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EM SÃO SALVADOR DA BAHIA




Pela primeira vez na vida encontrei uma coisa que não quero compreender. Isto é um progresso e uma maneira de começar a falar do Brasil.

Quis um falso acaso que ocupasse algumas das oito horas do meu voo entre Lisboa e Salvador – porque é só de Salvador, da Bahia, que, por hoje, vou falar – com a leitura da jovial colectânea de textos escritos por Agustina Bessa-Luís entre 1970 e 1974: “Alegria do Mundo – II”. A página 155, Agustina caracteriza um certo tipo de homens que crescem tristes e macambúzios porque na infância não habituaram o “paladar à sensibilidade do vinho, ao gosto da erva de cozinha, ao perfume do cravo, ao hálito da canela quente, ao dormido tempero do alecrim na caça”. Pois bem, feitas as adaptações gastronómicas impostas pela geografia, eu diria que com a gente de Salvador acontece exactamente o contrário. Sabor e saber.

Sentam-se num degrau do passeio como numa poltrona porque todos são proprietários da completa extensão dos seus próprios corpos.

Deitam-se na calçada como em colchão de pena de palácio porque todos são príncipes da completa extensão dos seus próprios corpos.

Estão de pé sobre precaríssimos telhados como estátuas de carne quente em pedestal.

Descansam refastelados num monumento de pneus à porta de uma borracharia.

Três rapazes exemplares, calção de banho a rigor, jogam bilhar à volta de uma luzida mesa de pano verde, bem como no meio de uma rua do Bairro da Liberdade.

“Capoeira”: os exercícios na praia, o espectáculo. Será que se deve considerar uma forma de dança? Ou uma modalidade de performance, pelo menos? Geralmente chamam-lhe arte marcial, mas não tem importância. Há coisas que, sendo o que são, não precisam de ser arte.

Assisti a uma aula de swing baiano – swing moleque – numa Academia junto à Praia do Porto da Barra. Vi a noite inteira cheia de gente a dançar no Pelourinho, nas discotecas. É portanto possível dançar assim, indefinidamente, e sorrir. Não, não é sorrir. É rir.

(Isto vai contra princípios básicos que estipulam que o acesso às pistas de dança esteja reservado a zombies, andróides e tolos ou ingénuos que se ignoram.)

Mas porque é que eles riem? Será que são felizes? Pergunta inquietante.

Há tantos tipos de música que o meu sólido ouvido ainda não consegue distingui-los. É música permamente. Tanto me basta.

Vou tentar acrescentar ainda mais alguns lugares comuns. É provável que isto também seja um progrsso. Aqui entra uma lista de palavras que designam comidas ou conceitos demasiado subtis para que os consiga entender ou definir: moqueca, problema de atraque, caruru, abafe, bóbó, vatapá, poderosa casquinha de siri.
Eu sei: a miséria massiva, a catástrofe das crianças, o caos do sesemprego, tudo ao mesmo tempo. Mas isso já seria abrir uma nova prateleira na estante da sociologia. E eu nem sequer quero falar das igrejas e dos museus.

Perdoem-me, por hoje, ter-me dedicado apenas à vida artística.

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Alexandre Melo, “Em São Salvador da Bahia”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº24,  Lisboa, Maio 1999

FORMOSOS E NÃO SEGUROS


Still from They died with their boots on, Raoul Walsh, 1941


Soldados, Soldadinhos de chumbo, de carne, de sangue. Quando era criança, quando ouvia as vozes de comando, corria para a janela para ver passar os soldados: as fardas, as marchas, as ladainhas, os gritos, os rostos pequenos.

O que são os soldados e o fascínio dos soldados?

São os rapazes, os filhos já homens dos homens, os anos mais vivos dos corpos dos homens, olhos infinitos. Tudo isso organizado em função do ponto de vista mais oposto e mais extremo: o ponto de vista da morte. Isso mesmo, a morte, brutal, metálica, sangrenta, final: o fim, a morte.

Num soldado olhamos para o princípio, a plenitude da presença – a beleza – de um princípio. Visto a partir do ponto de vista do fim.

Ou então podemos inverter a formulação e dizer:
Num soldado olhamos lá para o fundo do fim, a morte e o extermínio, com os olhos joviais da causa da vitória do ideal.

E depois? Ou seja, agora?

Depois da esperança e do extermínio, depois da esperança exterminada e do extermínio da esperança, o que é que os soldados nos oferecem ainda?

Não falo dos soldados reais, os novos soldados americanos, que apenas nos dão a segurança e o futuro, porque eles, eles “tordos morreram calçados” (They died with their boots on, Raoul Walsh, 1941). Falo dos soldados desenhados por Alexandre Conefrey na sua série de trabalhos O fim do Sacro Império / Descalça vai para a fonte (1998).

Os soldados das fardas, das estampas e dos aromas. Os soldados da velha Europa, velhíssimos, europeus e imperiais, os que marcharam durante um século inteiro, um século que levou quase cem anos a chegar ao fim. Os que marcharam descalços, os pés à flor do sangue, sobre os estafados campo da Europa. Iam formosos e não seguros. Fizeram o fim sem saber o que faziam. Deixaram uma nostalgia inviável. Cheia de crimes e de nada.

Nestes soldados perdidos encontramos hoje a coincidência da juventude com a morte, do princípio com o fim, da utopia com o terror. O contorno de uma fascinante história podre fixado num olhar eternamente espantado.
Sobram as fardas, as estampas e as posturas.

No grande cemitério europeu floresceram jarros podres e listas, intermináveis listas, de vítimas.

Nous sommes tous de juifs allemands”. A paisagem da história. O jardim do ideal, lá onde a ordem se transformou em crime.

O olhar tem de ganhar altura, voar sobre os campos massacrados. Temos de ir mais para trás. Restaurar monumentos e consagrá-los ao amor de uma ordem e de uma paz anterior aos crimes da razão absoluta, totalitária. Desenhar uma aliança.

Onde é que se pode procurar? O que é que se consegue encontrar?

Encontramos as páginas dos velhos livros, as coroas de glórias de heróis mais sábios, os ornamentos da civilidades, os desenhos das letras de alfabetos mais nobres.

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Alexandre Melo, “Formosos e não seguros”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº23,  Lisboa, Abril 1999

EM MUNIQUE



Akademie der Bildenden Künste, München


Na última semana do passado mês de Janeiro, estive em Munique para conhecer e discutir, em regime de seminário, o trabalho de cerca de três dezenas de artistas e estudantes da Academia de Belas Artes.

A minha primeira intenção, quanto ao início desta crónica, era começar por falar do estado do tempo e da arquitectura da cidade. Depois pensei que podia fazer a economia da introdução turística, e que valia mais descrever alguns dos trabalhos, projectos e ideias que os estudantes me apresentaram. Porque é em conversas como estas, em sucessivas horas de discussões a respeito das maneiras e da procura das maneiras de colocar, abordar, inventar ou resolver os mais variados problemas, que é mais fácil perceber qual a especificidade, a vitalidade e razão de ser do trabalho, da atitude e do resultado da produção daqueles a quem continuamos a chamar artistas.

A quase todas as profissões (e respectivos profissionais) com que deparamos na nossa vida quotidiana, pedimos a sociedade pede, que analisem e resolvam determinados problemas – por exemplo, alimentar-nos, construir uma ponte ou proteger-nos os pés – relativamente aos quais nos poderão ser propostas diferentes hipóteses, tão variadas quanto as possibilidades técnicas em causa e a imaginação estética e intelectual disponíveis. No entanto, todas essas hipóteses têm de satisfazer, minimamente que seja, uma expectativa e um conjunto, mínimo que seja, de requisitos específicos pré-determinados. Poderíamos falar de função, mas dizer expectativa minimamente pré-determinada é mais abrangente.

Só ao artista nade se pede, em termos de expectativa pré-determinada e objectivada. Pede-se-lhe apenas que faça o que quiser, para que, com o que ele fizer, e chamando-lhe arte, podermos nós fazer o que quisermos. Ao artista, portanto, pede-se tudo. Tudo ou nada? Tudo e nada, isso sim.

Passo a enumerar algumas coisas que me ofereceram em Munique.

Astrid Giers propõe-se encher de fumo alguns dos imensos corredores e incontáveis salas da Academia, iluminando tudo de um modo especial, e convocando o público para, do exterior, observar o efeito através dos vidros das janelas. Vincent Mitzev quer ocupar uma das salas construindo no seu interior uma réplica exacta invertida – de cabeça para baixo – da arquitectura e recheio da própria sala. Jolene König pegou no conjunto de armários individuais, onde um grupo de estudantes guarda os seus haveres e materiais de trabalho, e construiu com eles um “muro” que, visto de um lado, exibe uma monocórdica sucessão geométrica de portas rectangulares e, visto do outro, revela os multifacetados conteúdos dos armários, tal como os encontrou na sala de aulas.

Cristina Gómez Barrio quer fazer um filme com a história da criatura de Frankenstein, que estaria ainda hoje viva, algures num deserto gelado, especulando a respeito da vida, do tempo e do amor. Para a gravação do monólogo, espera obter a voz de Nick Cave. Brigit Kramer envolveu o corpo em balões e meias insufláveis e enche-os de ar, ao ritmo mecânico de uma respiração ofegante, registando o processo em vídeo. Katharina Duer, convidada a apresentar um projecto de arte pública para Villingen-Shcwenningn, uma cidade composta por duas comunidades, entre as quais são frequentes conflitos, propôs a construção, numa praça central, de um ponto de encontro, uma casa em vidro sobre a qual seriam gravados mapas das diferentes zonas da cidade. Vêem: falámos de arquitectura, do estado do tempo, do espaço e da experiência própria de convívio numa maneira de falar em que os modos rotineiros de problematizar os assuntos, ou analisar problemas, dão lugar a outros modos de inventar problemas e problematizar rotinas. Outras maneiras, desafiadoras e revitalizantes de pensar isto ou aquilo, de falar disto ou daquilo: tudo e nada.

Chamam-lhe arte. 


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Alexandre Melo, “Em Munique”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº22,  Lisboa, Março 1999


EM LOS ANGELES


Ed Ruscha, A Particular Kind of Heaven, 1983. Oil on canvas


Agora que penso nisso reparo que Los Angeles é exactamente o sítio onde a Beleza tem sido produzida desde há, pelos menos, mais de meio século. Nem Florença nem Milão, não, Los Angeles, L.A., Beleza com B grande. Não a verdadeira beleza, claro, a verdadeira beleza não existe. A Beleza pura e simplesmente: Hollywood, Beverly Hills, Dinheiro, Sexo, essas coisas com que os forasteiros sonham e à volta das quais L.A. vive. Sabemos, evidentemente, que tudo isto é uma ilusão, uma mentira, uma fraude, nada mais do que a matéria com que são feitos os sonhos.

O que eu quero dizer é que quando começamos a pensar em L.A., começamos a lidar com um estereótipo, um clã de estereótipos. É inevitável. Assim sendo, o melhor é fazê-lo de uma modo aberto, directo. É o que eu tenho tentado fazer com L.A. Provavelmente não quero que a minha relação com a cidade seja crítica ou desconstrutiva. Nem estou certo que ela pudesse sê-lo. E porque é que a minha relação com L.A. deveria ser crítica? Ou porque não?

O que eu julgo ser realmente possível é jogar o jogo das distâncias, pôr em cena um processo de distanciação.

Poderia dizer que este é o tipo de jogo que, pelo menos desde a pop art, tem sido jogado entre a arte – as artes plásticas, a arte contemporânea – e a cultura popular de massas, em geral.

Na sequência de um convite para organizar a exposição anual estudantes de artes plásticas da UCLA – Universidade de Los Angeles – pude apreciar o modo aberto e directo como muitos estudantes lidam com noções de beleza, medo, angústia, glamour, tal como elas se manifestam incorporadas em imagens de rostos, corpos, edifícios, ruas, objectos do quotidiano, heróis cinematográficos. Alguns estarão mais próximos dos estereótipos e dos lugares comuns. Alguns outros são mais elaborados e sofisticados. Alguns enfáticos. Mas, provavelmente, todos nós estamos condenados a parecer demasiado qualquer coisa na nossa relação com os estereótipos que formam o nosso incontornável horizonte cultural. Isto faz parte dos riscos que corremos quando aceitamos jogar o jogo das distâncias.

A maioria dos estudantes com que falei encara o seu trabalho de um modo conceptualmente lúcidos mas descomplexado, pessoal mas comprometido com as imagens do mundo em redor, intenso mas descontraído. Creio que tudo isto faz parte da atmosfera aberta característica da UCLA.

Na minha conversa com os estudantes e as suas obras, no processo de trabalho conducente à organização da exposição, procurei não impor antecipadamente os meus pontos de vista, nem o meu universo pessoal de referências, mas estou certo que não pude evitar as implicações da minha particular relação com a cidade e os seus – meus – estereótipos.

No paragrafo anterior, a palavra mais importante é a palavra “conversa”. Provavelmente, é uma das melhores designações possíveis para o real conteúdo do trabalho de um organizador de exposições ou de um crítico de arte. Por conversa entendo um interminável work in progress. A exposição que inaugurou a 20 de Novembro 1998 na New Wight Gallery da UCLA ou este texto – que é uma tradução parcial adaptada do texto que escrevi para acompanhar a exposição – são momentos de um processo em curso, uma conversa interminável. O jogo continua. Com quantos destes artistas voltarei eu a falar? E em que situações?

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Alexandre Melo, “Em Los Angeles”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº21,  Lisboa, Fevereiro 1999

PAPÉIS



Robert Wilson. Drawings from The White Raven. ©Paula Cooper Gallery



Chega a ser irritante. Há pessoas que pegam numa folha de papel e...pronto, diriam alguns, fazem milagres. Fazem o que querem. Já está. Chega a ser irritante. Robert Wilson é um exemplo.

Olhem para os desenhos da série White Raven, relacionados com a ópera com o mesmo título, e expostos na Galeria Luís Serpa, em Lisboa. Quem já viu Robert Wilson desenhar sabe a certeza, a segurança, a energia. Não, não é uma inspiração. É método, mas é o método de um génio. Se quisermos continuar a utilizar a palavra génio.

A folha de papel é branca, bidimensional. Robert Wilson traças as linhas que quer. Elas serão os eixos que ordenam o espaço – a arquitectura. Robert Wilson distribui os cinzentos, os brancos, os negros, define os pólos que ordenam a visão – a luz. Tudo o resto vem, por acréscimo, povoar o espaço, ocupar o seu lugar, num mundo previamente definido pela arquitectura e a luz.

É mais que um método, é um sistema. As figuras, as coreografias, os sons, os detalhes, depois, podem ser cronometradas até ao milímetro, ao segundo, meio milímetro, meio segundo, para um gesto, um dedo, um ruído, uma palavra, meia palavra. Robert Wilson sabe fazer exactamente o que faz e por isso pode fazê-lo perfeitamente.

Há outros casos. Não muitos, confessemos.

É sempre extraordinário ver uma nova série de trabalhos de Paula Rego. Neste caso, refiro-me a um conjunto de trabalhos sobre papel: estudos para os figurinos do bailado Pra Là e Pra Cá, inspirado nas gravuras de Paula Rego sobre canções infantis inglesas, as Nursery Rhymes. Trabalhos vistos na Galeria 111, em Lisboa.
O que é extraordinário? É ver aquilo acontecer outra vez em frente dos nossos olhos. Outra vez a mesma coisa. Como se diz em expressões como: quando ela se põe a olhar com aqueles olhos, quando ela sai da casa com aquele ar, já se sabe, aquilo vai acontecer outra vez.

Mas aquilo o quê?

São desenhos que começam por ser simples. Personagens, figurinos, adereços, confrontos de personagens, pequenos grupos. Começam assim e ,depois, à medida que vamos olhando melhor, vem o mundo inteiro.
Paula Rego leva-nos outra vez para dentro daquilo, daquele mundo. É como quase se cai nos buracos dos sonhos dos filmes de terror que, bem vistas as coisas, não são bem de terror.

Lá estão todas aquelas figuras que ela nos foi ensinando a considerar familiares, famílias muito especiais, como as dos filmes de Tod Browning: os bons, os maus, os bonitos, os feios, os péssimos, os incorrigíveis, a vergonha e a pouca-vergonha, as mãos fechadas, as caras fechadas, as pernas fortes, os braços fortes, os cabelos, a pele, os pêlos e as penas. Desta vez, uma pequena orgia de pelagens: insectos, pássaros, pessoas, coisas de se lhes passar a mão pela pele, como a pintura sobre o papel.

Paula Rego, assim, sem mais nem menos, põe ao nosso dispor um mundo inteiro. Parece fácil, assim como quem passa a mão, a tinta, sobre uma folha de papel. Mas, na realidade, na verdade, é o trabalho de uma vida inteira. É a isso que se chama um mundo. Mundo. Quase ninguém consegue.

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Alexandre Melo, “Papéis”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº20,  Lisboa, Dez / Jan 1999

PARA RUI CHAFES, EM 1988



Rui Chafes. “Vertigem V”. 1988/89. © Fotografia: Blue Photography Studio (Cepeda)


A palavra arte deve ser associada a intransigência. As coisas que faça o que se chama artista têm de ser a prova de uma inteligência, sentimento, vontade, paixão, obsessão. As coisas que faça o que se chama artista servem para dar mais perplexidade e expectativa a uma presença, mais riqueza e complexidade a um problema, mais inteligência e densidade a uma cumplicidade, mais intensidade e necessidade a um sentimento. Em linguagem muito simples: servem para tornar excepcional a relação com as coisas, as imagens das coisas, isso a que se chama mundo ou os outros. Ou ainda, em linguagem menos singela: demonstrar a coincidência do belo, do bem, do útil e do verdadeiro.

A consciência ou o sentimento de excepção e intransigência estão antes de qualquer produto ou produção.

Inevitável característica das primeiras obras de um artista: serem as primeiras, um mostrar-se a crescer, como mostrar o próprio corpo a crescer. Saber dos perigos, confrontar o medo, defender o segredo sem desistir de o entregar ao mundo.

Um artista novo reconhece-se no impulso generoso para revelar o segredo de ser o portador de um novo segredo. Tem de gerir o medo e a coragem para não ficar aquém da revelação. Tem de guardar pudor e recato diante das circunstâncias para não se estragar. Precisa de uma enorme arrogância para não ser confundido com outro qualquer e precisa de se manter perfeitamente vulnerável, diante de todos, para que os que serão o seu destino o reconheçam e acolham sem suspeita.

O segredo de que o artista novo é portador mantém estreitas relações com a revelação de um corpo que sabe de certeza sentida que está a crescer em amor, mas não sabe como bem porquê nem para quê.

Os objectos do artista não são perguntas, nem respostas, nem comentários. Afastam-se das formas dos objectos comuns não apenas para não poderem ser confundidos com eles mas para não poderem ser vistos segundo os usos de veros objectos comuns. Afastam-se das formas abstractas consagradas para que ninguém pense que uma forma bem acabada pode alguma vez constituir, só por si, um motivo válido de satisfação. Afastam-se da escala razoável e ameaça nas conveniências dos sítios que as acolhem para que seja notório que não são razoáveis e não buscam nem o seu próprio confortável equilíbrio nem uma equilibrada harmonia com as paredes e os olhares que as rodeiam. Têm a escala explodida do que é, tem de ser e não pode ser. Dão conta de uma instância originária puramente abstracta, fonte de uma energia decisiva. Cumprem-se num trabalho expansivo e excessivo de desocultação e construção: do fechado ao aberto, da intimidade à exposição, da unidade à proliferação, da luz e da cor protectoras à claridade sem dó. Uma obra. Um corpo de destemor e amor oferecido e abandonado ao mundo.

In Catálogo exposição “Espaço Poligrupo”, Renascença, Março de 1988


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Alexandre Melo, “Para Rui Chafes, em 1988”, in Arte Ibérica, Ano 5, Nº42,  Lisboa, Dez / Jan 2001


EFRAIN


O Observador. 1997.


O trabalho do jovem artista brasileiro Efrain Almeida tem podido ser visto regularmente em Portugal na Galeria Canvas, no Porto. Aqui, falamos de uma exposição recente na Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo.

A montagem da exposição assenta numa relação de simetria entre os trabalhos expostos nas duas paredes que se opõem frontalmente. De cada uma delas irrompem dois pequenos colibris, captados de asas abertas, como que em pleno voo. Dos seus pés partem longos e finos fios vermelhos de canutilho, que descem até ao chão e depois se estendem pelo solo até ao centro da galeria.

Estes fios, ao mesmo tempo que unem cada um dos pares de aves, traçam, no chão da galeria, o contorno vermelho de dois desenhos que quase se tocam. São estes fios que transformam cada par de pássaros num verdadeiro par: lado a lado, unidos por um fio de sangue ou por um fim de alegria. O simples desenho delineado no chão consegue mobilizar todo o espaço da galeria, envolvendo o espectador e conduzindo o seu olhar e os seus passos.

As manchas que as linhas desenham são como as sombras de um voo que os pássaros, presos à parede, não podem soltar, mas conseguem, deste modo, sugerir. Ou como os limites das margens de dois lagos que, no chão da galeria, tanto podem ser uma evocação da natureza, como a evocação de um lago de puras emoções.

Os pássaros, tal como as outras esculturas apresentadas na exposição, são de madeira (cedro) esculpida à mão. No trabalho de Efrain Almeida é nítida a influência do artesanato popular característico da sua região de origem – o sertão do Ceará, no Norte do Brasil – e da sua tradição familiar – o pai era carpinteiro e a mãe costureira. A qualidade oficinal do trabalho transmite-lhe uma excepcional sensibilidade matérica e textural – uma sensibilidade ecológica, poderíamos dizer –, que torna estas esculturas simultaneamente simples e sofisticadas, poderosas e vulneráveis. Nelas encontramos o eco da modelação infantil de brinquedos artesanais, mas também da estatuária religiosa popular – extremamente rica no Brasil – e particularmente dos ex-votos.

No entanto, aquilo que é decisivo nestes trabalhos, e lhes dá a sua marca distintiva e a sua originalidade no riquíssimo panorama cultural da arte brasileira, é a capacidade de Efrain Almeida para superar aquilo que poderia ser uma mera adaptação de tradições ou referências locais, e conseguir dotar a sua obra de uma intensa carga dramática e pessoal. A obra de Efrain é um notável exemplo de uma articulação entre “arte erudita” e “arte popular” que, não pretendendo submeter uma à outra, e rejeitando esta antinomia, acaba por se conseguir afirmar, de um modo plenamente criativo, enquanto “arte contemporânea”.

O cunho original do trabalho é obtido através de uma notável inteligência espacial, como já vimos, e de um agudo sentida da delicadeza. Efrain trabalha com sugestões, insinuações, possibilidades de significação. Nunca com evidências, citações ou redundâncias. O seu trabalho sugere a possibilidade da emergência ou manifestação de um sentimento – o amor, o prazer, o sofrimento, a dor, a comunhão com a natureza, o medo da morte – mas nunca o impõe como uma evidência ou como um tema a comentar.

As três esculturas que completam a exposição, apresentadas na parede entre os dois pares de pássaros, são um bom exemplo das principais referências e preocupações que alimentam a obra do autor. Duas das esculturas são pequenas figuras humanas, cujos corpos se entrecruzam com troncos de árvores. Numa delas, o tronco de árvore prolonga-se, como desenho ou tatuagem, nas costas da figura. Numa outra escultura, duas cabeças são unidas por um ramo, oval, com a forma de uma coroa de espinhos. Os rostos das figuras, como noutros trabalhos do autor, podem ser vistos como auto-retratos.

A ligação directa à Natureza, pressuposta no material escolhido e na maneira de o trabalhar, completa-se nesta representação de uma fusão física entre corpo humano e árvore, carne e madeira. A marca da vida especificamente humana, animal, é talvez concentrada nas pequenas marcas de cor que, por vezes, assinalam os olhos ou os lábios. A representação do sangue é remetida para a cor vermelha dos fios de canotilho.

Mas estes homens-árvore são também, os portadores de referências religiosas católicas: a madeira da cruz à qual foi pregado o corpo de Cristo; o tronco do martírio de São Sebastião; a nudez do corpo, a nudez da madeira, a marca das feridas. Um universo de imagens religiosas que podem estar também muito próximas de figuras do imaginário sexual. Mas também aqui, nas possibilidades de conotação sexual de alguns destes trabalhos, o que nos surge não é a evidência das marcas da sexualidade, mas antes a sugestão de uma sensualidade física em que a pura vibração sentimental é tão importante como a pulsação física, matérica.

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Alexandre Melo, “Efrain”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº41,  Lisboa, Nov / Dez 2000

AS MEIAS







Que tipo de meias é que um homem pode ou deve usar ou não?  Não se trata de um tema fútil, muito menos agora que se aproxima a época da praia. O corpo sempre foi um dos meus temas, aliás é mais que um tema. Portanto: arte, corpo, pernas, pés, meias. Vamos ao que interessa. Devem ser pretas. São como os automóveis nos tempos dos bons velhos Ford – os automóveis – que podiam ser de qualquer cor desde que fossem pretos. Esta é a regra. Há excepções, uma excepção: o branco. Outras cores não se afiguram efectivamente muito possíveis.

Excepto em casos muito particulares. Os arquitectos e os designers, por exemplo, parecem susceptíveis de usar meia das mais variadas cores e até mesmo estampadas; isto é, com uma espécie de bonecos. Os escritores, sobretudo os poetas, são, pelo seu lado, absolutamente imprevisíveis e fica-lhes bem.

Regra geral, porém, o preto é a única cor possível para as meias de um homem.

O que está muitíssimo longe de resolver todos os problemas. Vejamos quais são então alguns dos problemas que subsistem. Não nos chegaria o espaço para examiná-los todos e desta vez eu fiz questão que a fotografia saísse grande.

Apenas alguns aspectos técnicos. As meias têm de ser justas, para não deslizarem, mas não demasiado justas, para não marcarem a carne, deixando uma desagradável impressão ao serem retiradas. As meias têm de estar esticadas, para evitar um ar desleixado, mas não demasiado esticadas, para não sugerirem obediências burocráticas. Devem ser suficientemente espessas, para não serem, sequer, translúcidas, mas suficientemente finas para não adquirirem volume próprio.

Agora a excepção: as meia brancas. Em adultos, só em casos muito raros com sapatos e calças muito especialmente seleccionados. Calças talvez brancas ou em tons pastel.

Já os adolescentes afiguram-se-nos particularmente felizes com meias brancas. Podem mesmo levá-las vestidas para a cama. Mas os adolescentes, como se sabe, até podem andar sem meias. Coisa evidentemente absolutamente proibida para um adulto, mesmo a caminho da praia. Um adulto sem meias, só descalço. Quando se descalçam os sapatos descalçam-se as meias, quando se calçam sapatos, calçam-se meias. É simples.

A questão das sandálias, naturalmente, não se põe, porque os homens não usam sandálias.

Depois há as loucuras, as transgressões. A história de Boris Ieltsin que terá sido visto num aeroporto, cambaleante de álcool, sentado na mala, só com uma meia. A meia rota no pé fora do sapato numa intervenção pública de um primeiro ministro francês. As meias brancas felpudas de Bryan Ferry a crescer como pêlos nos peitos dos pés. Extravagâncias pouco recomendáveis.

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Alexandre Melo, “As Meias”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº37,  Lisboa, Julho 2000

MARCANTONIO



Retrato de Marcantonio Vilaça


Num curto período de tempo, Marcantonio, à frente da Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo, tornou-se um dos maiores embaixadores da arte contemporânea brasileira. Em Portugal, na Europa, dos Estados Unidos, em todo o mundo da arte, a sua galeria, o seu trabalho, as suas palavras e os seus gestos, deram um contributo decisivo para colocar os nomes dos artistas brasileiros de hoje no lugar de destaque que a vitalidade e originalidade dos seus trabalhos reclamam e merecem, e que, feliz e finalmente, começam agora a ocupar. Em Veneza ou em Nova Iorque, em Lisboa ou em Paris, onde quer que se falasse da América Latina, o nome de Marcantonio tornou-se rapidamente um dos primeiros nomes nas agendas e nas conversas da gente da arte.

A partir do ponto de vista de quem trabalha num país pobre da periferia europeia, como é Portugal, é possível avaliar devidamente a dimensão ciclópica do trabalho de divulgação e promoção que é necessário desenvolver para, num curto espaço de tempo, ultrapassar uma enorme acumulada distância geográfica, histórica e cultural, e os correspondentes complexos de inferioridade, e afirmar o trabalho dos criadores dos nossos países, de uma forma ambiciosa e desassombrada, como parte plenamente integrante da dinâmica da criação artística contemporânea, à escala mundial. Para que um tal trabalho produza resultados rápidos e visíveis, são necessários um empenhamento e uma entrega sem limites.

De Marcantonio conhecemos o profissionalismo exemplar, a assombrosa energia, a absoluta dedicação ao trabalho, a obstinação sem quebra na defesa dos seus artistas, dos seus princípios, dos seus valores. Os valores de uma cultura contemporânea viva, aberta, dinâmica, cosmopolita. Uma cultura brasileira e cosmopolita, porque quando se trabalha no plano da verdade, não há contradição entre culturas locais, culturas nacionais e culturas globais. E este é o verdadeiro espírito do cosmopolitismo, o espírito de Marcantonio, príncipe brasileiro de uma arte sem fronteiras.

Falei de profissionalismo, de sucesso, de capacidade de trabalho de afirmação. De tudo isso vive o mundo da arte contemporânea e vivemos todos nós. Os que não conhecem o mundo da arte, os que nunca o viveram por dentro, e dentro de si próprios, pensam mesmo que é só disso que vive o mundo da arte: fama e sucesso. Mas não é verdade.

O que é que faz correr, então, essa coisa louca que é o mundo da arte? É a vontade de viver das pessoas que querem viver uma vida mais rica, mais intensa, mais veloz. Uma vida excepcional, que faz apelo a tudo aquilo que não tem lugar nas rotinhas burocráticas e tecnocráticas das vidas quotidianas mais banais.

Estou a falar de desejos de pessoas que querem encontrar pessoas extraordinárias, que querem gastar noites inteiras em discussões extravagantes, que querem sentir emoções fora do comum, que querem ser confrontadas com objectos incompreensíveis, que querem lidar com desafios intelectuais nos limites do absurdo. Não poupam horas, nem a energia, nem as palavras, nem os sentimentos.

É isto que faz bater o coração do mundo da arte. A vontade de sentir mais. A obstinação na exigência de mais. Mais de tudo, de outra maneira. sempre mais e sempre de outra maneira.

Todos os momentos que passei com Marcantonio foram momentos de entusiasmo, exaltação, bem estar, alegria. A alegria da comunhão, da fraternidade, da cumplicidade.

Esta é a maior riqueza do mundo da arte. E não há maior riqueza que o coração de um nos possa revelar. A alegria dos entusiasmos e dos sentimentos partilhados é imortal. Porque um dia a sentimos e, porque a sentimos, jamais a poderemos esquecer.

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Alexandre Melo, “Marcantonio”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº36,  Lisboa, Junho 2000


OBJECTOS E PALAVRAS



Jorge Molder. The Secret Agent series. 1991


Os objectos artísticos, salvo casos deliberadamente “programáticos”, raramente se submetem sem abuso a uma arrumação exclusiva, e isto por força da eficácia especifica da sua presença. Se nos pomos o problema da análise concreta de um objecto concreto, acabamos por ter de ensaiar a aplicação de todas as lógicas a todos os objectos, mesmo quando em aparente contradição com o que parecia ser a sua lógica ordinária. Ver como é que funciona. Apercebemo-nos rapidamente da larga medida em que a lógica de funcionamento do objecto vai depender das formas concretas da sua localização e contextualização social, cultural, teórica. Sendo que o nosso próprio discurso é parte integrante desse mecanismo de contextualização.

O “relativismo” inerente a esta conclusão só poderia embaraçar-nos se entendêssemos, primeiro, que existia uma verdade do objecto a descobrir e, segundo, que existia uma teoria cuja aplicação conduzia a essa descoberta. Pertencendo tais crenças a uma horizonte de anacrónicos preconceitos gnoseológicos, defendemos a pertinência de um discurso a propósito das obras de arte não como instrumento da verdade mas como liberdade e possibilidade de funcionamento e de pensamento. Se as obras de arte se caracterizam por dizer – admitindo que se pode aqui utilizar a palavra dizer – algo que não pode ser dito de outra maneira, qual é a natureza daquilo que se pode dizer sobre essas mesmas obras? O discurso sobre obras de arte não pode dizer de outra maneira aquilo que elas dizem (?). Mas pode dizer algo sobre a maneira como elas dizem (?). E de que maneira pode dizê-lo?

A comparação entre o estatuto do poema e o do objecto artístico – no âmbito das artes plásticas – permite alguns paralelismos. O primeiro diz respeito ao efeito de estranheza ou, se quisermos, ambiguidade. As palavras mais simples e mais correntes podem, no contexto de um determinado poema, produzir efeitos imprevisíveis e ilimitados. Do mesmo modo, formas e objectos simples e correntes podem, quando desviados e agenciados no contexto de um objecto artístico, desencadear cadeias inesgotáveis de conotações e significações.

O segundo paralelismo diz respeito à questão do ritmo. Tal como a leitura de um poema exige uma sintonização de cadências e de afectos, também a leitura de um objecto artístico exige um sintonização que recobre diferentes aspectos. Um primeiro aspecto é a capacidade de apreender a modelação sensível da superfície visível do objecto. Neste âmbito, a sensibilidade rítmica é particularmente útil para abordar a natureza descontínua de objectos em que frequentemente se cruzam diferentes lógicas, processos e registos. Um segundo aspecto da sintonização é a capacidade de, para além da superfície visível, ser capaz de ficcionar a emergência de uma personalidade ou a força de um enigma.

A cada passo encontramos elementos que funcionam como chaves, portas, fechaduras. Remetem umas para as outras de forma imperativa e necessária mas nunca definitiva. Nada se abre e nada se fecha de uma vez por todas. A rede é cada vez mais rica e mais tensa mas a solução é sempre diferida. Esta dinâmica circunscreve uma espécie enigma central. Mas o enigma não é encarado nem de um forma mística – uma super-essência oculta – nem de uma forma lúdica – um jogo de escondidas. O enigma tem um valor prático, operacional. É um centro virtual que serva para activar deslocações. As peças do processo vão sendo exibidas, completadas, aumentadas, complexificadas. Mas nunca são explicitadas as condições da sua decifração integral. A sombra do enigma serve para instaurar uma disciplina cruel. A crueldade é a obstinação em objectos imperativos e necessários. Sem que a necessidade seja explicitada ou evidente. A disciplina é a obstinação, no rigor das demarcações. Objectos criminais. Obras de arte.

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Alexandre Melo, “Objectos e Palavras”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº34,  Lisboa, Maio 2000