A relação entre os papeis respetivos do setor público e do
setor privado na esfera cultural sempre foi um dos temas mais complexos e
controversos no âmbito dos debates sobre política cultural. Ao longo da segunda
metade do século XX, sobretudo na Europa,
manifestou-se, em termos ideológicos, uma tendência para pressupor uma
oposição de princípio entre arte e
mercado. As formas extremas das
formulações políticas decorrentes da aceitação desta oposição seriam a defesa de uma estatização integral da
política cultural ou, do lado oposto, a defesa da extinção das políticas
culturais públicas e o abandono da cultura à pura lógica do mercado, no quadro
do economicismo liberal mais radical.
Em termos de realidades sociais concretas ambas as opções extremas são
absurdas ou mesmo inviáveis. (Para uma análise mais desenvolvida veja-se
“Políticas Culturais”, in Alexandre Melo, “Globalização Cultural”, Quimera,
Lisboa, 2002, pp 145/152).
Não é possível – muito menos no contexto das crises
orçamentais que hoje se vivem em tantos países, sobretudo europeus – pretender
que o Estado possa assegurar o financiamento ou sequer o funcionamento de todas
as instituições e práticas culturais e artísticas mais relevantes. Mas também
não é possível supor que o mercado possa
garantir, nas práticas
artísticas e culturais, os níveis de dinamismo, diversidade, criatividade
e inovação necessários à formação
de cidadãos com o grau de informação cultural e a capacidade de imaginação
criativa necessários à vivência plena da democracia e habilitados, do ponto de
vista intelectual, para participar numa dinâmica global de intensa competição
nas áreas da criatividade ou mesmo do empreendedorismo. Daqui decorrem duas
consequências.
Em primeiro lugar importa assumir o seguinte : “A política
cultural deverá ser uma política central de qualquer governo. Essa noção ganha
mais relevância sobretudo em estados que têm que lutar contra problemas sociais
que implicam défices culturais muito elevados. Qualquer país que queira
‘energizar’ a sua sociedade, no sentido de fazê-la participar da dinâmica
global, tem que fazer uma aposta forte na política cultural. É fundamental que
comece a existir essa consciência em países como os nossos. Dessa forma, a
cultura terá de ser vista como um projeto governamental geral e transversal,
envolvendo os vários ministérios” (Alexandre Melo,“Mecenato Privado”, in “Anais do II Congresso
de Cultura Ibero-Americana : Cultura e Transformação Social”, 2009, SESC, São
Paulo, p.192).
Em segundo lugar, é necessária uma estreita e produtiva articulação
entre atores públicos e atores privados, com vista a potenciar os recursos e
valias disponíveis em cada contexto social concreto.
A necessidade desta articulação tornou-se particularmente
evidente, ao longo da última década, por exemplo na área da arte contemporânea,
onde muitas das principais coleções entretanto constituídas foram coleções
privadas, ao mesmo tempo que as instituições públicas se deparavam com
crescentes limitações financeiras, burocráticas e políticas. Vamos a seguir exemplificar algumas possibilidades proporcionadas
por este tipo de articulações recorrendo a casos relativos às realidades
portuguesa e europeia.
O
momento histórico que atravessamos, marcado pelo impacto – diferenciado em
função da situação concreta de cada país ou região – da crise financeira
internacional e das crises orçamentais que, em muitos países, lhe estão
associadas, afigura-se particularmente estimulante para testar e pensar o futuro
possível do setor público (os orçamentos estatais para a cultura), do setor
privado (a disponibilidade financeira dos agentes económicos privados) e das
relações entre eles no âmbito do
colecionismo de arte contemporânea, quer em termos gerais, quer nalguns casos
concretos aqui apresentados.
ALGUNS EXEMPLOS
Em Portugal, no que diz respeito à arte do último século, o
setor privado sempre teve um papel fundamental. A mais importante coleção de
arte portuguesa do século XX é a coleção da Fundação Gulbenkian, uma fundação
privada que muitas vezes se diz ter funcionado, em Portugal, no período final
da ditadura (1926 /1974) , como o “substituto” do que deveria ter sido um
ministério da cultura moderno. A mais importante, em Portugal, coleção de arte
internacional do século XX, é a Coleção Berardo, também uma coleção privada
atualmente instalada num espaço público, o Centro Cultural de Belém, em Lisboa,
no âmbito de um protocolo assinado com o Estado. Um dos mais prestigiados
espaços de exposição de arte contemporânea, em Portugal, é o Museu de
Serralves, no Porto, gerido por uma fundação “mista” criada com base num acordo,
com contornos específicos, entre o Estado e os fundadores privados. A mais
importante coleção de arte contemporânea (entendida no sentido de arte dos
últimos 30 anos) internacional, em
Portugal, é a coleção da Fundação Elipse, também ela uma coleção privada. Esta
coleção faz parte da FACE, um exemplo de cooperação internacional entre
instituições culturais privadas europeias.
O projeto FACE (Foundations of Arts for a Contemporary
Europe) foi apresentado pela primeira vez no Parlamento Europeu, em Bruxelas,
em 2008, congregando um conjunto de fundações de arte contemporânea,
localizadas em diferentes países, que se propõem trabalhar em conjunto numa
série de iniciativas comuns. A sua exemplaridade, dentro da lógica de análise
que temos vindo a propor, resulta do facto de estarmos perante instituições
privadas que se associam para desenvolver uma função – que poderíamos
qualificar como pública - de promoção de arte contemporânea.
Comecemos
por estabelecer uma caracterização das diversas fundações intervenientes no
projeto: Deste Foundation (Grécia), Ellipse Foundation (Portugal), Fondazione
Sandretto Re Rebaudengo (Itália), La Maison Rouge – Fondation Antoine de
Galbert (França), e Magasin 3 Estocolmo Konsthall (Suécia).
A
fundação Deste, com base em Atenas, surgiu em 1983, por iniciativa do
colecionador Dakis Joannou, assessorado pelos curadores Adelina von Fürstenberg
e Efi Strousa, tendo um espaço próprio permanente desde 1998. A instituição tem
organizado diversas exposições e apoiado projetos e publicações internacionais,
promovendo tanto artistas consagrados como jovens artistas, nomeadamente
através da atribuição de um prémio
para artistas gregos emergentes. A programação estende-se a projetos
curatoriais e eventos especiais que exploram a conexão entre arte, moda,
música, cinema, arquitetura ou design.
A
Ellipse Foundation, surgiu em 2004, por iniciativa de João Oliveira Rendeiro, instalando-se
posteriormente num espaço próprio de exposição, em Cascais, com o propósito de apoiar os artistas
contemporâneos através de um conjunto de iniciativas que incluem a aquisição e
a produção de obras, exposições, projetos especiais e programas educativos. Ao
longo do tempo a instituição apostou principalmente na constituição de uma
coleção de referência no âmbito da arte contemporânea internacional e num
programa expositivo desenvolvido em colaboração com importantes curadores
internacionais como Andrew Renton ou Lisa Phillips..
A
Fundação Sandretto Re Rebaudengo, com sede em Turim, foi fundada em 1995 pela
colecionadora Patrizia Sandretto Re Rebaudengo, sendo seu diretor artístico
Francesco
Bonami.
Desde o início apresenta um programa expositivo atento a temáticas políticas,
sociais e filosóficas, reunindo artistas nacionais e internacionais.
Paralelamente tem desenvolvido projetos em colaboração com instituições internacionais como o Hara
Museum, de Tóquio, a Serpentine Gallery de Londres, ou o Walker Art Centre de
Minneapolis. As exposições são acompanhadas por eventos cinematográficos,
teatrais e performativos. As suas atividades complementam-se com um programa
anual de residência para jovens curadores e um prémio dedicado às mulheres.
La
Maison Rouge surgiu em Paris, em 2004, por iniciativa do colecionador Antoine
de Galbert. Através de um programa de exposições temporárias – individuais,
coletivas e exposições especiais focadas em coleções privadas – a instituição
procura desenvolver diferentes facetas da criação contemporânea, incluindo
múltiplas formas de expressão como a arte “outsider”, a performance, a arte
primitiva e a arte popular. A atividade da fundação completa-se na encomenda de
obras de arte e na publicação de monografias, catálogos de exposição e livros
de referência no âmbito da história da arte.
A Magasin
3 Stockholm Konsthall, impulsionada por Robert Weil e dirigida por David
Neuman, desde 1987, aposta na apresentação de artistas internacionais de renome
através de um intenso programa de exposições. A atividade expositiva
processa-se numa relação dialética com a coleção, nomeadamente através da encomenda
e produção de novos trabalhos. Paralelamente, a instituição desenvolve uma
atividade editorial através da publicação de catálogos que documentam as
exposições e a produção dos artistas, bem como um programa de palestras e
conferencias.
Esta
apresentação sucinta dos diversos intervenientes no projeto FACE serve para
compreender melhor a origem do projeto mas também para estabelecer, através das
similitudes entre as diversas fundações, um retrato genérico das fundações
privadas de arte contemporânea e do papel que desempenham. Antes de mais temos
uma forte associação à figura do fundador – geralmente um colecionador privado
– e o desenvolvimento de coleções de referência, em termos internacionais, que
servem de base a extensos programas expositivos, habitualmente com uma vocação
internacional quer ao nível de artistas e curadores, quer de eventuais
parcerias.
As
coleções e as exposições, por sua vez, requerem o estabelecimento de espaços
expositivos, adaptados arquitetonicamente à arte contemporânea e que se
traduzem, em muitos casos, na requalificação de edifícios pré-existentes,
frequentemente com um passado industrial.
Igualmente
importantes, enquanto expressão dos objetivos das fundações privadas, são as
diversas iniciativas paralelas às exposições e que reforçam o sentido “público”
das suas funções. Estes eventos incluem atividades que procuram cruzar a arte
com outras manifestações da cultura contemporânea, programas educativos e de
formação de púbicos, ciclos de conferências e palestras, atividade editorial ou
apoio a artistas emergentes com bolsas, prémios, residências e encomendas.
Devemos
contudo salientar que a associação das diversas fundações num mesmo projeto não
implica a redução a um denominador comum. Antes funciona de acordo com um
modelo de expansão de possibilidades e de concentração de recursos.
Embora
as fundações privadas contemporâneas funcionem, em grande medida, fora dos
enquadramentos nacionais, tal não implica que, de diversos modos, a realidade
local de cada instituição não esteja presente, influenciando, por exemplo, a
escolha dos artistas representados em cada coleção. A pluralidade de geografias
abrangidas pela FACE – Grécia, Portugal, Itália, França, Suécia – implica uma diversidade de pontos de vistas
locais sobre uma realidade europeia e global, com uma amplitude que não seria facilmente
igualada por instituições associadas ao setor estatal.
À
multiplicidade geográfica acrescentam-se as idiossincrasias dos espaços
expositivos – permitindo que a mesma exposição seja confrontada, na sua
itinerância, com modelos espaciais heterógenos –, as experiencias diversificadas
das equipas de cada instituição e, obviamente, uma ampliação quantitativa e
qualitativa dos públicos.
A
expansão das possibilidades completa-se, como referimos, numa concentração de
recursos, tanto financeiros como culturais, os quais por sua vez se
materializam na realização de eventos expositivos e outras atividades.
Até
ao momento a FACE realizou uma exposição, assinada pelos curadores das várias
coleções, que apresentou trabalhos das diversas fundações associadas ao projeto,
sob o título Investigations of a Dog,
a partir de um conto de Franz Kafka. Teoricamente, a exposição baseou-se na
noção de “literatura menor”, utilizada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze
e Felix Guatari, na análise ao trabalho de Kafka, para descrever a ligação
entre escrita e política, ou seja, a possibilidade de a criação artística
conter mensagens revolucionárias, a partir, precisamente, do uso subversivo da
linguagem. Os artistas reunidos na exposição partilham a prática de uma arte
que pode ser lida à luz desta categoria de “menor”, na medida em que
desenvolvem um discurso artístico que não reproduz as categorias estéticas consagradas e subverte o uso
convencional dos meios expressivos que adota. Como o cão, protagonista do
conto de Kafka, estes artistas colocam a si mesmos questões sobre o sentido do
fazer artístico, estimulados por um envolvimento emocional apaixonado com a
sociedade dos seres humanos.
A
exibição itinerou durante dois anos pelos espaços expositivos das várias fundações
e deu origem a um conjunto de publicações, escritas na língua de cada pais e incluindo contos inéditos, encomendados
para este efeito, de jovens escritores de cada país, baseados no texto de Kafka
e nas obras expostas.
De
um modo genérico podemos concluir que o projeto FACE constitui um exemplo
paradigmático da necessidade de repensar os modelos institucionais ao nível da
arte contemporânea e que, de certa forma, espelha as possibilidades mas também
as incertezas da uma realidade europeia atual marcada pela crise.
Reunindo
cinco fundações privadas sem fins lucrativos a FACE pertence, obviamente ao
universo do setor privado, principalmente ao nível dos recursos que mobiliza.
Porém, as atividades que se propõe desenvolver – exposições, co-produção de
obras, projetos editoriais – bem como os objetivos que assume – promover a arte
contemporânea e alargar o seu público – tem uma matriz eminentemente pública.
O
projeto FACE espelha uma característica fundamental do seu próprio objeto : o
facto de a arte ser, por excelência, o lugar do público e do comum e, portanto,
um espaço privilegiado para repensar as categorias de público e privado.
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Texto realizado por ocasião de uma Conferência em Brasília, a 19 de Outubro de 2012