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A CASA DA PAIXÃO E DO CONHECIMENTO



Pedro Cabrita Reis
1991

Pedro Cabrita Reis. A casa da paixão e do pensamento.1990


O trabalho de Pedro Cabrita Reis tem-se progressivamente revelado e confirmado, ao longo de dez anos, como um trabalho de síntese de tensões contraditórias e complementares. Entre a intimidade subjectiva e a dimensão metafórica.

Por redução ao essencial designamos uma lógica de concentração dos efeitos, por oposição a uma lógica de multiplicação e dispersão dos efeitos. Seja em termos formais ou visuais, seja em termos simbólicos ou de significado, as obras de Cabrita Reis operam uma convergência de todos os elementos numa totalidade eficaz. Uma imposição categórica da força da presença da obra.

A vocação monumental consiste na capacidade dos trabalhos de Cabrita Reis para marcarem e sobredeterminarem de um modo global a totalidade do espaço em que se apresentam. Esta capacidade pode traduzir-se na efectiva realização de construções monumentais ou grandes instalações. Mas também pode manifestar-se na pura e simples presença de uma pintura muito escura em que a custo se distingue uma figura ou forma.

Quando falamos de intimidade subjectiva convém deixar bem claro que não se trata nem de um pendor narrativo autobiográfico, nem de expressionismo psicológico, nem de uma valorização particular de referências literárias de índole sentimental. O que chamamos intimidade subjectiva corresponde ao facto de qualquer peça de Cabrita Reis manifestar de modo inequívoco a marca da presença e do trabalho de um ser humano. Mais exactamente de um artista, um autor, o autor.

Independentemente de serem mais ou menos espectaculares, mais ou menos depuradas, todas as peças de Cabrita Reis deixam pressentir a matéria do corpo que deu forma à construção. Elas são a consequência da intervenção da mão do homem. São o rasto da passagem da “mão do artista”. A referência à “mão do artista” não remete aqui para qualquer talento técnico único nem para qualquer alquimia transcendente. É a eficácia concreta da presença de cada peça que nos força a invocar um universo de afectos pessoais que no entanto permanecem privados, fechados, secretos, apenas pressentidos.

A dimensão metafórica é talvez o aspecto mais evidente do trabalho de Cabrita Reis e reflecte o seu poder de convocação dos grandes temas e valores sociológicos ou metafísicos. Falamos de dimensão metafórica porque esta convocação é feita de forma alusiva, indirecta, ambígua. Não se trata de ilustrar narrativas místicas, análises sociológicas ou doutrinas ideológicas. Trata-se de criar um contexto material de emergência de significados que dizem respeito a valores fulcrais da existência: as origens primordiais, as energias vitais, os fins últimos.

Cabrita Reis não pode ser definido pela prática de uma disciplina específica – pintura, escultura ou instalação – ou por constantes da aparência formal das suas obras. Pelo contrário, a sua atitude de artista só se pode entender se for situada precisamente ao nível dos valores que a estruturam enquanto atitude.

Na pintura ou desenho, na escultura ou instalação, na representação ou figuração, nas referências abstractas ou geométricas, manifesta-se a mesma deliberação no sentido de eleger e impor as formas primordiais, os modelos arquetípicos. A caça, o mensageiro, a árvore, a cruz, a casa, a mesa, o poço, o canal, participam de uma mesma dinâmica de invocação, reactualização e reinstauração de valores originários. O princípio e o sempre. A simples enumeração dos títulos de algumas das suas exposições mais antigas pode ajudar a circunscrever este universo de referência. “Cenas de caça e da guerra” (1983), “Os discretos mensageiros” (1984), “De um santuário e certos lugares” (1985), “Da ordem e do caos” (1986), “Anima et macula” (1987), “A sombra na água” (1988), “Melancolia” (1989). O que chamamos redução ao essencial não é, em rigor, uma redução. Não se trata de uma estilização ou de uma promoção da evidência de uma forma dada. Trata-se, em cada caso, de, a partir da referência a um valor fundador, manifestar, através da presença concreta da obra, um processo de construção e localização – no plano material e no plano da significação. Um processo específico, no sentido de ser o portador da autoridade de um autor. Um processo aberto, no sentido de se propor a celebração do seu confronto com o observador. Um processo que remete para uma vocação monumental, que nalguns momentos se afirmou pela encenação do excesso e hoje se afirma numa dimensão de maior austeridade e silêncio.

Os trabalhos realizados por Cabrita Reis ao longo dos dois últimos anos, apresentam um conjunto de características suficientemente próximas e peculiares para que se justifique tratá-los como uma série. Uma primeira aproximação a este grupo de trabalhos pode consistir na enumeração de alguns dos seus títulos que para além do seu valor próprio em relação a cada peça ajudam a delinear a atmosfera geral do conjunto.
Casa da serenidade (Gal. Pedro Oliveira), Casa da pobreza (Gal. Cómicos), Casa do esquecimento (Gal. Pedro Oliveira), Casa da família (Centre Sta. Mónica, Barcelona), Casa da sombra, Casa dos sussurros, Casa do silêncio branco, Casa do sono, Soledad / sequedad para António Machado (Fund. Luís Cernuda, Sevilha), Casa dos suaves odores (Gal. Cómicos, Lisboa), Alexandria (Convento S. Francisco, Beja). Todas estas esculturas ou esculturas / instalações se caracterizam formalmente pelo uso de madeira e gesso – materiais rudes, pobres – pelo predomínio absoluto da cor branca e pelo seu carácter  de construções. Por vezes construídas em função de uma localização específica. O alfabeto formal é reduzido ao essencial: plano, linha, quadrado, circunferência; cubo, cilindro, paralelepípedo; formas abertas, formas fechadas.

As referencias são arquétipos da arquitectura ou, mais genericamente da experiência humana de ocupação do espaço. A casa, o banco, a lareira, a mesa. O poço, a cisterna, a fonte, o tanque, os canais, isto é as formas que originam e guardam, conduzem e oferecem a água.

Os materiais utilizados, essencialmente madeira, gesso e cobre, remetem-nos para os materiais das construções mais artesanais e mais rudimentares. Afastam-se dos processos da construção industrial e dos efeitos do progresso tecnológico e instauram um modo de construção mais próximo dos valores dos modos de construção primitivos.

Encontramos a memoria de uma relação próxima e directa com a natureza e com a paisagem. Mais concretamente nalguns trabalhos é possível encontrar o eco das paisagens, dos campos e da arquitectura do sul ibérico (Alentejo, Andaluzia). A memória dos modos ancestrais como os homens se relacionaram com a natureza. Por exemplo para dela recolher conduzir e conservar a água, elemento vital por excelência. Citemos o trabalho Alexandria, construído em Beja, em torno de um poço, no claustro de um convento em ruínas. Ou a instalação “Silencia e vertigem”, em Coimbra, em que a própria água servia de fundo à intervenção do autor. Em termos mais genéricos refiram-se as relações que podem ser estabelecidas com os canais de irrigação característicos da agricultura e da paisagem das planícies do Sul.
Encontramos igualmente a memória de formais artesanais de construção da habitação. As casas pobres, precárias, feitas à mão, que ainda hoje se podem encontrar em aldeias de camponeses ou nas periferias urbanas. Construções que decorrem de um trabalho manual directamente exercício sobre os materiais e que conservam a marca da mão humana. Construções que têm ao mesmo tempo a precariedade e a intensidade, as imperfeições e a clareza, de uma presença íntima.
Procurando sistematizar o conjunto da referências detectáveis nestas séries de trabalhos de Cabrita Reis poderíamos identificar dois pólos fundamentais: a casa e a fonte. Ambas são tratadas como centros originários de energias que depois se distribuem através de uma rede de canais de circulação reflecte-se na própria estrutura frontal de muitas das peças.

“Casas da pobreza” toma a forma de um banco estreitamente fechado à volta de uma mesa. “Casa da família” evoca o cadeiral que correndo à volta das quatro paredes de uma sala circunscreve o centro abstracto da casa e constitui o local de reunião em que se tomam as decisões fundamentais.

A casa organiza uma série de elementos que remetem para os modos de ocupação humana do espaço inferior, da habitação. É o espaço privilegiado de concentração e circulação de afectos, um espaço de comunhão e recolhimento. Por isso são valorizadas a mesa, à volta da qual a família se reúne para comer, ou a lareira, fonte de calor e centro simbólico do lar. Veja-se a representação explícita de uma lareira em “Casa do esquecimento” ou o modo como a instalação construída para a exposição Pontom/Temse (casa de Fontaynstraat) numa sala em ruínas se organiza em torno do que teria sido o lugar da lareira. Ainda relativamente às peças de referência interior vale a pena referir a inclusão nalgumas das primeiras nalgumas das primeiras peças da série de elementos de pontuação – que entretanto desapareceram em favor de uma maior austeridade – e que reforçavam a carga alusiva. Um jarro de água ou um jarro de azeite denotavam a referência ao elemento líquido e conotavam explicitamente valores de pureza e de comunhão quase religiosa. Na instalação “Casa da serenidade” um fio de prumo suspenso remete-nos para uma ideia de ponderação de equilíbrios ou aferição de energias.

A ideia de fonte serva para reunir obras cujo elemento central é uma fonte ou reservatório de água ou outro tipo de energias. São obras que remetem para formas de transformação humana do espaço exterior e de aproveitamento das energias naturais. A referência directa à fonte surge-nos nas gárgulas de “Casa dos suaves odores” ou na instalação “Silêncio e vertigem” em que a própria água está presente. Outras modalidade de abordagem ao tema surgem com o poço de “Alexandria” ou com os tanques, reservatórios ou cisternas, cilíndricos ou paralelepipédicos, abertos ou fechados, que de diferentes formas aparecem em inúmeras peças desta série. Veja-se por exemplo a exposição “A casa da ordem interior” (Gal. Joost Declercq) ou “Berlin piece”.

A referência fundamental é a água e as construções que a recolhem e guardam. Nada impede, porém, sobretudo em trabalhos mais recentes, que a noção de fonte se possa alargar a outras formas de energia e que se possa falar da fonte como fonte energia, em sentido amplo. As construções cilíndricas – por exemplo as de “Ut cognoscantte” – podem ser comparadas com reservatórios de água mas também de gás. Os tubos de borracha e o tipo de redes de comunicação utilizados em trabalhos como “Ascensão” remetem para uma noção geral e circulação de energia que não tem que ser reduzida à referência directa à água. A água surge como metáfora maior da vida e da comunicação, mas num contexto em que o fundamental e a noção de construção de uma rede de canais de circulação e comunicação de energias.

O trabalho de Pedro Cabrita Reis pode ser visto como um trabalho de construção de formas através das quais se possa tornar sensível e inteligível aquilo que corre através das coisas. A energia cuja passagem faz a diferença entre a vida e a morte. Aquilo que dá sentido. Nesta medida a água pode tornar-se, por exemplo, o equivalente da palavra, enquanto valor instituinte que, através da sua passagem a comunicação – faz nascer o sentido. Daí a referência à biblioteca de Alexandria. Ou então a água, enquanto exemplo de energia ou metáfora do significado, e as próprias formas físicas de energia poderiam no limite ser vistas como metáforas da própria arte. Então, de acordo com as teses românticas, os objectos artísticos não seriam a “arte” mas apenas lugares por onde a “arte” poderia passar.

O trabalho de Pedro Cabrita Reis torna-se assim também conceptualmente exemplar do entendimento que o autor tem da própria condição e natureza do objecto artístico e do trabalho do artista. O objecto artístico é aquele que origina, guarda ou faz passar um sentido que não é fixável, imobilizável, antes decorrendo da experiência do observador que com ele se confronta.

Deparamo-nos com o artista como autor de construções elementares que são instâncias da mais familiar intimidade, e também do maior fôlego metafórico. Deparamo-nos com o artista como autor de construções elementares que são instâncias da mais familiar intimidade, e também do maior fôlego metafórico. Deparamo-nos com a hipótese romântica de definição da condição artística, apresentada não como demonstração exibicionista de uma tese, mas como problematização radical, da raiz, da condição contemporânea do artistas.

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Alexandre Melo, “A casa da paixão e do conhecimento”, in Artscribe, Londres, Maio/Junho, 1991

GEOGRAFIA DA INDIVIDUALIDADE




Pedro Cabrita Reis
1988


Pedro Cabrita Reis. Magnificant, 1988 / Cocteau, 1988


Podemos começar por enumerar os materiais presentes: ferro, mogno, vidro, espelho, chumbo, objectos encontrados, feltro, veludo, cabedal, papel, tinta. E enunciar algumas das palavras que emergem destes trabalhos ou que neles estão inscritas: “obscurecer”, “exultar”, “amor”, “magnificant”, “atrocidade”, “anunciação”, “tristesse”. Vejamos a seguir a diversidade das formas sob as quais estes elementos se apresentam, metódica e rigorosamente organizados por camadas de tinta e pela cadência regular da pincelada. Esculturas de parede em que os objectos e palavras são elevados ao estatuto de ícones: complexas esculturas em que todos os elementos nos aparecem combinados mas sujeitos a uma ordem de aparência clássica.
Submetidas a uma análise formal, estas peças podem surgir como resultado de um jogo de contrastes, evidentemente premeditado: horizontal / vertical, curvo / recto, transparente / opaco, duro / suave, brilhante / baço. Outro tipo de exame, necessariamente num plano de maior abstracção, pode revelar-nos a tensão entre uma conceptualidade ambiciosa e o generoso prazer dos materiais – ou entre a sedução de uma opulência física e a austeridade de uma vocação secreta. 
As peças de Cabrita Reis produzem como que um efeito de “sofisticação” visual; mas o que de facto encenam é uma progressiva densidade analítica. Um exemplo possível: a placa de chumbo que tem gravado o nome da exposição – “A sombra na água” – e que poderemos entender como metáfora mais global e mais complexa: o que está em causa não é a evidência de um objecto, não é o espectáculo da sua imagem. O que está em causa é a relação entre um corpo que se retira (para dar lugar à sua sombra) e o devir sempre permanente de um espaço de profundidade (a água). Essa tensão induz no espectador uma atitude interrogativa que o aproxima de cada uma das peças como se nesse movimento se defrontasse com uma inevitável obscuridade ou, para sermos mais explícitos, como se essa aproximação o conduzisse a uma fonte de conhecimento imediatamente pressentida e contudo obscura na sua evidência.
O exercício de inteligência não toma a forma da evidência do saber. A inteligência de cada peça consiste na assumpção do seu processo criativo como um acto de querer saber.
Outro exemplo a acrescentar: uma mesa de tampo de vidro. Sobre esse tampo, deitados, três cilindros de metal, sobre os quais se apoiam três placas de vidro. Na parede, numa relação de perpendicularidade com a mesa, um rectângulo de veludo preto. O mesmo jogo de contrastes. O título é “Cocteau”. A inteligência como adensamento do mistério: uma definição provável de complexidade da qual decorre o acto de criação artística. Olhar para “Cocteau” e ter saudades de Radiguet.
Voltando ao chumbo: uma placa escondida atrás de uma parede, onde estão gravadas as palavras Marcel (Duchamp), Joseph (Beuys), Francis (Picabia). A possibilidade de uma memoria nesta exposição, e assim discretamente revelada, explícita, sem fazer disso uma declaração óbvia, a recusa da inocência à critica.
Na obra de Cabrita Reis somos confrontados com a emergência de um sentido de mistério. Tudo nos parece surgir com uma excessiva “luminosidade”, com uma irrepreensível “clareza”, com uma obsessiva devolução da “imagem” (os brilhos, a transparência e a profundidade da pintura, os reflexos dos vidros e dos espelhos, as superfícies voluptuosas, o chumbo, a madeira, o veludo, o ferro). Algo nos faz pensar que estamos a ver mais do que nos é dado observar. Mas, contudo, é precisamente este “falso” oferecimento ao olhar que produz a presença de um conceito do enigma, como sentido organizador da criação, como possibilidade para uma vocação de conhecimento.
Estranheza, mistério, subjectividade, organizam a intricada rede de indícios que, lateralmente – por relação à evidência da obra – nos conduzem para uma rigorosa geografia da individualidade. 

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Alexandre Melo, “Geografia da Individualidade”, in Expresso, Lisboa 7/5/1988. 

O QUADRADO DE OURO



Pedro Cabrita Reis
1987



Da ordem e do caos, 1986. 100 x 210 cm



A expressão “quadrado de ouro”, que se exibe em título a este comentário à obra de Cabrita Reis, não pretende insinuar, para o seu trabalho, nem uma devoção doutrinal mística, nem uma vocação ficcional narrativa. Excluídos estes dois pontos de fuga, correntes na produção artística contemporânea, o “quadrado de ouro”, designa: por um lado, a dimensão emblemática e ritualizante dos trabalhos de Cabrita Reis; por outro lado, as duas lógicas contraditórias – uma analítica, outra pulsional – que movem a sua obra e que, na sempre provisória resolução, em cada peça da sua contradição, fazem a tensão interna do processo criativo. Assinalam o lugar estratégico do local de Cabrita Reis no terreno do confronto das tendências plásticas contemporâneas.

Uma lógica analítica.
O quadrado evoca, na sua evidência geométrica, uma lógica analítica que se manifesta de duas formas.
Em primeiro lugar numa complexa conceptualização prévia de cada trabalho ou exposição que se traduzem: por um lado, numa recorrência de estruturas e motivos formais, constatável em diferentes trabalhos de uma mesma fase ou mesmo diferentes fases; por outro lado, num poderoso e envolvente efeito espectacular de instalação que tende, em limite, a transformar as exposições numa ocupação integral do espaço. Em segundo lugar, e ainda mais evidentemente o quadrado, como figura geométrica elementar, aponta aqui uma tendência obsessiva do artista para cristalizar a referência aos universos temáticos e formais a que se reporta, em torno da representação dos seus símbolos mais depurados – linhas quebradas, escadas, redes espirais, labirintos, cruzes, manchas e transparências orgânicas, outras formas geométricas e ortogonais. No mesmo sentido se dirige a tendência que, na continuidade da sua obra, se vem desenhando para convocar elementos cada vez mais simples, cada vez mais únicos, cada vez mais geométricos.
Um sentido global de depuração está igualmente patente na austeridade das cores predominantes utilizadas – negros, terras, óxidos, cinzas, castanhos – e na gestão dos efeitos de luz e brilho. Mais do que a cor em si própria, valoriza-se a degradação, o desgaste, a erosão, como que provocados pela passagem do tempo.
Vemos assim que o que designámos por lógica analítica recobre um trânsito de simultânea permanência e reabilitação de uma postura conceptual, por um lado, e de um escrúpulo geométrico tendencialmente minimalista, por outro.
Esta lógica, detectável em muitas evoluções actuais, sempre conviveu em Cabrita Reis com uma lógica oposta pulsional, que a potenciou e abriu a situações de maior complexidade e originalidade. É a essa outra lógica, de excesso e teatralidade, que nos reportaremos ao fazer referência ao ouro.

Uma erosão pulsional.
O ouro assinala, por referência directa a uma das cores mais utilizadas por Cabrita Reis – geralmente contraposto ao negro – e por alusão bastante óbvia, um sentido de exuberância, do excesso e do espectáculo que geralmente se associam ao barroco.
Se estes são sentidos pertinentes para a evocação do ouro, a sua profunda razão de ser no contexto deste comentário é, porém, de natureza metafórica, e remete para níveis menos aparentes e superficiais.
O ouro, em sentido metafórico, é aqui evocado em duas direcções. Por um lado, como o mais precioso dos metais preciosos, que o trabalho da mão humana conseguiu arrancar à terra, constituído assim uma evocação das origens. Por outro lado, material mítico em que se consubstanciam as utopias teleológicas – “A Idade do Ouro” – evocação dos fins. Estas duas acepções correspondem a características marcantes do trabalho de Cabrita Reis:
- A ancoragem em valores míticos, situações vitais e elementos materiais de natureza primordial e ancestral;
- A valorização da energia e fulgor físico dados ao processo de construção material de cada obra;
- A irreprimível aspiração a um absoluto e a uma totalidade utópicos que sistematicamente o artista implica na sua atitude e nos seus trabalhos.
A ancestralidade e a primordialidade estão patentes que nas fixações temáticas de anteriores trabalhos quer no tipo de materiais utilizados e na forma da sua utilização.
Os trabalhos anteriores centram-se insistentemente nos temas da guerra – “Cenas da Caça e da Guerra” (Galeria Diferença, Lisboa, 1983), acções e territórios de combate, heróis, troféus – e nos temas de religião, em sentido lato – “Os discretos Mensageiros” (Galeria Cómicos, Lisboa, 1984), “A Anunciação” (Galeria Cómicos, ARCO 85, Madrid), “De um santuário e certos lugares...” (Galeria “JN”, Porto, 1985), a obsessão da morte, túmulos, altares, objectos rituais, de culto.
Quanto aos materiais e modo de execução, assistimos a um progressivo adensamento, desde os tradicionais papel ou tela, utilizados no princípio da década, até à diversidade actual: peles, folha de ouro, barro, madeira, ardósia, metal, vidro. Um processo em que tiveram importância decisiva a madeira, as grandes massas de tinta, utilizadas como suporte de devastadoras intervenções – perfuração, colagem, “assemblage”, pintura – de que acabavam por resultar verdadeiros relevos murais, entendíveis como instalação. Frequentemente, aliás, a experiência da tridimensionalidade e da manipulação dos destroços de materiais foi levada até à construção de esculturas propriamente ditas.
Na evolução desde uma pintura plana até à agitação de objectos literalmente impostos ou arrancados ao primitivo suporte, fica implícito um tipo de execução que, na sua fisicidade, dá conta da diferença, qualitativa que se manifesta, para cada peça, entre a conceptualização prévia e o resultado final. E é essa diferença que instaura a dimensão utópica do trabalho de Cabrita Reis.

Epílogo
O ponto de partida é, como vimos, o de uma lógica analítica, conceptual. Mas essa lógica não se subordina nem se limita ao exercício de uma posição teoricamente elaborada, seja ela minimalista ou outra. Cabrita Reis investe no próprio acto de fazer, no excesso nele inscrito, na vocação espectacular por ele desencadeada, com a convicção dum resultado final – a obra – em que a evidência de uma autoria iniludível venha dotar de uma totalidade utópica o rigor do projecto.
“Da ordem e do caos” (Galeria Cómicos, Lisboa, 1986), “Anima et macula” (Cintrik Gallery, Antuérpia, 1987), títulos das suas duas últimas exposições individuais, dão conta, com exactidão, da convivência dos dois pólos contraditórios que, no seu conflito, definem uma tensão criativa original.

O rigor do conceito obriga-se a passar pelo arrebatamento do fazer para que o absoluto a atingir, a totalidade, jamais deixe de se constituir em espectáculo necessário e evidentemente assinado.

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Alexandre Melo, “O quadrado de ouro”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 3/8/1987

10 CONTEMPORÂNEOS




Fundação Serralves, Porto, 1992



Gerardo Burmester
Pedro Cabrita Reis
Pedro Calapez
Pedro Casqueiro
Rui Chafes
José Pedro Croft
Pedro Portugal
Pedro Proença           
Rui Sanches
Julião Sarmento


Esta exposição tem por objectivo mostrar o trabalho de dez autores que marcam de forma decisiva o momento actual da arte portuguesa e que são, ou poderiam ser, com o devido enquadramento institucional, parte integrante da situação internacional da arte contemporânea.
No plano mais pragmático, e uma vez estabelecido o âmbito geográfico nacional, a exposição rege-se por parâmetros cronológicos e de dimensão.
Uma escolha assinada só tem vantagem em ser clara e precisa. O resultado é uma selecção de dez artistas e a divisão da exposição em duas partes de modo a permitir mostrar um número minimamente significativo de peças de cada um. Para reforçar a individualização, a partição em dois grupos segue critérios de diversificação e não de homogeneização. Acresce que, em termos de dimensão, foram levados em linha de conta, por um lado, o local de exposição e os seus condicionalismos, e, por outro lado, uma opção de montagem que tenta tomar cada objecto visível sem excessivas interferências negativas, e permitir a cada artista receber uma atenção específica e uma leitura individualizada.
Na escolha das peças, realizada em estreita colaboração com os artistas, procurou-se que correspondessem a diferentes momentos do trabalho dos autores ao longo do período de referência e que, sem quebra de representatividade, fossem, sempre que possível, peças menos conhecidas do público.
A montagem obedece a princípios de prioridade à visibilidade individualizada de casa artista e de tratamento equitativo de todos eles. Daqui decorreu a opção por conceder a cada artista um espaço autónomo mais fechado, que ocupa em exclusivo, e distribuir de forma equilibrada as suas presenças nos espaços mais abertos.
Um outro propósito da montagem foi o de, na medida em que as obras e as condições concretas de trabalho o permitiam, apresentar obras de exterior, chamando assim a devida atenção para o magnífico espaço envolvente da Casa de Serralves e para o muito que a leitura do seu espaço tem a ganhar com uma ampla abertura ao exterior.
Em termos cronológicos, o ponto de vista é o do momento actual, retendo como universo de referência a partir do qual operar as escolhas o trabalho realizado ao longo dos últimos dez anos por artistas cujas carreiras então atravessaram fases de afirmação ou definição de uma imagem pública consolidada. Ficaram assim afastados do universo de referência trabalhos cuja imagem pública consideramos não estar ainda definida ou já o estar desde um período mais recuado.
Retivemos este período não porque ele encerre qualquer unidade estética, programática ou ideológica, mas por julgarmos que, descontada a margem de arbitrariedade que qualquer censura cronológica implica, lhe corresponde um contexto social e cultural especifico a nível nacional. Um contexto caracterizado pela afirmação forte e dinâmica de um amplo conjunto de artistas e outros agentes culturais activos na aérea das artes plásticas, um notável aumento do interesse da opinião pública e dos meios de comunicação e uma assinalável, embora ainda limitada, abertura internacional da situação artística portuguesa.
Este conjunto de circunstâncias permite formular a hipótese, deliberadamente optimista, de que ao longo da última década se terá verificado em Portugal, ao nível das artes plásticas, e apesar de graves bloqueios e limitações institucionais, uma mutação da conjuntura que tornou possível abandonar os traumas da pequenez e os complexos de inferioridade e desenvolver práticas e atitudes ajustadas ao tempo e às dinâmicas mais fortes da criação artística à escala internacional.
O período retido, como resulta da simples consulta das datas das obras, é o da passagem da década de 80 para a década de 90, a viragem 80/90. Estamos perante obras e autores que se definiram depois e a partir de um distanciamento pessoal em relação aos modelos que marcaram os fins dos anos 70 e os princípios dos anos 80 (designadamente os “novos expressionismos” e as “figurações livres”) e que desde então adquiriram uma consistência e uma individualidade que hoje em dia os situam em lugares privilegiados de articulação com problemas e temáticas decisivas na década de 90.
Sem pretender ser exaustivo, sirvam de exemplo questões como sejam o estatuto do corpo humano e sua representação, os arquétipos da ocupação ou da representação do espaço, a história da arte como fundo da análise e recomposição de elementos plásticos, os limites e fronteiras de disciplinas como a pintura ou a escultura, a especificidade do objecto artístico e da sua definição no confronto com outros tipos de objectos, a capacidade de intervenção social da arte. Temas que, na sua diversidade, e abordagem das obras, igualmente diversas, dos artistas aqui reunidos, e que são simultaneamente tópicos insistentes do debate cultural e artístico contemporâneo.
Em termos de método optamos por valorizar a individualidade e diversidade das obras apresentadas recusando os discursos aglutinadores de ocasião, baseados em pretensas identidades nacionais, alegadas conformidades doutrinais ou concertações conjunturais de circunstância. Discursos muito frequentes em exposições colectivas e que também frequentemente se revelam teoricamente abusivos e eticamente menorizadores das obras no que diz respeito à natureza das relações que promovem entre estas e o discurso.
Uma vez enunciados os critérios mais pragmáticos convem não evitar a sempre polémica questão dos critérios mais subjectivos, pessoais.
É sabido que não existem critérios objectivos, técnicos, científicos, de avaliação da qualidade em arte, menos ainda na actualidade em que não funciona sequer o factor da consagração histórica. Qualquer escolha é sempre pessoal e subjectiva. O que não impede que seja norteada por critérios explicitáveis. Neste caso foram aplicados critérios de dinamismo, consistência e contemporaneidade.
Por dinamismo entendemos a riqueza e a intensidade da presença do autor e da sua obra no contexto social e cultural em apreço. Esta aspecto é aferível em função do conjunto do trabalho realizado e mostrado, da atenção, reflexão e debate que tenha suscitado e, bem assim, do conjunto de iniciativas a que tenha estado associado. Os currículos e bibliografias detalhados elaborados para este catálogo constituem a este respeito um testemunho adequado sem naturalmente poderem restituir inteiramente a riqueza da correspondente experiência social vivida.
Por consistência designamos a característica distintiva de uma obra em que é reconhecível um núcleo duro cuja progressiva elaboração, aprofundamento ou transformação serve de fio condutor para o entendimento de uma trajectória. Evitando oscilações gratuitas ou repetições bloqueadoras. Chamamos núcleo duro a um conjunto de temas, problemas, atitudes, questões ou obsessões sucessivamente recolocado e reformulado ao longo de um processo de consolidação e enriquecimento de uma obra e da nossa relação com ela. Um mais sentido, que é simultaneamente um mais saber e uma mais sentir, e que nos vamos habituando a experimentar e reconhecer como especifico “idioma” ou da “maneira” de um autor particular.
Por contemporaneidade designamos capacidade de, sem quebra da consistência que lhe é própria, um trabalho se situar num contexto mais amplo e nos permitir articular questões relevantes da nossa experiência social e cultural global. Demos atrás alguns exemplos de questões a reter, neste âmbito, na década em curso.
A consistência e contemporaneidade não são, evidentemente, atributos que possam ser fixados e demonstrados num discurso que, para cada autor, enunciasse de forma definitiva a verdade da obra.
O processo do discurso é um processo que acompanha o trabalho do artista e se desenvolve a partir do fazer da obra e das formas concretas da sua presença contextual.
A antologia de textos que é componente fundamental deste catálogo visa dar conta deste processo ao mesmo tempo que pretende constituir uma base documental para o estudo destes autores. Nessa medida foi privilegiada a diversificação de pontos de vista e de registos e foi dada prioridade à reprodução dos textos menos acessíveis, designadamente os publicados em jornais ou no estrangeiro em detrimento dos incluídos em livros ou catálogos, mais fáceis de localizar.



The aim of this exhibition is to show the work of ten authors who have had a great and decisive role in current Portuguese art and who are, or may be, with the right institutional acceptance, full component parts of the international situation in contemporary art.
In the most pragmatic field, and once national geographical realities have been established, the exhibition is governed by chronological and dimensional parameters.
A signed choice only has advantages when it is clear and precise. The result is a selection of ten artists and the dividing of the exhibition into two parts in order to allow the showing of a minimally significant number of works by each one. To reinforce individualization, the partitioning into two groups criteria which have to do with diversification and not homogenization. Furthermore, in terms of size, on the one hand the exhibitional space and its conditionalisms were taken into account, and, on the other, there is an option as to mounting the works which tries to make each object visible without excessive negative influences, permitting each artist to receive specific attention and an individual reading of the works.
In the choice of the works – carried out in direct collaboration with the artist – an attempt was made to find one which correspond to different moment of the author’s work throughout the period in question and which, without loss of representativity, were whenever possible less well-known to the public.
The mounting follows principles of individualized visibility for each artist and gives equal treatment to all of them. From this idea came the option to give each artist an autonomous and more closed space, which he or she occupies exclusively, and to distribute their presences in a more balanced manner in the more open spaces.
Another propose in the arrangement was, as far as the works and physical working conditions allow, to show outdoors works, attracting due attention to the magnificent space which surrounds the Casa de Serralves and to the great amount which the reading of the work may gain in the being presented in a great open space.
In chronological terms, the point of view is the present, having a universe of reference from which to operate the choices of work over the last ten years by artists whose careers were then going through phases of affirmation or definition of a public image which is now consolidated. Therefore, works whose public we consider not to be defined or still in a more remote period were left out of this universe of reference.
We kept this period not because it encloses any aesthetical, programmatical, or ideological unity, but because, putting aside the margin of arbitrarity which any chronological caesura implies, it corresponds to a specific social and cultural context on the national level. A context characterized by strong and dynamic affirmation of wide group of artists and other cultural agents in the area of fine arts, a remarkable increase in interest by the general public and the communication media, and a notable, although still limited, international opening to the Portuguese artistic scene.
This set of circumstances allows one to formulate the deliberately optimistic hypothesis that the previous decade in Portugal has seen, in the field of fine arts, and despite serious blocks and institutional limitations, a changing of the situation which has made it possible to abandon the traumas of small-mindedness and inferiority complexes and to develop practices and attitudes which are in step with the times and the stronger dynamisms of artist creation on a international level.
The period chosen, as one can see by simply consulting the dates of the works, is that of the passing of the 80’s to the 90’s, the turning of 80 into 90. We are faced with works and authors who defined themselves after a personal distancing in relation to the models which characterized the end of 70’s and the beginnings of the 80’s (namely the “new expressionisms” and the “free configurations”) and who have since then taken on a consistency and individuality which now places them in privileged positions of articulation with problems and themes which are decisive in the 90’s.
Without trying to be exhaustive, let the following matters serve as examples: matters like the status of the human body and its representation, archetypes of occupation of the representation of space, the history of art as an analytical space and one of recomposition of plastic elements, the limits and frontiers of disciplines like painting and sculpture, the specificness of the artistic object and of its definition when confronting other types of objects, art’s capacity to have a social role. Themes which, in their diversity, and among many others, form some of the possible paths into the works, which are equally diverse, of the artists here represented, and which are also insistent topics in the contemporary cultural and artistic debate.
In terms of method, we opted to give greater importance to the individuality and diversity of the works, fleeing from agglutinating speeches, based on supposed national identities, alleged doctrinal conformities or circumstantial concertations of conjure. Texts which are very frequent in collective exhibitions and which are also theorically abusive and ethically reductive of the works as to the nature of the relationships which they promote between themselves and the works.
Now the more pragmatical criteria have been explained, it is wise not to avoid the always-controversial issue of the personal and subjective criteria.
It is known that there are not objective, technical and scientific criteria of assessing art, even less so modern art, which has not yet been subjected to the factor of historical consecration. Any choice is always personal and subjective. Which doesn’t prevent it being oriented by explicable criteria. In this case we used the criteria of dynamism, consistency, and modernity.
By dynamism we mean the richness and intensity of the presence of the author and his work in the social and cultural context concerned. This aspect can be gauged by the set of the work carried out and exhibited, by the attention, reflection and debate which has provoked and equally by the amount of initiatives it has been involved in. The detailed curricula and bibliographies written for this catalogue form an adequate testimony to this without, naturally, being able to transmit totally the richness of the corresponding social experienced which has been lived through.
By consistency we mean the distinctive characteristic of a work in which a hard nucleus is recognisable, whose progressive elaboration, deepening or transformation provides a central thread for the understanding of a trajectory. Avoiding gratuitious oscillations or blocking repetitions. We call the hard nucleus a group of themes, problems, attitudes, issues or obsessions which are successively restudied and reformulated throughout the working process, which is also a process of consolidation and enriching of a work and of a relationship with it. An extra sense, which is simultaneously an extra knowledge and an extra feeling, and which we get used to feeling and recognising as specific to the “idiom” or the “manner” of a certain author.
By modernity we mean the capacity a work as to, without losing its particular consistency, be located within a wider context and to allow us to articulate questions relative to our overall social and cultural experience. We have given some examples of this above, in relation to this decade.
Consistency and modernity are not, obviously, attributes which may be fixed and demonstrate in a discourse which, for each other, might enunciate the truth of the work in a definitive manner.
The process of the discourse is a process which accompanies the artist’s work and is developed from a doing of the work and the concrete forms of its contextual presence.
The anthology of texts which is a fundamental component of this calatogue aims at showing this process at the same time as intending to form a documental base for the studying of the authors. In this sense the diversity of points of view and registers has been important and priority was given to less accessible texts, namely those published in newspapers or abroad, over those which are included in books and catalogues, being much more easily available. 
(Tradução: David Prescott) 

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Texto de introdução do Catálogo '10 Contemporâneos l Fernando Pernes, Alexandre Melo, Porto: Fundação de Serralves, 1992' da Exposição comissariada por Alexandre Melo. (pp. 9-12)