorções de perspectiva. «Bootlegs» de, entre outros, Chicago, Cidade de Deus, Femme Fatale ou Spum.

A questão mais geral diz respeito ao estatuto artístico dos filmes e à atribuição da sua autoria. Saber se ou quando é que um filme é uma obra de arte e quem é que pode ou deve ser considerado o seu autor é uma questão que permanece em aberto e suponho que tenderá a abrir cada vez mais. Podemos estar perante um problema legal que não deverá chegar a eclodir dada a pequena escala comercial da galeria. A questão torna-se mais aliciante se analisada em termos de trabalho do imaginário.

Ao longo do século XX e, desde logo, de forma gloriosa, nos anos 20, a sala de cinema tornou-se a grande sala dos sonhos que embalaram a imaginação dos cidadãos do mundo do século passado. Uma espécie de actualização das igrejas onde os devotos absorviam as imagens das figuras com que depois organizavam as suas fantasias e padrões morais. Os santos, tal como as «stars», para além de brilharem na sala dos sonhos, também tinham de funcionar na casa e na cabeça de cada um.

Se aceitarmos que as imagens dos filmes – e depois as da televisão – são as principais matérias-primas do trabalho do nosso imaginário percebemos que o modo de lidar com elas seja um problema relevante para os artistas plásticos contemporâneos.

A sala de cinema pode ser comparada com a igreja na sua função de sensibilização do imaginário de massas, mas há uma dimensão religiosa mais austera e rarefeita – que alguns dizem sagrada – que a massiva democracia cinéfila não favorece e que muitos entendem ter sido assumida, em termos culturais, no mundo moderno, por essa outra sala dos sonhos que seria a sala da exposição.
Como é que olhamos para as imagens com que fazemos sonhos? Que poder é que lhe queremos dar? Como é que queremos viver com elas? Há muitas hipóteses: a comemoração pública com popcorn e coca cola; ou a indiferença doméstica em pano de fundo do jantar; ou a veneração inerente à atenção que dedicamos às obras de arte; ou ainda o simples e radical gesto subversivo da apropriação e reprodução pirata.

O artista estende a sua lógica subversiva ao campo da arte e da televisão, quando num movimento inverso ao descrito, remonta o filme Cremaster 4 do artista plástico consagrado Matthew Barney numa versão-pirata que apresenta num televisor, sobrepondo-lhe o logótipo e segmentos de publicidade e informação da cadeia de televisão ABC.

O apropriamento artístico de Routson serve de exemplo literal da lógica, mais ou menos consciente, de reapropriação subjectiva e reciclagem de imagens em que assenta todo o trabalho de imaginação. Como qualquer pirata sabe, desde Douglas Fairbanks, desde a mais tenra idade, o que importa é partir à conquista dos tesouros. 


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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 25 de Abril 2003, p. 38

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