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ARTE E MERCADO



Cildo Meireles. Zero Cruzeiro. 1974-1978


Se existe um mercado para as obras de arte é porque há quem as queiras comprar. Relativamente às motivações económicas que estão na base da atitude dos compradores podemos distinguir três objectivos: a longo prazo, a reserva de valor; a médio prazo, o investimento; a curto prazo, a especulação.

Se nos colocarmos numa perspectiva de médio prazo – três ou quatro décadas, grosso modo -, o grau de risco e imprevisibilidade é elevado. As variações de gosto, a lógica pendular dos movimentos estéticos, ou os ritmos das modas, podem ditar alterações radicais e inesperadas. Os estudos que ponderam apenas factores de natureza estritamente económica e que se situam numa lógica de médio-longo prazo tendem, de resto, a desaconselhar o investimento em arte porque o número de factores imponderáveis e o nível de risco são demasiado elevadores quando comparados com investimentos alternativos.

No curto prazo a situação deve ser analisada numa perspectiva diferente e remete sobretudo para uma lógica especulativa que só tem possibilidade de se manifestar em períodos de instabilidade do mercado: períodos de euforia ou de recessão, marcados por variações muito rápidas de preços. Neste caso, como se sabe, é possível registar ganhos ou perdas consideravelmente elevados num espaço de tempo relativamente curto. Tudo depende da qualidade, extensão e velocidade de actualização das informações de que se dispõe. Tudo depende de se ter acesso aos círculos artísticos mais dinâmicos e poder obter a tempo as indicações relativas a quem, quando, onde e a quanto comprar e vender. Só que tais informações nunca são absolutamente seguras e há sempre uma larga margem de aposta, risco e intuição ou improvisação. Se assim não fosse, aliás, todos os agentes bem informados teriam sempre um êxito absoluto em todas as suas iniciativas e sabe-se que isso não acontece.

A obtenção de informações em condições ideais depende da possibilidade de acesso pessoal e convivial a um conjunto informal, mas bastante restrito e fechado, de agentes culturais, em que avultam os próprios artistas mais famosos e os coleccionadores, galeristas e responsáveis de museus de maior prestígio. A inclusão numa tal rede de relações implica uma disponibilidade, um empenhamento, uma solidariedade e uma cumplicidade nos planos social, convivial, humano e intelectual que só pode verificar-se quando existe uma motivação pessoal e cultural autêntica e profunda.

Quanto à intuição ou sensibilidade, ou ainda o “olho” ou o “faro”, como se lhes costuma chamar, são factores que remetem, também eles, para uma área de confluência entre psicologia individual e um rede de conexões sócio-culturais. O mercado de arte, como qualquer mercado, tem uma lógica económica, mas, ao contrário de outros, não é compreensível através de avaliações estritamente económicas. Nos que diz respeito aos objectivos de longo prazo, as obras de arte são encaradas como reserva de valor na medida em que são bens cujo valor se supõe poder resistir à passagem dos anos.

O raciocínio, mais ainda do que à arte contemporânea, aplica-se a obras já consagradas pela história e em relação às quais funciona o factor de raridade – isto é, já não se podem produzir mais. Em todo o caso, existe sempre um risco. As próprias valorizações feitas pela história da arte estão sujeitas a flutuações, não só devido a mudanças de gosto ou de perspectivas de análise, mas também devido à evolução das técnicas de autenticação que ultimamente têm vindo a provocar pequenas, mas dramáticas, crises de atribuição de autoria e detecção de falsificações. Além disso, a importância que cada sociedade concede à arte varia muito de época para época, com as correspondentes repercussões nas variações dos preços das obras.

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Alexandre Melo, “Arte e Mercado”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº1,  Lisboa, Janeiro 2000


CONVERSA - MERCADO DA ARTE


Artes&Leilões
Outubro-Novembro, 1989
António Bacalhau - José Sousa Machado



Artes & Leilões – Na tua perspectiva como é que se articula o conceito de mercado nacional com o de mercado internacional?

Alexandre Melo – O problema da escala geográfica dos mercados é o problema das fronteiras espaciais do reconhecimento de um determinado valor. É uma questão fulcral, porque sempre que quisermos comparar preços e valores de obras de arte não chegamos a nenhuma conclusão se não encontrarmos em linha de conta com a dimensão geográfica. Isto é, por exemplo, um artista que só é famoso em Portugal, que não tem sequer cotação fora do país, pode ter preços mais altos, aqui, do que um artista cuja obra e a cotação são reconhecidas em todo o mundo. Há um mercado internacional, hierarquizado, e há mercados regionais, nacionais ou não, também eles hierarquizados e que podem ser mais ou menos autónomos em relação ao mercado internacional.

A.L. – Em termos práticos, do ponto de vista dos compradores, como é que o problema pode ser encarado?

A.M. – Há duas atitudes possíveis. Numa perspectiva mais ambiciosa, mais dinâmica e internacional, importa reforçar a articulação do mercado nacional com o mercado internacional e impõe-se apostar nas obras com um horizonte de afirmação e um nível de reconhecimento mais vasto. Numa perspectiva mais limitada e imobilista, é também possível a atitude oposta. O comprador confina-se aos limites do seu meio e opta pelas obras com as quais se identificam os círculos sociais em que projecta a sua imagem e aspirações, sem se preocupar com o desfasamento em relação à situação cultural mais global.

A.L. – Ouve-se frequentemente dizer que em Portugal se vive ainda na pré-história do mercado da arte. Mas simultaneamente nos últimos anos vem-se manifestando uma grande animação e entusiasmo no mercado. Será que esta animação pode vir a revelar-se artificial e a gerar equívocos em termos de qualidade?

A.M. – Há de facto uma assinalável animação e dinamismo. Embora, quase tudo continue a passar-se a uma escala bastante reduzida. A abertura ao confronto com o exterior e às tendências mais actuais continua a ser limitado, embora esteja a aumentar, e o nível de formação e de informação dos agentes culturais e da opinião pública, em relação à arte contemporânea, continua a ser muito pobre.
Estas limitações, ao conjugarem-se com uma procura muito dinâmica, podem produzir efeitos negativos, designadamente uma degradação ao nível de qualidade de algumas das obras oferecidas no mercado, ou um processo inflacionista descontrolado que faça subir de forma imponderada os preços dos artistas mais consagrados. Mas não é fatal que assim aconteça. À medida que aumenta a circulação e a informação o risco de efeitos perversos diminui porque aumenta o leque de obras e cotações dentro do qual se estabelecem as comparações. Mesmo para quem prefira valorizar contextos locais, o aumento da informação, ao permitir multiplicar os confrontos, contribui para moderar os aumentos especulativos e para aumentar o nível de exigência de qualidade.

A.L. – A efectiva existência de um mercado de arte pressupõe também que exista uma certa garantia e segurança do valor. Se alguém compra uma obra a um determinado preço tem que ter a convicção de que salvo situações excepcionais aquela obra vale o que custou quando eventualmente se dispuser a vendê-la. Será que a situação portuguesa oferece esse tipo de segurança?

 A.M. – É difícil generalizar a esse respeito porque tudo depende das características concretas dos agentes envolvidos no processo, ou seja, no caso, os galeristas e os coleccionadores. Em Portugal não há muitos galeristas profissionais mas há alguns. Quando falo de galerista profissional, independentemente da filiação estética e inserção social, refiro-me a alguém que assume e defende a obra dos artistas que representa numa perspectiva de carreira a longo prazo e de promoção estratégica. Isto pressupõe uma rede sólida de relações sociais e institucionais a partir da qual se constitui um núcleo de coleccionadores. E traduz-se num escrúpulo de gestão de preços, das compras e das vendas que permite, salvo situações anormais, assegurar a cotação de um artista. Quanto mais profissionais forem os galeristas, neste sentido, maior será a segurança.
Vendo agora a questão pelo outro lado, pelo lado do coleccionador, é evidente que para que existam galeristas profissionais é preciso que existam coleccionadores a sério. Isto é, coleccionadores que têm uma ideia de colecção e uma perspectiva a longo prazo. Que compreendam que a compra de uma obra é também uma tomada de posição cultural e um ponto de vista sobre o trabalho de um artista e que isso lhes cria responsabilidades em termos de coerência, continuidade e clareza de opções.
Não se trata apenas de comprar e vender ao sabor das conveniências, do acaso ou do capricho. À medida que se forem afirmando e distinguindo os galeristas profissionais e os coleccionadores a sério, e em que eles forem servindo de ponto de referência para o conjunto do mercado, irão diminuir os riscos de quedas ou quebras.

A.L. – Nessa perspectiva o galerista surge como uma espécie de gestor de carreira do artista. Mas o que também parece acontecer, em contraponto ao aumento do número de galerias, é a vontade manifestada por muitos de preservar uma certa liberdade e de serem eles próprios a gerir as suas carreiras sem assumirem compromissos com galerias.

A.M. – Cada artista decide qual a forma de inserção social e económica que lhe interessa para o seu trabalho. O meio artístico e o mercado comportam a existência e convivência de diferentes modalidades. Penso no entanto que com a maior parte dos artista que se preocupa em gerir as suas próprias carreiras, o que está em causa não é tanto uma exigência abstracta de liberdade mas sim uma aguda consciência do que entendem dever ser a difusão do seu trabalho e uma certa desconfiança em relação à capacidade dos galeristas para a assegurar. Em muitos casos os artistas têm um grau de informação estética e de consciência estratégica mais elevados que o dos próprios galeristas. Nesse medida é normal que queiram intervir na gestão da sua própria carreira. Penso que também aqui a situação se modificará se aumentar o nível de profissionalismo dos galeristas.

A.L. – Será que em Portugal existe já uma nova geração de coleccionadores englobando pessoas de rendimentos médios e motivadas para a arte contemporânea?

A.M. – Naturalmente não há informações exactas disponíveis até porque a tal animação do mercado é um fenómeno recente. Julgo porém que em relação à arte contemporânea há dois tipos de coleccionadores. Por um lado, coleccionadores com colecções iniciadas há já vários anos, com um poder de compra mais forte, que por razões de sensibilidade ou maior informação – nacional e, nalguns casos, também já internacional – começaram a voltar as suas atenções para a arte contemporânea e têm a possibilidade de constituir colecções consistentes nessa aérea. É um fenómeno minoritário mas que poderá alargar-se a partir do momento em que comece a haver um reconhecimento público generalizado da valia de escolhas que, porque mais contemporâneas, tendem ainda a aparecer, aos olhos do coleccionador tradicional, como demasiado arriscadas. Por outro lado, há uma vaga mais recente de coleccionadores que começaram a comprar ao mesmo tempo que os artistas, cujas obras adquirem começaram a expor e que por assim dizer acompanham, também em termos de cumplicidade estética e cultural, a evolução das suas carreiras. São pessoas que não têm um poder de compra muito elevado mas que têm um papel fundamental enquanto base social e cultural de apoio e enquanto germe de uma futura geração de coleccionadores mais informada e mais sintonizada com a criação contemporânea.

A.L. – Ainda no âmbito das colecções e coleccionadores, qual é ou deveria ser a situação, em Portugal, no que diz respeito aos coleccionadores institucionais, seja o estado as fundações ou outras entidades?

A.M. – Uma resposta exacta exigiria uma análise caso a caso. Generalizando, diria que em primeiro lugar, o número de coleccionadores institucionais importantes, quer em termos de montante de compras quer em termos de prestígio cultural, é bastante reduzido. A situação alterar-se-á à medida que as instituições, públicas ou privadas, forem compreendendo até que ponto a dimensão cultural é importante para a valorização e articulação social das suas actividades. Em segundo lugar, quase todas as colecções institucionais – a recente colecção da Fundação Luso-Americana é talvez a única excepção – sofrem de dois defeitos: a falta de uma ideia ou critério estruturador, e a falta de uma perspectiva de longo prazo com a consequente ausência de regularidade c continuidade de aquisições. Estas faltas acarretam dois tipos de inconvenientes. Por um lado determinam um tipo de intervenção casuística, aos repelões, com um timing arbitrário e uma lógica imprevisível. Por outro lado inspiram uma abrangência sem limites ou um ecletismo sem princípios que acabam por transformar as supostas colecções em aglomerados heteróclitos de peças cuja reunião não tem maneira de fazer sentido. Esta situação é tanto mais grave quanto as colecções institucionais, pelo seu peso económico e visibilidade, deveriam constituir um exemplo para o mercado no seu conjunto. Se na diversidade das suas opções estéticas e culturais as instituições em causa adoptassem para as suas colecções uma ideia, um conceito, um critério, uma perspectiva estratégica, em tudo a sua acção poderia ser muito importante para a construção e amadurecimento do mercado da arte em Portugal.

A.L. – Todo este conjunto de insuficiências e limitações que temos vindo a apontar aos coleccionadores portugueses, e que estão muito relacionados com a falta de informação, não poderão levar à formação de colecções que sejam autênticos “elefantes brancos”?

 A.M. – Existem de factos supostas colecções que não se podem mostrar fora do círculo familiar e ainda outras colecções que com o passar do tempo vão descobrindo que nunca o foram. Esta situação está relacionada com um fenómeno assaz chocante que é a massiva falta de informação sobre a arte contemporânea. Mesmo sem falar da inexistência de grandes ou pequenas exposições, retrospectivas ou de actualidade. Não existe sequer um centro de documentação, uma biblioteca ou uma livraria – já não digo mais que uma – onde se tenha acesso de forma minimamente sistemática e actualizada a livros, catálogos ou publicações periódicas sobre arte contemporânea. Este deserto tem consequências não tanto ao nível do meio artístico propriamente dito – que, por vias internacionais, tem acesso à mesma informação que o meio artístico de qualquer outro país – mas sobretudo ao nível da opinião pública em geral e da investigação sobre arte contemporânea. Esta é, em termos práticos, impossível em Portugal, por falta de tudo. Quanto à opinião pública média o problema que se põe não é já o de se identificar ou não mas o de virtualmente não ter qualquer ideia ou imagem do que se passou no últimos 30 anos no campo das artes plásticas.

A.L. – Haverá a possibilidade de no mercado de arte em Portugal, a breve prazo, se vir a dar uma queda, um crash, semelhante ao que ocorreu no princípio da década de 70?

A.M. – Julgo que, apesar de todos os problemas e limitações de que viemos falando, existem agora mais elementos moderadores e parâmetros de referência mais sólidos do que existiam nessa altura. O grau de profissionalismo dos vários agentes envolvidos é apesar de tudo mais elevado e não creio que as manobras especulativas possam atingir uma dimensão catastrófica. Poderá haver altos e baixos, aumentos ou quebras da procura, dependentes das oscilações de conjectura económica mas não se me afigura que, até ver, o mercado da arte esteja a alimentar em si mesmo factores ou dinâmicas autodestrutivas. Por outro lado podemos também considerar que uma ligeira recensão ou uma quebra da euforia – se é que se pode falar de euforia, parece-me um pouco exagerado – podem também ter um efeito regulador, moderador, selectivo. Permitindo distinguir entre o profissionalismo e o trabalho sólido e facilidade inconsequente de quem aproveita os bons momentos para empolar operações especulativas.

A.L. – Sempre que se fala das relações entre e a arte e economia, de mercado da arte, surgem acusações relativas à massificação da relação com as obras de arte e da sua consequente banalização e de valorização em termos de sentido e de relação profunda com o observador. Será que este processo é inevitável?


A.M. – Actualmente existe uma crescente integração da criação artística na lógica económica mais geral das sociedades, o que implica uma certa mercantilização, mediatização e massificação da circulação e da distribuição das obras de arte. Mas isso não impede que continuem a ser possíveis diferentes tipos de relacionamento. Se eu faço uma viagem de 15 dias ao estrangeiro e aproveito para visitar seis exposições ou museus, por dia em 12 cidades diferentes é natural que no meu regresso tenha um sentimento de massificação e que me queixe de uma quebra da intensidade da minha relação com cada uma das obras que olhei. Mas ninguém me obriga a fazer isso. Posso dedicar o mesmo tempo a ver apenas uma exposição ou até apenas uma obra. A escolha é sempre do observador e os diferentes tipos e níveis de relacionamento não são sequer incompatíveis. Tudo depende, em cada situação, do objectivo e da modalidade de atenção.


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"Mercado da arte : Conversa com Alexandre Melo". in Artes & leilões, Lisboa, Out.-Nov. 1989, p.12-16

RELAÇÕES ENTRE SETOR PÚBLICO E SETOR PRIVADO NO COLECCIONISMO DE ARTE CONTEMPORÂNEA




CONTEXTO GENÉRICO

A relação entre os papeis respetivos do setor público e do setor privado na esfera cultural sempre foi um dos temas mais complexos e controversos no âmbito dos debates sobre política cultural. Ao longo da segunda metade do século XX, sobretudo na Europa,  manifestou-se, em termos ideológicos, uma tendência para pressupor uma oposição  de princípio entre arte e mercado.  As formas extremas das formulações políticas decorrentes da aceitação desta oposição seriam  a defesa de uma estatização integral da política cultural ou, do lado oposto, a defesa da extinção das políticas culturais públicas e o abandono da cultura à pura lógica do mercado, no quadro do economicismo liberal mais radical.  Em termos de realidades sociais concretas ambas as opções extremas são absurdas ou mesmo inviáveis. (Para uma análise mais desenvolvida veja-se “Políticas Culturais”, in Alexandre Melo, “Globalização Cultural”, Quimera, Lisboa, 2002, pp 145/152).

Não é possível – muito menos no contexto das crises orçamentais que hoje se vivem em tantos países, sobretudo europeus – pretender que o Estado possa assegurar o financiamento ou sequer o funcionamento de todas as instituições e práticas culturais e artísticas mais relevantes. Mas também não é possível supor que o mercado possa  garantir,   nas práticas artísticas e culturais, os níveis de dinamismo, diversidade, criatividade e  inovação necessários à formação de cidadãos com o grau de informação cultural e a capacidade de imaginação criativa necessários à vivência plena da democracia e habilitados, do ponto de vista intelectual, para participar numa dinâmica global de intensa competição nas áreas da criatividade ou mesmo do empreendedorismo. Daqui decorrem duas consequências.
Em primeiro lugar importa assumir o seguinte : “A política cultural deverá ser uma política central de qualquer governo. Essa noção ganha mais relevância sobretudo em estados que têm que lutar contra problemas sociais que implicam défices culturais muito elevados. Qualquer país que queira ‘energizar’ a sua sociedade, no sentido de fazê-la participar da dinâmica global, tem que fazer uma aposta forte na política cultural. É fundamental que comece a existir essa consciência em países como os nossos. Dessa forma, a cultura terá de ser vista como um projeto governamental geral e transversal, envolvendo os vários ministérios”  (Alexandre Melo,“Mecenato Privado”, in “Anais do II Congresso de Cultura Ibero-Americana : Cultura e Transformação Social”, 2009, SESC, São Paulo, p.192).
Em segundo lugar, é necessária uma estreita e produtiva articulação entre atores públicos e atores privados, com vista a potenciar os recursos e valias disponíveis em cada contexto social concreto.
A necessidade desta articulação tornou-se particularmente evidente, ao longo da última década, por exemplo na área da arte contemporânea, onde muitas das principais coleções entretanto constituídas foram coleções privadas, ao mesmo tempo que as instituições públicas se deparavam com crescentes limitações financeiras, burocráticas e políticas. Vamos a seguir exemplificar  algumas possibilidades proporcionadas por este tipo de articulações recorrendo a casos relativos às realidades portuguesa e europeia.
O momento histórico que atravessamos, marcado pelo impacto – diferenciado em função da situação concreta de cada país ou região – da crise financeira internacional e das crises orçamentais que, em muitos países, lhe estão associadas, afigura-se particularmente estimulante para testar e pensar o futuro possível do setor público (os orçamentos estatais para a cultura), do setor privado (a disponibilidade financeira dos agentes económicos privados) e das relações entre eles no  âmbito do colecionismo de arte contemporânea, quer em termos gerais, quer nalguns casos concretos aqui apresentados.

ALGUNS EXEMPLOS

Em Portugal, no que diz respeito à arte do último século, o setor privado sempre teve um papel fundamental. A mais importante coleção de arte portuguesa do século XX é a coleção da Fundação Gulbenkian, uma fundação privada que muitas vezes se diz ter funcionado, em Portugal, no período final da ditadura (1926 /1974) , como o “substituto” do que deveria ter sido um ministério da cultura moderno. A mais importante, em Portugal, coleção de arte internacional do século XX, é a Coleção Berardo, também uma coleção privada atualmente instalada num espaço público, o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, no âmbito de um protocolo assinado com o Estado. Um dos mais prestigiados espaços de exposição de arte contemporânea, em Portugal, é o Museu de Serralves, no Porto, gerido por uma fundação “mista” criada com base num acordo, com contornos específicos, entre o Estado e os fundadores privados. A mais importante coleção de arte contemporânea (entendida no sentido de arte dos últimos 30 anos)  internacional, em Portugal, é a coleção da Fundação Elipse, também ela uma coleção privada. Esta coleção faz parte da FACE, um exemplo de cooperação internacional entre instituições culturais privadas europeias.

O projeto FACE (Foundations of Arts for a Contemporary Europe) foi apresentado pela primeira vez no Parlamento Europeu, em Bruxelas, em 2008, congregando um conjunto de fundações de arte contemporânea, localizadas em diferentes países, que se propõem trabalhar em conjunto numa série de iniciativas comuns. A sua exemplaridade, dentro da lógica de análise que temos vindo a propor, resulta do facto de estarmos perante instituições privadas que se associam para desenvolver uma função – que poderíamos qualificar como pública - de promoção de arte contemporânea.

Comecemos por estabelecer uma caracterização das diversas fundações intervenientes no projeto: Deste Foundation (Grécia), Ellipse Foundation (Portugal), Fondazione Sandretto Re Rebaudengo (Itália), La Maison Rouge – Fondation Antoine de Galbert (França), e Magasin 3 Estocolmo Konsthall (Suécia).

A fundação Deste, com base em Atenas, surgiu em 1983, por iniciativa do colecionador Dakis Joannou, assessorado pelos curadores Adelina von Fürstenberg e Efi Strousa, tendo um espaço próprio permanente desde 1998. A instituição tem organizado diversas exposições e apoiado projetos e publicações internacionais, promovendo tanto artistas consagrados como jovens artistas, nomeadamente através da atribuição de um prémio  para artistas gregos emergentes. A programação estende-se a projetos curatoriais e eventos especiais que exploram a conexão entre  arte,  moda,  música,  cinema,  arquitetura ou  design.

A Ellipse Foundation, surgiu em 2004, por iniciativa de João Oliveira Rendeiro, instalando-se posteriormente num espaço próprio de exposição, em Cascais, com o  propósito de apoiar os artistas contemporâneos através de um conjunto de iniciativas que incluem a aquisição e a produção de obras, exposições, projetos especiais e programas educativos. Ao longo do tempo a instituição apostou principalmente na constituição de uma coleção de referência no âmbito da arte contemporânea internacional e num programa expositivo desenvolvido em colaboração com importantes curadores internacionais como Andrew Renton ou Lisa Phillips..

A Fundação Sandretto Re Rebaudengo, com sede em Turim, foi fundada em 1995 pela colecionadora Patrizia Sandretto Re Rebaudengo, sendo seu diretor artístico Francesco
Bonami. Desde o início apresenta um programa expositivo atento a temáticas políticas, sociais e filosóficas, reunindo artistas nacionais e internacionais. Paralelamente tem desenvolvido projetos em  colaboração com instituições internacionais como o Hara Museum, de Tóquio, a Serpentine Gallery de Londres, ou o Walker Art Centre de Minneapolis. As exposições são acompanhadas por eventos cinematográficos, teatrais e performativos. As suas atividades complementam-se com um programa anual de residência para jovens curadores e um prémio dedicado às mulheres.

La Maison Rouge surgiu em Paris, em 2004, por iniciativa do colecionador Antoine de Galbert. Através de um programa de exposições temporárias – individuais, coletivas e exposições especiais focadas em coleções privadas – a instituição procura desenvolver diferentes facetas da criação contemporânea, incluindo múltiplas formas de expressão como a arte “outsider”, a performance, a arte primitiva e a arte popular. A atividade da fundação completa-se na encomenda de obras de arte e na publicação de monografias, catálogos de exposição e livros de referência no âmbito da história da arte.

A Magasin 3 Stockholm Konsthall, impulsionada por Robert Weil e dirigida por David Neuman, desde 1987, aposta na apresentação de artistas internacionais de renome através de um intenso programa de exposições. A atividade expositiva processa-se numa relação dialética com a coleção, nomeadamente através da encomenda e produção de novos trabalhos. Paralelamente, a instituição desenvolve uma atividade editorial através da publicação de catálogos que documentam as exposições e a produção dos artistas, bem como um programa de palestras e conferencias.

Esta apresentação sucinta dos diversos intervenientes no projeto FACE serve para compreender melhor a origem do projeto mas também para estabelecer, através das similitudes entre as diversas fundações, um retrato genérico das fundações privadas de arte contemporânea e do papel que desempenham. Antes de mais temos uma forte associação à figura do fundador – geralmente um colecionador privado – e o desenvolvimento de coleções de referência, em termos internacionais, que servem de base a extensos programas expositivos, habitualmente com uma vocação internacional quer ao nível de artistas e curadores, quer de eventuais parcerias.
As coleções e as exposições, por sua vez, requerem o estabelecimento de espaços expositivos, adaptados arquitetonicamente à arte contemporânea e que se traduzem, em muitos casos, na requalificação de edifícios pré-existentes, frequentemente com um passado industrial.
Igualmente importantes, enquanto expressão dos objetivos das fundações privadas, são as diversas iniciativas paralelas às exposições e que reforçam o sentido “público” das suas funções. Estes eventos incluem atividades que procuram cruzar a arte com outras manifestações da cultura contemporânea, programas educativos e de formação de púbicos, ciclos de conferências e palestras, atividade editorial ou apoio a artistas emergentes com bolsas, prémios, residências e encomendas. 

Devemos contudo salientar que a associação das diversas fundações num mesmo projeto não implica a redução a um denominador comum. Antes funciona de acordo com um modelo de expansão de possibilidades e de concentração de recursos.
Embora as fundações privadas contemporâneas funcionem, em grande medida, fora dos enquadramentos nacionais, tal não implica que, de diversos modos, a realidade local de cada instituição não esteja presente, influenciando, por exemplo, a escolha dos artistas representados em cada coleção. A pluralidade de geografias abrangidas pela FACE – Grécia, Portugal, Itália, França, Suécia – implica  uma diversidade de pontos de vistas locais sobre uma realidade europeia e global, com uma amplitude que não seria facilmente igualada por instituições associadas ao setor estatal.
À multiplicidade geográfica acrescentam-se as idiossincrasias dos espaços expositivos – permitindo que a mesma exposição seja confrontada, na sua itinerância, com modelos espaciais heterógenos –, as experiencias diversificadas das equipas de cada instituição e, obviamente, uma ampliação quantitativa e qualitativa dos públicos.
A expansão das possibilidades completa-se, como referimos, numa concentração de recursos, tanto financeiros como culturais, os quais por sua vez se materializam na realização de eventos expositivos e outras atividades.
Até ao momento a FACE realizou uma exposição, assinada pelos curadores das várias coleções, que apresentou trabalhos das diversas fundações associadas ao projeto, sob o título Investigations of a Dog, a partir de um conto de Franz Kafka. Teoricamente, a exposição baseou-se na noção de “literatura menor”, utilizada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Felix Guatari, na análise ao trabalho de Kafka, para descrever a ligação entre escrita e política, ou seja, a possibilidade de a criação artística conter mensagens revolucionárias, a partir, precisamente, do uso subversivo da linguagem. Os artistas reunidos na exposição partilham a prática de uma arte que pode ser lida à luz desta categoria de “menor”, na medida em que desenvolvem um discurso artístico que não  reproduz as categorias estéticas consagradas e subverte o uso convencional dos meios expressivos que adota.  Como o cão, protagonista do conto de Kafka, estes artistas colocam a si mesmos questões sobre o sentido do fazer artístico, estimulados por um envolvimento emocional apaixonado com a sociedade dos seres humanos.
A exibição itinerou durante dois anos pelos espaços expositivos das várias fundações e deu origem a um conjunto de publicações, escritas na língua de cada pais e  incluindo contos inéditos, encomendados para este efeito, de jovens escritores de cada país, baseados no texto de Kafka e nas obras expostas.

De um modo genérico podemos concluir que o projeto FACE constitui um exemplo paradigmático da necessidade de repensar os modelos institucionais ao nível da arte contemporânea e que, de certa forma, espelha as possibilidades mas também as incertezas da uma realidade europeia atual marcada pela crise.
Reunindo cinco fundações privadas sem fins lucrativos a FACE pertence, obviamente ao universo do setor privado, principalmente ao nível dos recursos que mobiliza. Porém, as atividades que se propõe desenvolver – exposições, co-produção de obras, projetos editoriais – bem como os objetivos que assume – promover a arte contemporânea e alargar o seu público – tem uma matriz eminentemente pública.
O projeto FACE espelha uma característica fundamental do seu próprio objeto : o facto de a arte ser, por excelência, o lugar do público e do comum e, portanto, um espaço privilegiado para repensar as categorias de público e privado.   

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Texto realizado por ocasião de uma Conferência em Brasília, a 19 de Outubro de 2012