DEPOIS DA FESTA




João Pedro Vale. Foi Bonita a Festa, pá! 2006.




A mais recentre escultura de grandes dimensões de João Pedro Vale foi elaborada a partir de uma jangada trazida do Noroeste do Brasil para ser transformada e exibida na Galeria Leme em São Paulo. A circunstância torna-se significativa devido à peculiar história das relações entre Portugal e Brasil. A circunstância espacial particular desta apresentação deve ainda ser sublinhada devido à admirável concepção arquitectónica da galeria da autoria de Paulo Mendes da Rocha (Prémio Pritzker deste ano) que criou uma nave longa, estreita e muito alta que parece fazer apelo à passagem de um barco.

A obra de Vale põe me jogo a relação entre Portugal e Brasil, no quadro da revisão multiculturalista do colonialismo e de uma problematização da relação entre práticas culturais populares e eruditas. Esta escultura surge na sequência de outras obras do autor alusivas às viagens marítimas tendo como referência barcos (Bonfim e Barco Negro, 2004) e um farol (Heróis do Mar, 2004).

Vejamos quais as metamorfoses e deslocações a que Vale submete esta jangada (em vez de uma caravela) com a qual, como português, «chega» hoje ao Brasil. Em primeiro lugar a cor. Todo o barco é pintado de vermelho gerando o máximo contraste com os castanhos e amarelos dourados dos adornos: garrafas vazias de cerveja e respectivas tampas. O vermelho e dourado remetem, antes de mais, para uma teatralidade católica e barroca que é marca do legado português no Brasil. A inspiração mais directa vem do Coche dos Oceanos que fez para da embaixada, custeada pelo ouro do Brasil, enviada em 1716 pelo Rei D. João V ao Papa Clemente XI: um coche todo em talha dourada e veludo vermelho do qual, ao passar, eram distribuídas moedas de ouro pelo povo. As mesmas cores remetem para as bandeiras vermelhas que, em Portugal, tiveram grande protagonismo durante a revolução de 1974, que gerou uma grande empatia entre artistas portugueses e brasileiros, ambos submetidos a longos períodos de ditadura.

A peça chama-se Foi Bonita a Festa, Pá, verso de uma canção então censurada no Brasil, do cantor brasileiro Chico Buarque, dedicada à revolução portuguesa. A «Revolução dos Cravos» é ainda assinalada por um arco de cravos vermelhos que se estende ao longo do barco, ao jeito dos arcos que decoram os terreiros de festas populares. A marca das formas de convívio e diversão popular tem a sua expressão mais conseguida no uso, como se fossem decorativas jóias douradas (as moedas de ouro dos pobres), das tampas das garrafas de cerveja Sagres, tradicionalmente usadas também nas brincadeiras de crianças. Garrafas vazias são usadas em cachos distribuídos pelo barco, sugerindo bóias ou a sensação de flutuação inerente ao tempo «depois da festa». Não devemos esquecer que Sagres é o lugar onde terá existido uma escola de navegação que esteve na origem da viagens marítimas e o nome do navio-escola da armada portuguesa.

O jogo entre os materiais «pobres» e os efeitos «ricos» de cor e luz, fazendo eco ao jogo entre luxo e o kitsch, é outra das formas tomadas pelo jogo dialéctico de contradições que estruturam esta escultura e, de resto, o conjunto da obra do autor.

O mesmo tipo de deslocações formais e simbólicas realizadas a partir de objectos relacionados com a expansão colonial está patente num conjunto de 13 esculturas de menores dimensões apresentadas na galeria Layr: Wuestenhagen, em Viena. As referências são objectos da colecção do Imperador Maximiliano II, hoje guardados no Kunstkammer do Kunsthistorisches Museum de Viena. Produto da curiosidade antropológica e das fantasias associadas à exploração colonial, estes objectos pretendiam ilustrar o exotismo de paragens distantes. Portugal foi um dos principais fornecedores devido à presença em Lisboa da Rainha Catarina de Áustria e à acção de um «dealer»/«advisor» que funcionava como espião do Imperador. Para alimentar uma procura crescente os fornecedores inventaram seres estranhos como o unicórnio (cujo adorno era afinal um bico de Narval) ou o «homem silvestre» (escravos africanos cobertos de pêlos de cabra para serem exibidos como raridades).

Esta invenção cruel serve de referência a uma das peças mais conseguidas da exposição: Ecce Homo. A forma de uma taça transforma-se num corpo exótico, metade tronco de cola termofusível, metade peruca afro-disco de Carnaval, que se equilibra sobre os cornos invertidos de um capacete viking de Carnaval, forrado de cabedal e tachas douradas, e uma ponta de chapéu de chuva. Um colar de pingentes de imitação de tartaruga e um penacho com penas de galo chinês completam o conjunto. Nesta exposição, a multiplicação das invenções formais e a combinação dos mais improváveis materiais geram uma irrisão do exotismo que é acompanhada de uma paródia às fantasias sexuais colonialistas com acentuado valor desmistificador.

No conjunto das suas peças mais recentes, Vale aprofunda um trabalho de citação e metamorfose de objectos pré-existentes através do recurso a materiais pobres e inusitados que sabotam a distinção entre o belo e o horrível, a humildade e a sofisticação. A valorização das formas populares de criatividade é posta ao serviço de uma análise das fantasias colonialistas em que desmitificação das ficções de dominação abre o caminho a uma pluralidade de possibilidades igualitárias de invenção híbrida de novos jogos plásticos e simbólicos.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa.



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