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COMO TRABALHA O PINTOR



(ALEXANDRE MELO E JOÃO PINHARANDA)

Pedro Calapez. Painel de madeira gravado e pintado. 1988


O artista está (pelo breve tempo de toda a sua vida) no lugar de deus. E não faz sentido entender esse assento como trono de um deus menor; nem se podem dividir as responsabilidades. Porque todas as suas obras são angústias sem partilha, dúvidas sem descontos – e porque só há lugares de solidão como recompensa da glória.
Vive numa época sem plenitude. Aspirar à construção do céu – como ele o faz – é um projecto de re-estabelecimento e salvação.

O céu é uma utopia de leveza. A temperatura da vigília, o conforto da imponderabilidade, uma paisagem infinita, uma cama lenta.
Mas não é imediatamente nada disto. O sentimento do céu é uma entrega e um abandono cuja integridade é assegurada pelo rigor das prévias travessias. A travessia dos raciocínios lógicos usados até aos limites epistemológicos de qualquer investigação. O confronto com a suspeita de que toda a ciência afinal decepciona.
Estas experiências intelectuais criam apenas a disponibilidades para um sentimento. É preciso continuar a ser metódico. Passar pelo tempo da exposição à exaustão das sensações: a sordidez e o luxo, a violência e o afecto, a dor e a comida. Os limites sabem-se, percebem-se, muito antes de atingir ou tentar inventar e essa antecipação cria a viabilidade da arte.
O realismo deste projecto de trabalho assenta no facto de não se apresentar alheado do mundo (da arte), de partir de cada um dos problemas nele existentes e forçar a sua superação. A sua integridade é garantida pela apresentação, no próprio processo de trabalho, de todas essas dificuldades e sucessos.

Ocupa o trono de um deus ausente ou morto e não é réplica da sua presença. Incerto do seu papel, do seu destino, dos seus poderes é um anjo inquiridor que se prepara para conhecer os segredos, dominar os gestos, possuir o fogo – tornar-se também infinito e fundador. Sabe como o seu estatuto é vulnerável: pode subitamente tornar-se num anjo caído. Impossibilidade de vencer a tentação do poder; impossibilidade de totalizar a criação. É sobre o fio deste duplo perigo que actua. Isto é uma atitude corajosa que anuncia uma escalada a partir da mais escarpada vertente, da mais lisa fachada: e o pintor não é anjo nem é operário.
A tarefa que se destinou não é, afinal, a de simular uma nova criação do mundo. A partir das instáveis imagens do existente tem sim inventado as imagens do mundo depois do mundo – o céu.
Os artistas são usurpadores de direitos e nenhum usurpador se deve deter na imitação dos actos do anterior monarca – contraria-os. A figuração do mundo já foi realizada e basta à nossa sobrevivência diária. O que não se verificou ainda foi a anunciada existência e glorificação dos lugares e das dimensões do real depois do real; ou seja, a figuração do céu. Uma parte significativa dos artistas trabalha, desde sempre, sobre este projecto: quando buscam, em cada músculo de um atleta, a própria ideia de vitória; quando procuram, sob os azuis enganosos do céu, o dourado coração da omnipotência divina; quando descobrem os arcanos do universo na geometria das suas composições. Mas querem apenas aproximar-se do que sabem (acreditam) existir para além deles, independente deles. Trata-se de um percurso de submissão.
Agora somos nós a inventar o próprio céu – porque podemos também estabelecer um fim para o nosso mundo.

O assunto é a criação do céu.
À partida não se trata de emoções metafísicas nem de abstracções líricas. Trata-se de mãos, madeira, papel, grafite, pastel, gestos repetidos em função de efeitos e objectivos deliberada e sistematicamente procurados.
O céu do artista é o resultado de um processo físico de produção material. Um céu feito à mão. Uma pessoa compreende que o ar à sua volta não lhe presta. Junta e movimenta as mãos e os gestos para separar as brisas, as linhas e as correntes, discernir e discorrer os tons e as inclinações propícias, camada sobre camada, linha sobre linha, afeiçoar-se o céu.
O processo material da criação do céu é inversamente proporcional à evidência da sua representação. A abertura do campo de experimentação sensual é o oposto do cliché. Porque o céu não tem medidas. É uma espaço virtual em que tudo existe como eventualidade e evanescência. O artista recusa os clichés da representação e a vacuidade de uma emoção psicologizante.

O processo desenvolve-se em função de regras de compatibilidade estética entre um determinado sentimento e determinadas estruturas formais.
A geometria é uma das vias. O rigor de um sistema lógico que tem as vantagens da clareza de um número limitado de princípios e da generosidade de um número infinito de possibilidades combinatórias. As limitações são as do elevado grau de formalização e arrefecimento do resultado final. A matemática não é celestial porque não é um afecto.
Uma outra via faz recurso à experiência das formas do mundo. Aqui se manifesta uma exclusão, a da figura humana, que tem um significado essencial à compreensão da natureza do céu em questão. Um céu de fusão que opera por absorção e dissolução. Pacificação radical. A casa do pai.

As formas eleitas são paisagens naturais ou estruturas arquitectónicas que surgem como reminiscência e evocações depuradas da pintura e iconografia religiosa tradicionais. Ou objectos isolados com referentes do mesmo tipo mas de leitura mais indeterminada e que desempenham uma função de suporte e sinal em relação a um espaço que os transcende.
O exercício fundador experimentado é um trabalho de invenção a partir de uma memória.
A memória é um lastro terreno, adquire-se no que se viu, no que se viveu e no que esperou. A memoria facultada a estes desenhos é restrita e selectiva: é uma memória que se esqueceu primeiro das palavras, depois dos homens, finalmente das próprias coisas e objectos. É um enorme buraco cheio de contornos luminosos e de luminosidades.
Os contornos são as auras dos objectos que transportam já no mundo a memória do céu: um templo, uma casa, ou um túmulo; um cálice, uma fonte ou um espelho; uma escadaria, um poço ou um cofre. As luminosidades vêm das cores derramadas pelos objectos em dissolução sobre a superfície dos céus.

Um trabalho sobre o trabalho de deus: acelerar a expansão do universo até que os volumes se volatilizem, as arestas se separem, as superfícies se tornem translúcidas. Contrariamente, na infinitude do céu a presença das formas mantém-se. São escassas, apenas devido ao processo de concentração de energia física e a simbólica em cada uma delas – não suportam a proximidade umas das outras. Um trabalho ao contrário de deus: contrair o universo até que os sentidos das coisas atinjam uma densidade e um peso insuportáveis, até que a matéria do mundo se reduza aos seus elementos primordiais. Trabalhos sobrepostos.

Assim cumpre o pintor os caminhos da luz e da treva, da água e da terra, da vida e da morte – todos os caminhos da arte (de deus): esconder e revelar, dar a ver e proibir.

Este céu vê-se de olhos fechados. Absorve e rodeia o homem. Os olhos do cosmonauta vagueiam perdidos do corpo, no espaço sem esperança


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Alexandre Melo e João Pinharanda, “Pedro Calapez: Desenhos sobre madeira”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Dezembro de 1988

PEDRO CALAPEZ



Fundação Calouste Gulbenkian
Desenhos sobre madeira, 1989


Nas duas exposições realizadas recentemente por Pedro Calapez, foram exibidos trabalhos dos dois últimos anos. Estas pinturas englobam, quanto aos materiais e execução, as principais características dos primeiros trabalhos do pintor iniciados em 1983-84. O suporte utilizado foi a madeira em bruto, por vezes coberta por uma leve camada de cinza. À primeira vista, as pinturas consistem numa acumulação obstinada de gestos garatujados e de contornos criados quer por grafite preta quer por gravação na superfície da madeira. O método de desenhar de Calapez define-se por uma sensualidade perspicaz, que não tem, contudo, a ver com o drama psicológico do expressionismo vibrátil. Trata-se, pelo contrário, de uma sensualidade física que resulta da oposição entre os gestos das mãos e a resistência objectiva dos materiais, criando assim uma sensualidade própria do que é manual.

No que diz respeito à composição, o resultado deste processo é a criação de uma nebulosa espacial que dá à sua pintura uma transparência e profundidade paradoxais. Desta atmosfera única, podemos destacar um número de contornos e formas básicas principais que sugerem truques de perspectiva geométrica ou estruturas cenográficas ou arquitecturas elementares. Sugere-se ainda a existência de objectos tais como poços, mesas, altares, tronos e sepulturas que, devido ao isolamento a que estão sujeitos, adquirem um peso religiosamente simbólico. Neste trabalho predominam formas que nunca emergem completamente mas que pairam no limite da própria realização, como que recuperadas de um todo perdido.

Poderíamos então dizer que a pintura de Calapez tenta recuperar as fundações ou o que resta das estruturas e crenças. Depois de se ter perdido toda a naturalidade da presença humana, todo o sentido da totalidade, a tarefa que nos fica é a de criar um espaço – tanto real como abstracto – no qual se torne possível repor signos essenciais e valores perdidos.


Contrariamente ao que faz em trabalhos anteriores, Calapez já não representa aqui o céu explorando a densidade, as cores, a luminosidade; em vez disso, cria o seu próprio céu.

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Alexandre Melo, Pedro Calapez – Fundação Gulbenkian, in Flash Art, Milão, Outubro, 1989

DOSSIER PORTUGAL - PEDRO CALAPEZ



Pedro Calapez
Flash Art, 1988



Pedro Calapez cria também um espaço genético. Mas em Calapez a diferença é que a violência se converte em retirada, a guerra em silêncio e o dourado em prateado. Esta interioridade parece disfarçada porque se apresenta como um espaço cénico, de espectáculo. Contudo é sempre um estádio pessoal duma realidade impossível, lugar de uma intimidade última. A relação com o exterior torna-se dupla: faz-se a partir da utilização de formas volumétricas que tomam dimensões arquitecturais quando em contacto com o movimento das linhas horizontais; e a partir da articulação das formas de acordo com o conhecimento das proporções antigas e sagradas, ou de acordo com a ambiguidade da sua destruição deliberada pela acção subjectiva do autor.


A sequência desta evolução fez com que Calapez simplificasse os referentes volumétricos e começasse a elaborar composições mais complexas aumentando o número de pontos de vista daqueles elementos formais escassos. As tensões internas/externas e a simplificação/complexificação são visíveis na afirmação linear que as formas volumétricas tentam adquirir; assim como na conjugação de soluções tridimensionais ilusórias com elementos pictóricos bidimensionais. A solução última é o predomínio das qualidades dos elementos abstractos em toda a composição. Tudo emerge como que dependente dum olhar analítico, dum jogo de sangue frio, que nos remete para um situação post-mortem. Enquanto espaço abstracto, próximo do fim da história, a pintura de Calapez surge para testemunhar uma realidade perdida; manuscrito incompleto da memória de um conhecimento que precisa de ser decifrado, como um enorme mapa do céu que fascina o nosso olhar.

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Pedro Calapez created a genetic space. But in Calapez the difference is that violence becomes a retreat, war becomes silence, and the golden colour turns silver. This inferiority appears to be disguised, because it presents itself as a scenic space, a show-place. However, it is always a personal stage of an impossible reality, a place with ultimate intimacy. The relation with the exterior becomes twofold: from the use of volumetric forms that gain architectural dimensions when they come into contact with the movement of horizontal lines; and from the articulation of the forms according to knowledge of the ancient and holy proportions of its deliberate destruction by the author’s subjective action. 

The sequence of this evolution made Calapez simplify the volumetric referents and start to make more complex compositions by the increasing number of points of view of those scarce formal elements. The internal/external tensions and the simplification/complexification are visible in the straightforward affirmation which the volumetric forms tend to gain; and in the conjugation of tridimensional illusionary solutions with bi-dimensional pictorial elements. The ultimate solution is the domination of the qualities of abstract elements throughout the composition.

Everything emerges as if dependent on an analytical look, on a coldblooded game, as in a post-mortem situation. As an abstract space, closed to the end of history. Calapez’s painting emerges to witness a lost reality; memory’s incomplete manuscript of a knowledge that needs to be deciphered, like an enormous sky map that clings to our eyes.

Traduzido por/Translated by: Maria Madalena Simões Proença


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Alexandre Melo, “Dossier Portugal”, Flash Art, Milão, nº138, Jan/Fev, 1988

PEDRO CALAPEZ: AS VERDADES DO ESPAÇO DE CENA



Atitudes Litorais : I Exposição de Artes Plásticas na Faculdade de Letras, 1984




Os filões da madeira
Pedro Calapez começou a trabalhar sobre papel, agora remonta à madeira. “Porque me rasgavam os papéis.” Razões banais que se transformaram um pouco: “o veio da madeira, o ar de madeira que surge debaixo das camadas de tinta, seduziu-me imenso”.

A cor roubada
Começou por usar grafite, pastel, agora faz a passagem às tintas diluídas. “A passagem é óbvia. Acompanha as ideias que tenho e que desejo realizar rapidamente. Ficava fisicamente esgotado ao cobrir uma superfície a pastel, para que ela ganhasse aquele grão... camadas sobre camadas sobre camadas.”
O suporte refere-se a uma situação antiga – a dos retábulos. A cor testemunha o tempo que desde então passou. “O que também me interessa desses frescos e retábulos é o ar estragado, o que lhes aconteceu. O dourado roubado pelo tempo. Agora tenho as tintas líquidas o que dá para sujar os vermelhos, os castanhos, os negros. O que faz a cor de um quadro resulta das misturas, das camadas – junto os restos. As cores alteram-se: há coisas que começam em encarnado e acabam em verde, o verde dos frigoríficos, das leitarias, o amarelo dos cafés. Eu não quero contrastes vivos, cores fortes.”

Pode haver alguma coisa atrás
Fez aparecer nos seus primeiros desenhos objectos isolados. Por isso colocou desde sempre a questão do espaço. Um sofá, por exemplo, é maciço e quase inerte; uma caixa não o é se a abrirmos e desdobrarmos, a olharmos por dentro, se nela fizermos uma sala ou um monumento. E quando passa aos jogos arquitectónicos (arcos, arcadas, muralhas, castelos, pontes, túmulos) Calapez acrescenta complexidade às iniciais questões espaciais.
As obras apresentadas na recente exposição Atitudes Litorais referiam-se já às posições dos volumes nos espaços – cenografias, mais do que arquitecturas. “O que me apetece são só estas ‘bandas’ que são realmente barreiras, muros finos e grossos ao mesmo tempo, assim no ar, que estão e não estão. E pode haver alguma coisa atrás.”

A cena da escadaria
Desenvolveu no Verão passado um projecto inacabado para a cenografia de Otelo. “Fiz desenhos de várias cenas. Procurei olhar para a época histórica a que se referia mas fui recuando até Giotto. Copiei os seus temas arquitectónicos e seleccionei as formas básicas.” Giotto, natural de Vespignano próximo de Florença, pastor e depois discípulo de Cimabue, amigo de Dante. Bocaccio reconheceu-lhe o poder de igualar a “obra de natureza”. Pintor de extensos programas narrativos (cenas da vida de S. Francisco e do Evangelho apócrifo de S. Tiago) mais do que a fidelidade da envolvência arquitectónica interessou-lhe situar as reacções psicológicas, definir os protagonistas da cenas.
“A minha ideia foi esvaziar: tirar as coisas que lá estavam a mais, as figuras, e deixar o que me prendia, as arquitecturas. Tirar a cruz e deixar os degraus; tirar o cadáver e deixar o leito.”

A ponte é o principal
Céus, a linha de terra que se torna chão ou palco ambíguo e impossível de habitar. Se nas pinturas aparecem tais referências naturais isso faz-se em função dos edifícios. “O meu quadro da ponte. Eu tenho um rio. Primeiro pintei-o muito destacado, depois dei-lhe amarelo por cima, da cor da terra, até quase o apagar. A ponte é que é o principal.”
“Não vejo cenas. Peripécias pois, paisagens, objectos. Há uma vontade de êxtase: desaparecer do cenário.”

Quando já se sabe tudo...
“Giotto deu-me os modelos formais directos, mas o sentido que dou a essas coisas é o dos maneiristas – é a ambiguidade.” O classicismo: “não me atrai a plenitude representação do mundo”.
.... já se pode destruir tudo.
Sem ser preciso pintar
“Comecei a desenhar só a preto, com grandes manchas. Havia um desenho inicial que se ia tapando. Alguns dos últimos ficaram todos negros. Não conseguia parar.”
“Agora quando traço um risco a lápis fico sempre parado antes de o encher de cor. Faço um quadro e queria deixá-lo assim despido de volume.” Em alguns desenhos que vai expor em Cascais há já um fundo empastado e pingado onde apenas se riscam as formas: “Como se fosse um traço que resolvesse tudo. Um risco seguro deixou ali uma forma e é aquela forma que é.”

Magnus Magister
A janela, com o Renascimento, tornou-se o lugar ideal para olhar o mundo. O antropocentrismo daria aos homens o orgulho de poderem criar uma obra igual à de Deus. Agora, pelo menos desde Kandinsky, o gesto fundador ocupa-se de outras tarefas; criar um mundo novo, não uma imitação. E a janela passou do ecrã para o cinema, agora de vídeo, onde tudo se pode ir construindo isolando as peças – sem céu, sem terra, sem fundo.

Absorvido pelo écran
“Criar uma sala de pintura, não um sala pintada. Conseguir entrar num outro mundo como numa sala de cinema em que só houvesse écran, como quando se desce a montanha russa – ser sugado pelo quadro. Quando pinto já estou a um metro do quadro. Faço-o e vejo-o muito perto porque o branco da parede me ofende.” Em 1982 na Diferença, com Ana Léon, enchera chão, paredes e tecto de Azul Vermelho. “Aí era mais o lúdico, aqui é o reflexivo, é o silêncio – tem a ver com o meu estar calado.”
“Estamos portanto a ver porque é que eu pinto.”
“Para criar uma outra situação onde eu possa viver – não exterior às pinturas. A atitude renascentista era de prova, eu não quero provar nada, quero ser absorvido por esse novo mundo que provoco. Já falei nisso.”
“(...) como no mundo inteiro não pode encontrar-se ninguém melhor que o mestre Giotto di Bondone este será chamado na sua cidade de Magnus Magister e publicamente reconhecido como tal.” – Resolução do Conselho da cidade de Florença no ano de 1334.

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Alexandre Melo, João Pinharanda, “Pedro Calapez as verdades do espaço de cena”. in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 22/5/1984.

10 CONTEMPORÂNEOS




Fundação Serralves, Porto, 1992



Gerardo Burmester
Pedro Cabrita Reis
Pedro Calapez
Pedro Casqueiro
Rui Chafes
José Pedro Croft
Pedro Portugal
Pedro Proença           
Rui Sanches
Julião Sarmento


Esta exposição tem por objectivo mostrar o trabalho de dez autores que marcam de forma decisiva o momento actual da arte portuguesa e que são, ou poderiam ser, com o devido enquadramento institucional, parte integrante da situação internacional da arte contemporânea.
No plano mais pragmático, e uma vez estabelecido o âmbito geográfico nacional, a exposição rege-se por parâmetros cronológicos e de dimensão.
Uma escolha assinada só tem vantagem em ser clara e precisa. O resultado é uma selecção de dez artistas e a divisão da exposição em duas partes de modo a permitir mostrar um número minimamente significativo de peças de cada um. Para reforçar a individualização, a partição em dois grupos segue critérios de diversificação e não de homogeneização. Acresce que, em termos de dimensão, foram levados em linha de conta, por um lado, o local de exposição e os seus condicionalismos, e, por outro lado, uma opção de montagem que tenta tomar cada objecto visível sem excessivas interferências negativas, e permitir a cada artista receber uma atenção específica e uma leitura individualizada.
Na escolha das peças, realizada em estreita colaboração com os artistas, procurou-se que correspondessem a diferentes momentos do trabalho dos autores ao longo do período de referência e que, sem quebra de representatividade, fossem, sempre que possível, peças menos conhecidas do público.
A montagem obedece a princípios de prioridade à visibilidade individualizada de casa artista e de tratamento equitativo de todos eles. Daqui decorreu a opção por conceder a cada artista um espaço autónomo mais fechado, que ocupa em exclusivo, e distribuir de forma equilibrada as suas presenças nos espaços mais abertos.
Um outro propósito da montagem foi o de, na medida em que as obras e as condições concretas de trabalho o permitiam, apresentar obras de exterior, chamando assim a devida atenção para o magnífico espaço envolvente da Casa de Serralves e para o muito que a leitura do seu espaço tem a ganhar com uma ampla abertura ao exterior.
Em termos cronológicos, o ponto de vista é o do momento actual, retendo como universo de referência a partir do qual operar as escolhas o trabalho realizado ao longo dos últimos dez anos por artistas cujas carreiras então atravessaram fases de afirmação ou definição de uma imagem pública consolidada. Ficaram assim afastados do universo de referência trabalhos cuja imagem pública consideramos não estar ainda definida ou já o estar desde um período mais recuado.
Retivemos este período não porque ele encerre qualquer unidade estética, programática ou ideológica, mas por julgarmos que, descontada a margem de arbitrariedade que qualquer censura cronológica implica, lhe corresponde um contexto social e cultural especifico a nível nacional. Um contexto caracterizado pela afirmação forte e dinâmica de um amplo conjunto de artistas e outros agentes culturais activos na aérea das artes plásticas, um notável aumento do interesse da opinião pública e dos meios de comunicação e uma assinalável, embora ainda limitada, abertura internacional da situação artística portuguesa.
Este conjunto de circunstâncias permite formular a hipótese, deliberadamente optimista, de que ao longo da última década se terá verificado em Portugal, ao nível das artes plásticas, e apesar de graves bloqueios e limitações institucionais, uma mutação da conjuntura que tornou possível abandonar os traumas da pequenez e os complexos de inferioridade e desenvolver práticas e atitudes ajustadas ao tempo e às dinâmicas mais fortes da criação artística à escala internacional.
O período retido, como resulta da simples consulta das datas das obras, é o da passagem da década de 80 para a década de 90, a viragem 80/90. Estamos perante obras e autores que se definiram depois e a partir de um distanciamento pessoal em relação aos modelos que marcaram os fins dos anos 70 e os princípios dos anos 80 (designadamente os “novos expressionismos” e as “figurações livres”) e que desde então adquiriram uma consistência e uma individualidade que hoje em dia os situam em lugares privilegiados de articulação com problemas e temáticas decisivas na década de 90.
Sem pretender ser exaustivo, sirvam de exemplo questões como sejam o estatuto do corpo humano e sua representação, os arquétipos da ocupação ou da representação do espaço, a história da arte como fundo da análise e recomposição de elementos plásticos, os limites e fronteiras de disciplinas como a pintura ou a escultura, a especificidade do objecto artístico e da sua definição no confronto com outros tipos de objectos, a capacidade de intervenção social da arte. Temas que, na sua diversidade, e abordagem das obras, igualmente diversas, dos artistas aqui reunidos, e que são simultaneamente tópicos insistentes do debate cultural e artístico contemporâneo.
Em termos de método optamos por valorizar a individualidade e diversidade das obras apresentadas recusando os discursos aglutinadores de ocasião, baseados em pretensas identidades nacionais, alegadas conformidades doutrinais ou concertações conjunturais de circunstância. Discursos muito frequentes em exposições colectivas e que também frequentemente se revelam teoricamente abusivos e eticamente menorizadores das obras no que diz respeito à natureza das relações que promovem entre estas e o discurso.
Uma vez enunciados os critérios mais pragmáticos convem não evitar a sempre polémica questão dos critérios mais subjectivos, pessoais.
É sabido que não existem critérios objectivos, técnicos, científicos, de avaliação da qualidade em arte, menos ainda na actualidade em que não funciona sequer o factor da consagração histórica. Qualquer escolha é sempre pessoal e subjectiva. O que não impede que seja norteada por critérios explicitáveis. Neste caso foram aplicados critérios de dinamismo, consistência e contemporaneidade.
Por dinamismo entendemos a riqueza e a intensidade da presença do autor e da sua obra no contexto social e cultural em apreço. Esta aspecto é aferível em função do conjunto do trabalho realizado e mostrado, da atenção, reflexão e debate que tenha suscitado e, bem assim, do conjunto de iniciativas a que tenha estado associado. Os currículos e bibliografias detalhados elaborados para este catálogo constituem a este respeito um testemunho adequado sem naturalmente poderem restituir inteiramente a riqueza da correspondente experiência social vivida.
Por consistência designamos a característica distintiva de uma obra em que é reconhecível um núcleo duro cuja progressiva elaboração, aprofundamento ou transformação serve de fio condutor para o entendimento de uma trajectória. Evitando oscilações gratuitas ou repetições bloqueadoras. Chamamos núcleo duro a um conjunto de temas, problemas, atitudes, questões ou obsessões sucessivamente recolocado e reformulado ao longo de um processo de consolidação e enriquecimento de uma obra e da nossa relação com ela. Um mais sentido, que é simultaneamente um mais saber e uma mais sentir, e que nos vamos habituando a experimentar e reconhecer como especifico “idioma” ou da “maneira” de um autor particular.
Por contemporaneidade designamos capacidade de, sem quebra da consistência que lhe é própria, um trabalho se situar num contexto mais amplo e nos permitir articular questões relevantes da nossa experiência social e cultural global. Demos atrás alguns exemplos de questões a reter, neste âmbito, na década em curso.
A consistência e contemporaneidade não são, evidentemente, atributos que possam ser fixados e demonstrados num discurso que, para cada autor, enunciasse de forma definitiva a verdade da obra.
O processo do discurso é um processo que acompanha o trabalho do artista e se desenvolve a partir do fazer da obra e das formas concretas da sua presença contextual.
A antologia de textos que é componente fundamental deste catálogo visa dar conta deste processo ao mesmo tempo que pretende constituir uma base documental para o estudo destes autores. Nessa medida foi privilegiada a diversificação de pontos de vista e de registos e foi dada prioridade à reprodução dos textos menos acessíveis, designadamente os publicados em jornais ou no estrangeiro em detrimento dos incluídos em livros ou catálogos, mais fáceis de localizar.



The aim of this exhibition is to show the work of ten authors who have had a great and decisive role in current Portuguese art and who are, or may be, with the right institutional acceptance, full component parts of the international situation in contemporary art.
In the most pragmatic field, and once national geographical realities have been established, the exhibition is governed by chronological and dimensional parameters.
A signed choice only has advantages when it is clear and precise. The result is a selection of ten artists and the dividing of the exhibition into two parts in order to allow the showing of a minimally significant number of works by each one. To reinforce individualization, the partitioning into two groups criteria which have to do with diversification and not homogenization. Furthermore, in terms of size, on the one hand the exhibitional space and its conditionalisms were taken into account, and, on the other, there is an option as to mounting the works which tries to make each object visible without excessive negative influences, permitting each artist to receive specific attention and an individual reading of the works.
In the choice of the works – carried out in direct collaboration with the artist – an attempt was made to find one which correspond to different moment of the author’s work throughout the period in question and which, without loss of representativity, were whenever possible less well-known to the public.
The mounting follows principles of individualized visibility for each artist and gives equal treatment to all of them. From this idea came the option to give each artist an autonomous and more closed space, which he or she occupies exclusively, and to distribute their presences in a more balanced manner in the more open spaces.
Another propose in the arrangement was, as far as the works and physical working conditions allow, to show outdoors works, attracting due attention to the magnificent space which surrounds the Casa de Serralves and to the great amount which the reading of the work may gain in the being presented in a great open space.
In chronological terms, the point of view is the present, having a universe of reference from which to operate the choices of work over the last ten years by artists whose careers were then going through phases of affirmation or definition of a public image which is now consolidated. Therefore, works whose public we consider not to be defined or still in a more remote period were left out of this universe of reference.
We kept this period not because it encloses any aesthetical, programmatical, or ideological unity, but because, putting aside the margin of arbitrarity which any chronological caesura implies, it corresponds to a specific social and cultural context on the national level. A context characterized by strong and dynamic affirmation of wide group of artists and other cultural agents in the area of fine arts, a remarkable increase in interest by the general public and the communication media, and a notable, although still limited, international opening to the Portuguese artistic scene.
This set of circumstances allows one to formulate the deliberately optimistic hypothesis that the previous decade in Portugal has seen, in the field of fine arts, and despite serious blocks and institutional limitations, a changing of the situation which has made it possible to abandon the traumas of small-mindedness and inferiority complexes and to develop practices and attitudes which are in step with the times and the stronger dynamisms of artist creation on a international level.
The period chosen, as one can see by simply consulting the dates of the works, is that of the passing of the 80’s to the 90’s, the turning of 80 into 90. We are faced with works and authors who defined themselves after a personal distancing in relation to the models which characterized the end of 70’s and the beginnings of the 80’s (namely the “new expressionisms” and the “free configurations”) and who have since then taken on a consistency and individuality which now places them in privileged positions of articulation with problems and themes which are decisive in the 90’s.
Without trying to be exhaustive, let the following matters serve as examples: matters like the status of the human body and its representation, archetypes of occupation of the representation of space, the history of art as an analytical space and one of recomposition of plastic elements, the limits and frontiers of disciplines like painting and sculpture, the specificness of the artistic object and of its definition when confronting other types of objects, art’s capacity to have a social role. Themes which, in their diversity, and among many others, form some of the possible paths into the works, which are equally diverse, of the artists here represented, and which are also insistent topics in the contemporary cultural and artistic debate.
In terms of method, we opted to give greater importance to the individuality and diversity of the works, fleeing from agglutinating speeches, based on supposed national identities, alleged doctrinal conformities or circumstantial concertations of conjure. Texts which are very frequent in collective exhibitions and which are also theorically abusive and ethically reductive of the works as to the nature of the relationships which they promote between themselves and the works.
Now the more pragmatical criteria have been explained, it is wise not to avoid the always-controversial issue of the personal and subjective criteria.
It is known that there are not objective, technical and scientific criteria of assessing art, even less so modern art, which has not yet been subjected to the factor of historical consecration. Any choice is always personal and subjective. Which doesn’t prevent it being oriented by explicable criteria. In this case we used the criteria of dynamism, consistency, and modernity.
By dynamism we mean the richness and intensity of the presence of the author and his work in the social and cultural context concerned. This aspect can be gauged by the set of the work carried out and exhibited, by the attention, reflection and debate which has provoked and equally by the amount of initiatives it has been involved in. The detailed curricula and bibliographies written for this catalogue form an adequate testimony to this without, naturally, being able to transmit totally the richness of the corresponding social experienced which has been lived through.
By consistency we mean the distinctive characteristic of a work in which a hard nucleus is recognisable, whose progressive elaboration, deepening or transformation provides a central thread for the understanding of a trajectory. Avoiding gratuitious oscillations or blocking repetitions. We call the hard nucleus a group of themes, problems, attitudes, issues or obsessions which are successively restudied and reformulated throughout the working process, which is also a process of consolidation and enriching of a work and of a relationship with it. An extra sense, which is simultaneously an extra knowledge and an extra feeling, and which we get used to feeling and recognising as specific to the “idiom” or the “manner” of a certain author.
By modernity we mean the capacity a work as to, without losing its particular consistency, be located within a wider context and to allow us to articulate questions relative to our overall social and cultural experience. We have given some examples of this above, in relation to this decade.
Consistency and modernity are not, obviously, attributes which may be fixed and demonstrate in a discourse which, for each other, might enunciate the truth of the work in a definitive manner.
The process of the discourse is a process which accompanies the artist’s work and is developed from a doing of the work and the concrete forms of its contextual presence.
The anthology of texts which is a fundamental component of this calatogue aims at showing this process at the same time as intending to form a documental base for the studying of the authors. In this sense the diversity of points of view and registers has been important and priority was given to less accessible texts, namely those published in newspapers or abroad, over those which are included in books and catalogues, being much more easily available. 
(Tradução: David Prescott) 

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Texto de introdução do Catálogo '10 Contemporâneos l Fernando Pernes, Alexandre Melo, Porto: Fundação de Serralves, 1992' da Exposição comissariada por Alexandre Melo. (pp. 9-12)