JUVENTUDE PERDIDA




Gus Van Sant. Last Days. 2005. Michael Pitt (protagonista)


O único mistério da vida é a adolescência. O nascimento é apenas um acontecimento, devido à ausência de consequências racionalmente processáveis, é um não-acontecimento. A ideia de mote produz imensos efeitos, mas a morte, na realidade não existe. Tem falta de um depois documentável. A velhice, sendo talvez uma coisa boa, é o que é. A idade adulta também. Isto é: também é a velhice.

A infância, do ponto de vista do próprio, não é nada, porque o próprio não tem ponto de vista próprio. A infância são as mães. Uma coisa extraordinária mas que não chega a ser um assunto, porque é sempre bastante mais. A infância também serve às vezes para ser depois inventada.

A adolescência é o único mistério. Um rapaz já é um homem, mas ainda não sabe bem o que é, e isso é susceptível de gerar inúmeros equívocos, que por vezes se viram contra o próprio ou contra os que o rodeiam. A violência adolescente aparece como uma espécie de cena de pancada em que agressor e vítima são a mesma pessoa, se é que se lhe deve chamar pessoa. A adolescência é uma forma de fome. A comida disponibilizada pelos mais velhos não presta, e os adolescentes comem a sua própria carne, que por vezes se torna venenosa.

A melhor alternativa à violência são os espelhos, mas estes nem sempre funcionam do modo mais desejável. A descoberta do espelho é a maior descoberta da história da humanidade de cada homem. O rapaz passa a poder ser um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, uma legião de imagens de homens capazes de arrumar e usar o mundo à medida das suas vontades, fantasias e prazeres. Nos melhores casos, o sortilégio dos espelhos inspira imagens de sucesso, que são também uma promessa de sexo.

Mas é preciso ter muito cuidado com os espelhos, porque nunca se sabe exactamente qual a imagem que nos vão devolver. Uma descoincidência radical pode geral uma decepção com consequências catastróficas.
Um dos grandes especialistas da contemplação da adolescência, na plenitude do seus potencial de sedução, é o realizador Gus Van Sant. Recordemos uma das suas primeiras obras, a média-metragem Mala Noche (1985), ou Matt Dillon em Drugstore Cowboy (1989), River Phoenix e Keanu Reeves em My Own Private Idaho (1991). Até chegarmos ao que ele agora considera ser uma trilogia, composta por Gerry (2002), com Matt Damon e Casey Affleck, Elephant (2003) e Last Days (2005), com Michael Pitt no protagonista. Em todos estes casos trata-se de filmar corpos portadores do que chamamos o mistério da adolescência. Um esplendor pasmado, mesmo quando afligido por uma agitação frenética. Consideramos aqui que o estado de adolescência se pode prolongar para além do prazo de validade estética dos candidatos ou do período cronológico que lhe está destinado. É o caso da referência central de Last Days, Kurt Cobain, e de alguns outros mártires juvenis, por vezes um pouco estúpidos.

No meio da desoladora beleza dos desertos de Gerry, um dos protagonistas pergunta: “Para onde é que vais?” Resposta: “Não sei. Ajuda-me a chegar lá”.

A adequação da maneira de filmar de Gus Van Sant aos seus objectos privilegiados revela-se sob a forma de uma frieza e distanciamento peculiares. O autor não finge ser possível uma identificação com a interioridade dos objectos filmados. Este efeito de decepção sistemática é particularmente perturbador no caso de Last Days. Jamais nos é concedida a ilusão de entrar dentro da personalidade dos protagonistas, sentir o que eles sentem ou pensar o que eles pensam. Podemos vê-los de um modo atento, demorado, lento, levemente voluptuoso. Podemos por vezes julgar ver o que eles vêem. Mas nunca saberemos nada sobre eles, como nunca saberemos nada sobre ninguém em estado de adolescência. Ou seja, antes de cair dentro dos formatos vulgarizadores que fazem com que já não reste quase nada que valha a pena ser, porque tudo é já mais do que sabido.

A aparente frieza do método do Gus Van Sant não se confunde com a indiferença, porque é vitalizada por uma empatia estética com os corpos filmados que nalgumas passagens se aproxima do fascínio obsessivo.
Há quem considere Last Days sublime, à maneira de Dreyer. Veja-se a cena da ressurreição e ascensão. O respeito da câmara impede-os de segredar uma psicologia. A aura dos corpos permanece imaculada, transformando-os em maravilhosos exemplos da perdição contemporânea.

Ian Curtis, Kurt Cobain e Michael Jackson são os três (anti?) heróis da Doppelganger Triology (Triologia do Duplo, 2001/2004), que começou a tornar conhecida a obra do artista plástico Slater Bradley, nascido em São Francisco em 1975, estudante na UCLA (Los Angeles), hoje activo em Nova Iorque e cada vez mais presente em galerias e museus nos Estados Unidos e na Europa...

A trilogia reúne os vídeos Factory Archives (2001/2002), Phantom Release (2003) e Recorded Yeasterday (2004), dedicados às três figuras referidas. Nestes vídeos, os protagonistas são interpretados por Benjamin Bock, um efectivo duplo do autor cujo papel é representar Slater Bradley a representar o papel das suas personagens de eleição. A estética adoptada evoca a filmagem clandestina de concertos por fãs amadores, os filmes atingidos pela degradação física ou as experiências de manipulação directa da película na tradição do cinema experimental.

O efeito oscila entre o culto nostálgico das estrelas caídas e a atmosfera fantasmática dos suspiros e aflições do imaginário em busca de objectos e ideias de identificação. No seu filme mais recente, Intermission (2006), o artista retoma a figura de Michael Jackson, mostrando-o a passear na neve e a subir a uma árvore, numa referência pungente a uma infância inviável. A encenação de um relacionamento com um outro tipo de heróis da cultura popular juvenil (Darth Vader) pode observar-se por exemplo, na fotografia de grandes dimensões Uncharted Settlements I (2005), visível numa exposição de grupo na Team Gallery (Nova Iorque).

Na exposição «Bridge Freezes Before Road», comissariada por Neville Wakefield para a Gladstone Gallery (Nova Iorque), encontramos The Yeat of the Doppelganger (2004).

O filme mostra uma rapaz de tronco nu e cabelo louro, um pouco desgrenhado, descendo as bancadas desertas de um estádio para se ir sentar em frente de uma bateria instalada no centro do relvado e iniciar um frenético solo. À sua volta treina um grupo de atletas que correm para trás e para a frente, em explosões de velocidade, como quem ensaia sempre recomeçados arranques de corridas que de imediato se transformam em «sprints» finais. A descrição destas imagens serve de resumo e conclusão desta crónica.

Last Days, de Gus Van Sant, tem estreia marcada para 13 de Outubro.

.....................................
Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 27 de Agosto 2005, p. 30-31




Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.