TUDO ISTO É FADO



Francesco Vezzoli. Amália Traída. 2004

Vasco Araújo. Arte e o Fado, Azulejo da Colecção Alma Lusa. 2005
Adriana Molder. Arte e o Fado, Azulejo da Colecção Alma Lusa. 2005




«Povo, povo eu te pertenço!» Esta declaração lê-se no azulejo criado por Vasco Araújo para a colecção «Alma Lusa», uma série de 20 azulejos e CD dedicados ao fado, lançados pelo BPI.

O que podem dizer estas palavras, num pálido eco das mesas palavras ditas por Amália? O que é pertencer? Talvez seja fazer parte de uma comunidade: um povo, por exemplo. Mas o que é o povo? É um povo, o povo ou apenas povo?

Pronunciada por uma «diva», esta declaração não é a constatação de uma entidade preexistente (o povo que a admira), mas sim a criação, a instituição, através das palavras que a convocam, de uma comunidade unificada pelo próprio lugar central da «diva» em torno da qual a comunidade se congrega.

Mas pertencer também é ser objecto de uma relação de posse, que é como quem diz ser possuído. A questão da diferenciação entre sujeito e objecto de posse é sempre complexa no quadro das relações humanas e mais ainda no âmbito da relação entre uma «diva» e o seu público ou entre um artista e o seu público. A figura da «diva», na ópera ou no fado, é uma referência central da obra de Vasco Araújo, que muitas vezes, tal como aqui, se apresenta como duplo da «diva». Na mesma série de azulejos, Adriana Molder recorre também à imagem da Amália. Em poucos anos de regular apresentação do seu trabalho, a artista conseguiu afirmar um lugar próprio da produção imagética, constituindo uma galeria, em constante expansão, de figuras com bem reconhecível pertença autoral.

As imagens de Adriana Molder começam por ser identificáveis através da especificidade do dispositivo técnico que lhes dá origem. As peculiares cambiantes texturais permitidas pela utilização, como suporte, de papel «esquisso» aliam-se a um processo pouco usual de aplicação da tinta-da-china com recurso a formas de controlo de manchas aleatórias. Os tipos de transparência e a inesperada densidade resultante destes processos criam o espaço especial, indeterminado, em que as personagens parecem estar mergulhadas.

Estamos numa galeria de figuras em que se combinam, os ecos da fidelidade retratísticas, a vocação para a invenção ficcional ou narrativa e, pairando em torno de tudo, algo que, para não lhe chamar aura, designaremos por qualidade atmosférica. Uma atmosfera que desloca o estatuto da representação para um estatuto de memória, onde o exercício da distância em relação ao observador se torna irreversível e, nesse trânsito, torna inevitável e quase leve passagem de uma sombra de morte. Todas as personagens são fantasmas, e as imagens são sempre póstumas. Dir-se-ia, então, que tudo isto é fado e que a imagem de Amália, aqui evocada na dupla distância de uma capa de disco, não poderia deixar de aparecer e de ensombrar a galeria de figuras de Adriana Molder.

Vasco Araújo e Adriana Molder, de uma modo que talvez é inevitável para qualquer português, artista ou não, evocam Amália de dentro para fora. Ou seja, a partir de um dentro que é precisamente o sentido de comunidade que em torno do nome de Amália se constituiu e hoje perdura como referência mítica cujo poder em nada se esbateu.

Uma posição diferente em relação a Amália é a do artista italiano Francesco Vezzoli no seu vídeo Amália Traída, recentemente apresentado na sua exposição na Casa de Serralves.

Vezzoli tem vindo a elaborar um sistemático e sedutor trabalho de recriação e reencenação de figuras de «divas» e «stars» do mundo do cinema e da música, adoptando uma atitude em que o fascínio estético se conjuga com um distanciamento «camp» e a emoção lírica não foge aos riscos do «flirt» com o «kitsch».

O autor começa por colocar Amália num contexto mais vasto que o do fado e as suas circunstâncias históricas portuguesas, escolhendo para actrizes do seu filme e veículos de evocação de Amália duas outras «stars» com outras e bem diferenciadas origens disciplinares, culturais e geográficas: Lauren Bacall e Sónia Braga.

Bacall, de quem entre muitas outras coisas ninguém esqueceu o eterno: «just put your lips together and blow», é aqui chamada a, usando os lábios de modo aliás bastante ostensivo, ler, como quem lê episódios de uma novela ou documentário radiofónico, sucessivas cenas da vida de Amália, escritos a partir de informações convencionais obtidas na Internet. O tom, tal como o sorriso, é simpático, mas construído com uma deliberada artificialidade que o aproxima da complacência irónica. A seguir, Sónia Braga, em sucessivos «quadros vivos» reportáveis à estética do «video-clip», vem dar corpo a imagens ilustrativas dos diferentes momentos da carreira e vida de Amália.

É claro que Lauren Bacall e Sónica Braga, para além de interpretarem e apresentarem Amália, interpretam e apresentam também as suas próprias imagens e mitos, nomeadamente, no caso da artista brasileira em Portugal, a imagem de Gabriela (da telenovela que adaptou o romance de Jorge Amado), também ela detentora de um lugar cativo no imaginário nacional português. Deste modo, Amália Traída desestabiliza a visão portuguesa ortodoxa do mito de Amália e perturba o confortável sentido de comunidade que gostamos de lhe associar. Em contrapartida, dá-nos acesso aos prazeres estúpidos e heterodoxos de assistir a um convívio entre três mulheres, três mitos e uma multiplicidade de personagens e memórias que entre elas se sublinham, rivalizam, entrechocam, complementam, sobrepõem ou menorizam. À nossa confusão e fruição não falta sequer, como o nome da obra indica, um ligeiramente desagradável sentimento de traição à Amália a que julgamos pertencer.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 30 de Abril 2005, p. 62-63





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