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Ang Lee. O Segredo de Brokeback Mountain. 2005.



Há pouco tempo vi na televisão um documentário realizado durante o Festival de Cinema de San Sebastian de 1972 em que se incluía uma rara entrevista com Howard Hawks. A entrevista tinha um lugar a bordo de um pequeno barco, as perguntas tinham a saudosa candura do cinema amador, e as respostas, como seria de esperar, tinham a grandiosa inocência do grande cinema.

Quando perguntaram a Hawks quais os filmes que mais tinha gostado de fazer, ele respondeu qualquer coisa como isto: «Os filmes que mais gostei de fazer: os ‘westerns’ com John Wayne. Eu só tinha de lhe explicar o que queria que ele fizesse. Ele fazia, e eu filmava».

Há alguns anos, uma perversa distância horária entre a aula da tarde e a aula da noite do meu horário de professor deixou-me o tempo exacto para, ao longo do semestre, ver – sempre na companhia de pipocas – uma série de filmes de uma hora de Lone Star Productions em que pude apreender a mais elementar gramática do «western» e apreciar o nascimento de John Wayne antes de ele se tornar o John Wayne histórico.

Nesses filmes preciosos, com títulos como Neath the Arizona Skies, Blue Steel ou Riders of Destiny, o jovem John Wayne dá o corpo a uma figuração masculina que veicula, dir-se-ia que com uma absoluta naturalidade, a imagem da pureza e inocência original do novo homem do novo Oeste, que é também, para o efeito, o novo Ocidente, ou, se quiserem, a nova Europa, isto é, a América. Claro que a naturalidade de que falo não é a da Natureza, que é tudo menos natural, mas sim a do cinema, que é a única natureza que nos foi dado produzir e, portanto, conhecer.

O corpo de John Wayne foi o portador de um olhar, um sorriso, uma pose que tinham ao mesmo tempo a evidência de uma encarnação do bem e de uma plena presença masculina («How many times do I gotta tell you, I don’t acta t all, I re-act»). A celebração desse John Wayne é feita de modo magistral pela escritora americana Joan Didion num texto comovente, intitulado «John Wayne: A Love Song» (1965), incluído no livro Slouching Towards Bethlehem, uma das obras máximas da autora. Didion conta como ficou para sempre à espera que um homem prometesse construir-lhe uma casa «at the bend in the river where the cottonwoods grow» e cita Raoul Walsh com a sintética eloquência que o caracteriza: «Dammit. The son of a bitch looked like a man».

Estavam criadas as bases para a construção da figura mítica que o cinema de Walsh, Ford e Hawks celebraram e consagraram: o «cowboy», uma das figuras mais fortes do imaginário cultural do século XX. Um estereótipo é antes de mais uma ideia de bem e um ideal de beleza modelados sob uma forma que permite gerar processos de identificação de massas. Um exemplo privilegiado da eficácia genérica da imagem do «cowboy» é a famosa campanha publicitária da Marlboro centrada na figura do «Marlboro Man». Através de anúncios cada vez mais depurados, em que foram deixando de existir quaisquer palavras ou mensagens explicitas, a Marlboro limitou-se a fazer deslizar o seu nome da marca para dentro de um universo que, através das mais simples imagens de paisagens e homens a cavalo, continha a vastidão de um mundo inteiro, o mundo do «cowboy».

São estas imagens da publicação da Marlboro que, nos anos 80, vão ser apropriadas por Richard Prince, um dos mais importantes artistas plásticos americanos do nosso tempo. O apropriacionismo é uma tendência da prática artística contemporânea que consiste em usar algo já existente, com alterações mínimas, mas apresentando-o de um modo diferente, num contexto diferente, abrindo assim um espaço de multiplicação, subversão ou inversão de sentidos.

«A imagem do ‘cowboy’ é tão familiar na iconologia americana que se tornou quase invisível devido à sua banalização. Ao mesmo tempo, o ‘cowboy’ é uma das mais sagradas e teatrais (‘masklike’) figuras culturais. No sentido cultural e geográfico, o ‘cowboy’ é uma imagem de ‘endurance’ e um símbolo, um estereótipo do cinema americano. É ao mesmo tempo o vagabundo (‘wanderer’) e o símbolo mítico da mobilidade social» (Rosetta Brooks, in Catálogo Richard Prince, Whitney Museum). Quando Prince reenquadra e refotografa as imagens dos anúncios da Marlboro e as apresenta no contexto do mundo da arte contemporânea, recria uma distância suplementar que permite um novo olhar. As imagens do mundo do «cowboy» são depois despidas de todas as suas especificações mais particulares, mais fechadas ou mais vinculadas e deslocadas para um terreno de indeterminação dos sentidos que abre, por um lado, para a nostalgia dos desejos de pureza original e, por outro, para todas as possibilidades de novas conexões e conotações.

Pensa-se por vezes que um estereótipo é uma entidade fechada. Foi talvez essa crença que tornou o «cowboy», num dado momento, um alvo preferencial das caricaturas típicas da propaganda antiamericana. Mas um estereótipo é o representante de um mundo inteiro, e, por isso, a dinâmica de liberação dos sentidos não se pode fazer contra o estereótipo, mas sim abrindo no coração do estereótipo um espaço liso que lhe devolve a tensão originária e o horizonte infinito do que nos habituámos a chamar liberdade. Se falamos de horizontes de liberdade não pode haver evocação mais feliz do que a do «cowboy».

Brokeback Mountain é, por certo, o filme do ano, uma majestosa história de amor e uma obra-prima do melodrama. É também uma lição de moral e uma demonstração do anacronismo cultural dos grandes inquisidores e falsos liberais, que continuam a promover a homofobia e a discriminação com base nas preferências sexuais. Mas Brokeback Mountain é, sobretudo, a demonstração da capacidade do grande cinema para transportar toda a carga mítica da sua tradição e, ao mesmo tempo, abrir espaços infinitos para a imaginação das histórias que hão-de dar novos destinos aos nossos heróis eternos. É a celebração do cinema como triunfo da liberdade que pode unir num mesmo abraço Jake Gyllenhaal, Heath Ledger, John Wayne, Dean Martin e todos os «cowboys» do mundo.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 25 de Março 2006

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