Mostrar mensagens com a etiqueta 1989. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta 1989. Mostrar todas as mensagens

RUI SANCHES - RETIRAR A MATERIALIDADE DAS PERSONAGENS



Rui Sanches. Orfeu. 1989.

O traçado de um perfil é um bom pretexto para sortir informações biográficas que normalmente não caem bem no contexto dos escritos mais pretensiosos.

Nasceu em Lisboa há quase trinta e seis anos, sob o signo de Touro, ascendente Gémeos. Os dados astrológicos funcionam sempre pela leveza e humores para leitores mais fúteis ou como indícios reveladores para crentes e especialistas.

O artista cultiva pela astrologia um interesse relativo. Nunca o aprofundou.

Confessa que da infância e adolescência não se lembra de nenhum segredo ou revelação que tenha sido determinante no encaminhar da sua carreira, ou que seja decisivo para a compreensão actual do seu trabalho. Mas lembra-se mesmo assim de algumas coisas. “A primeira exposição que me lembro de ter visto e de me ter provocado uma impressão forte foi ‘Um século de pintura francesa 1850/1950’ em 1965. Tinha 11 anos. Lembro-me perfeitamente dos trabalhos de Soulages. E de Cézanne. Quanto a influências, na minha família não havia ninguém especialmente dados às artes. Apenas alguns professores, no Pedro Nunes, me encorajaram a ir para Belas-Artes mas nada de realmente decisivo.”

Foi e depois deixou de ir estudar medicina entre 1971 e 1974.

Primeiro porque queria ser psiquiatra com a boa intenção humanista de entender o seu semelhante – e a si próprio, como era próprio da idade. Mas como nunca se interessou pelos aspectos clínicos, tinha até aversão a doentes, rapidamente chegou à conclusão de que a psiquiatria não era a sua vocação. Saiu de Medicina para o Ar.Co para obter uma “formação básica” em matéria de artes. No ano seguinte trabalhou em Bragança, no Gabinete de Apoio Técnico às Autarquias, dirigido por Pedro Vieira de Almeida; maquetas, desenhos, trabalhos de apoio. A seguir, mais um ano no Ar.Co, em pintura, a preparar o concurso ao Goldsmith’s College em Londres – onde foi aceite em 1977 e ficou até 1980.

“Antes de ir para Inglaterra houve uma coisa importante que foi o contacto com o trabalho e as ideias à volta do trabalho de Jasper Johns – através dos livros bem entendido – que teve nessa altura uma influência significativa. Enquanto estive em Portugal só trabalhei em pintura cada vez mais minimal, quase monocromática. Quando fui para Inglaterra tive um grande choque cultural. Faziam-se coisas que eu nunca tinha visto. Trabalhos como textos, fotografias, performance. Durante um ano experimentei tudo e mais alguma coisa e quase deixei de fazer pintura. Comecei a produzir coisas cada vez mais tridimensionais usando materiais do quotidiano: espelhos, bocados de vidro, painéis forrados ou pintados. O meu trabalho centrou-se numa investigação sobre a perspectiva. Comecei a interessar-me pela pintura clássica do séc. XVII, tratados de perspectiva, escritos e experiências de Duchamp em torno da óptica”

Depois de Londres foi para os Estados Unidos. Yale University, New Haven, entre 1980 e 1982.

“Depois do habitual período de choque e adaptação, trabalhei numa espécie de instalações, coisas muito abstractas, jogos de composição, com placas e riscos no chão e nas paredes. Utilizei caixas que serviam como módulos, organizados de uma maneira que remetia para os pontos de vista dentro da sala. A seguir comecei a fazer coisas baseadas em Poussin.”

Este é o momento de colocar a questão de saber até que ponto é que o trabalho de Rui Sanches denota marcas efectivas de uma formação anglo-saxónica, e que significado é que a referência anglo-saxónica pode efectivamente ter, quer em termos absolutos quer em termos relativos a um meio artístico como o português, tradicionalmente suposto muito influenciado pelas tradições culturais francesa, literária e psicológica.

“Nessa altura, foi muito importante o contacto com a Arte americana, sobretudo a arte minimal, que só conhecia de reproduções. Igualmente importante foi o conhecimento da maneira de estar e da atitude americana em relação ao trabalho do artista. A continuidade do trabalho, como se fosse outro trabalho qualquer, a presença regular e diária no estúdio, em vez de ficar em casa à espera da inspiração. A ideia de que é no estúdio que o trabalho se resolve. Fez-me ver, ainda quando por oposição, a diferença entre a ‘maneira europeia’ e a ‘maneira americana’, mais puritana”.

Voltou a Lisboa em 1982 e voltou ao Ar.Co, agora como professor de desenho e escultura. “Em 1983 não fiz nada de escultura porque não tinha local para trabalhar. Só desenhos. Os desenhos vieram um bocado a partir da escultura. Li coisas sobre Poussin e a mitologia clássica. Precisei de copiar alguns diagramas de escavações arqueológicas em cidades gregas, que começaram a ganhar uma importância autónoma enquanto desenhos. A partir daí apareceram mapas, vistas aéreas, sempre representações do espaço”.


A primeira exposição de desenhos foi em 1984 na SNBA. Voltou a expor desenhos em 1987 na Diferença (“Preto e Branco”) e em 1989 na Loja de Desenho (“A Marat”). “Hoje em dia, o desenho continua a funcionar para mim como uma actividade paralela à escultura. Por vezes, os desenhos são totalmente independentes das esculturas. Outras vezes tratam os mesmos temas utilizando os meios próprios do trabalho em duas dimensões; foi o caso ‘Marat’, escultura e desenhos. Outras vezes, ainda, os desenhos são feitos a partir de uma escultura, como a exposição ‘Preto e branco’ a partir da escultura ‘Natal’ (1986). O desenho serve para equacionar o problema de relação entre as duas e as três dimensões, problema que também surge na minha escultura. É uma outra maneira de trabalhar sobre a mesma questão.”

Em 1984 fez a decoração do Bar Frágil. Segundo a lógica de um movimento pendular, depois do excesso romântico da decoração assinada por Cabrita Reis, Rui Sanches joga na eficácia discreta de um sistema frio de pontuação do espaço. Rigor geométrico, sobriedade formal, cores e linhas puras. Desocupação do espaço e vectorização do olhar.

É altura de não esquecer que Rui Sanches é um escultor. Por uma vez, aliás, a aplicação do qualificativo de escultor nem sequer se afigura polémica. A sua primeira exposição individual de escultura foi em 1984 na Diferença: “Et in Arcadia ego”.

Desde então e embora, por estranho que pareça, não tem realizado nenhuma ou outra individual de escultura, tem mostrado regularmente as suas obras em sucessivas significativas colectivas. “Arquipélagos”, em 1985 na SNBA, e “Cumplicidades” em 1986 na EMI-Valentim de Carvalho, marcam a inclusão num “grupo de afinidades” em que também se incluem Pedro Calapez, José Pedro Croft e Cabrita Reis. A III Exposição Gulbenkian em 1986 e a V Bienal de Cerveira em 1986, a Bienal de São Paulo em 1987, o Primeiro Prémio Unicer em Serralves, 1988, prémios e aquisições, marcam o começo de um reconhecimento generalizado à escala nacional. Já em 1989 expôs com António Campos Rosado e Pedro Campos Rosado.


..........................

Alexandre Melo, “Rui Sanches – Retirar a materialidade das personagens”, in Artes&Leilões, Ano 1, Nº2,  Lisboa, Dezembro - Janeiro de 1989-1990.

RUI CHAFES - GALERIA ATLÂNTICA


ARTFORUM
Novembro/November 1989


Rui Chafes. Depois de para sempre - VII. 1988. 
Rui Chafes. Depois de para sempre - VIII. 1988.


Nas suas primeiras exposições, Rui Chafes apresentou escultura para um lugar específico. Uma só construção enchia a galeria, deixando apenas o espaço necessário à circulação dos visitantes. Algumas destas construções tinham interiores suficientemente largos para que se pudesse aí entrar.

Materialmente, elas estabeleciam frequentemente o contraste entre elementos “naturais”, tais como o bambu e a madeira, e outros “artificiais”, tais como o plástico. O jogo dos diferentes materiais era determinado pela relação entre forma estrutural e superfície, sendo o efeito final realçado pela escolha de cor, da textura e da iluminação.

As instalações de Chafes correspondem a uma afirmação da impossibilidade, ou dificuldade, do objecto. Isto é sugerido pela escala sobredimensional do trabalho, pela sua presença agressiva, construção precária e natureza efémera. Acima de tudo, a sua escultura releva da tradição romântica, segundo a qual cada objecto apenas existe simultaneamente como testemunha de impossibilidade e portador de esperança.

Nesta sua exposição, Chafes apresentou também este tipo de objecto escultural. Cada objecto foi concebido como parte de um todo e foi exposto numa instalação preparada meticulosamente. “Depois de Para Sempre” (1988) é o título desta última série de esculturas de Chafes. “Sempre” é uma expressão que, no discurso de amor corrente, significa o curto trajecto entre vida e morte. A expressão “depois” introduz o espaço de transcendência romântica – o espaço da alma.

Trata-se de esculturas em metal com um acabamento cromático e textural apurado. Chafes combina várias formas circulares e ogivais. As formas circulares, esféricas, constituem pólos centrípetos de estabilidade e clausura; as formas ogivais representam uma configuração dinâmica de aberturas.

Em geral, esta variedade de estruturas e operações formais e materiais estabelece um sentido ambíguo de contenção e de apelo. As possibilidades de interpretação e de sugestão alusiva são imensas e permanecem abertas: o núcleo materno original, do qual se forma e projecta um corpo, ou uma flor que cresce no cimo de um caule, que se abre e fecha, seca e morre. As esculturas evocam a necessidade do crescimento e a natureza material da morte.


                                                                                   *****


In his early exhibitions, Rui Chafes showed site-specific sculpture. A single construction would fill the gallery, leaving only the necessary space for the circulation of the viewers.

Some of these constructions had interiors that were large enough to be entered. Materially, they often contrasted “natural” elements, such as bamboo and wood, with “artificial” ones, such as plastic. They play of different materials was determined by the relation between structural form and the surface, and the total effect was enhanced by the choice of color, texture, and illumination.

Chafes’ installations correspond to an affirmation of the impossibility, or difficulty, of the object. This is suggested by the works’ superdimensional scale, aggressive presence, precarious construction, and ephemeral nature. Overall, his sculpture relates to the romantic tradition, according to which each object only exists as both witness to impossibility and bearer of hope.

In his exhibition here, Chafes also presented this kind of sculptural object. Each was conceived as a part of a whole, and was exhibited in a meticulously prepared installation.

“Depois de Para Sempre” (After Forever, 1988) is the title of this latest series of Chafes’s sculpture. “Forever” is an expression that, in the current love discourse, signifies the short circuit between life and death. The expression “after” introduces the space of romantic transcendence – the space of the soul. These are metal sculptures with a refined chromatic and textural finish. Chafes combines various circular and pointed forms. The circular, spherical forms constitute centripetal poles of stability and enclosure; the pointed forms represent a dynamic configuration of openings.


As a whole, this range of formal and material structures and operations establishes an ambiguous sense of restraint and invitation. The possibilities of interpretation and allusive suggestion are immense and open: the original material nucleus, from which a body is formed and projected, or a flower that grows on the top of a stalk and that opens and closes, withers and dies. The sculptures evoke the necessity of growth and the material nature of death.


........................
Alexandre Melo, “Rui Chafes – Galeria Atlântica”, in Art Fórum International, vol. XXVIII, nº 3, Novembro de 1989.

CONVERSA - MERCADO DA ARTE


Artes&Leilões
Outubro-Novembro, 1989
António Bacalhau - José Sousa Machado



Artes & Leilões – Na tua perspectiva como é que se articula o conceito de mercado nacional com o de mercado internacional?

Alexandre Melo – O problema da escala geográfica dos mercados é o problema das fronteiras espaciais do reconhecimento de um determinado valor. É uma questão fulcral, porque sempre que quisermos comparar preços e valores de obras de arte não chegamos a nenhuma conclusão se não encontrarmos em linha de conta com a dimensão geográfica. Isto é, por exemplo, um artista que só é famoso em Portugal, que não tem sequer cotação fora do país, pode ter preços mais altos, aqui, do que um artista cuja obra e a cotação são reconhecidas em todo o mundo. Há um mercado internacional, hierarquizado, e há mercados regionais, nacionais ou não, também eles hierarquizados e que podem ser mais ou menos autónomos em relação ao mercado internacional.

A.L. – Em termos práticos, do ponto de vista dos compradores, como é que o problema pode ser encarado?

A.M. – Há duas atitudes possíveis. Numa perspectiva mais ambiciosa, mais dinâmica e internacional, importa reforçar a articulação do mercado nacional com o mercado internacional e impõe-se apostar nas obras com um horizonte de afirmação e um nível de reconhecimento mais vasto. Numa perspectiva mais limitada e imobilista, é também possível a atitude oposta. O comprador confina-se aos limites do seu meio e opta pelas obras com as quais se identificam os círculos sociais em que projecta a sua imagem e aspirações, sem se preocupar com o desfasamento em relação à situação cultural mais global.

A.L. – Ouve-se frequentemente dizer que em Portugal se vive ainda na pré-história do mercado da arte. Mas simultaneamente nos últimos anos vem-se manifestando uma grande animação e entusiasmo no mercado. Será que esta animação pode vir a revelar-se artificial e a gerar equívocos em termos de qualidade?

A.M. – Há de facto uma assinalável animação e dinamismo. Embora, quase tudo continue a passar-se a uma escala bastante reduzida. A abertura ao confronto com o exterior e às tendências mais actuais continua a ser limitado, embora esteja a aumentar, e o nível de formação e de informação dos agentes culturais e da opinião pública, em relação à arte contemporânea, continua a ser muito pobre.
Estas limitações, ao conjugarem-se com uma procura muito dinâmica, podem produzir efeitos negativos, designadamente uma degradação ao nível de qualidade de algumas das obras oferecidas no mercado, ou um processo inflacionista descontrolado que faça subir de forma imponderada os preços dos artistas mais consagrados. Mas não é fatal que assim aconteça. À medida que aumenta a circulação e a informação o risco de efeitos perversos diminui porque aumenta o leque de obras e cotações dentro do qual se estabelecem as comparações. Mesmo para quem prefira valorizar contextos locais, o aumento da informação, ao permitir multiplicar os confrontos, contribui para moderar os aumentos especulativos e para aumentar o nível de exigência de qualidade.

A.L. – A efectiva existência de um mercado de arte pressupõe também que exista uma certa garantia e segurança do valor. Se alguém compra uma obra a um determinado preço tem que ter a convicção de que salvo situações excepcionais aquela obra vale o que custou quando eventualmente se dispuser a vendê-la. Será que a situação portuguesa oferece esse tipo de segurança?

 A.M. – É difícil generalizar a esse respeito porque tudo depende das características concretas dos agentes envolvidos no processo, ou seja, no caso, os galeristas e os coleccionadores. Em Portugal não há muitos galeristas profissionais mas há alguns. Quando falo de galerista profissional, independentemente da filiação estética e inserção social, refiro-me a alguém que assume e defende a obra dos artistas que representa numa perspectiva de carreira a longo prazo e de promoção estratégica. Isto pressupõe uma rede sólida de relações sociais e institucionais a partir da qual se constitui um núcleo de coleccionadores. E traduz-se num escrúpulo de gestão de preços, das compras e das vendas que permite, salvo situações anormais, assegurar a cotação de um artista. Quanto mais profissionais forem os galeristas, neste sentido, maior será a segurança.
Vendo agora a questão pelo outro lado, pelo lado do coleccionador, é evidente que para que existam galeristas profissionais é preciso que existam coleccionadores a sério. Isto é, coleccionadores que têm uma ideia de colecção e uma perspectiva a longo prazo. Que compreendam que a compra de uma obra é também uma tomada de posição cultural e um ponto de vista sobre o trabalho de um artista e que isso lhes cria responsabilidades em termos de coerência, continuidade e clareza de opções.
Não se trata apenas de comprar e vender ao sabor das conveniências, do acaso ou do capricho. À medida que se forem afirmando e distinguindo os galeristas profissionais e os coleccionadores a sério, e em que eles forem servindo de ponto de referência para o conjunto do mercado, irão diminuir os riscos de quedas ou quebras.

A.L. – Nessa perspectiva o galerista surge como uma espécie de gestor de carreira do artista. Mas o que também parece acontecer, em contraponto ao aumento do número de galerias, é a vontade manifestada por muitos de preservar uma certa liberdade e de serem eles próprios a gerir as suas carreiras sem assumirem compromissos com galerias.

A.M. – Cada artista decide qual a forma de inserção social e económica que lhe interessa para o seu trabalho. O meio artístico e o mercado comportam a existência e convivência de diferentes modalidades. Penso no entanto que com a maior parte dos artista que se preocupa em gerir as suas próprias carreiras, o que está em causa não é tanto uma exigência abstracta de liberdade mas sim uma aguda consciência do que entendem dever ser a difusão do seu trabalho e uma certa desconfiança em relação à capacidade dos galeristas para a assegurar. Em muitos casos os artistas têm um grau de informação estética e de consciência estratégica mais elevados que o dos próprios galeristas. Nesse medida é normal que queiram intervir na gestão da sua própria carreira. Penso que também aqui a situação se modificará se aumentar o nível de profissionalismo dos galeristas.

A.L. – Será que em Portugal existe já uma nova geração de coleccionadores englobando pessoas de rendimentos médios e motivadas para a arte contemporânea?

A.M. – Naturalmente não há informações exactas disponíveis até porque a tal animação do mercado é um fenómeno recente. Julgo porém que em relação à arte contemporânea há dois tipos de coleccionadores. Por um lado, coleccionadores com colecções iniciadas há já vários anos, com um poder de compra mais forte, que por razões de sensibilidade ou maior informação – nacional e, nalguns casos, também já internacional – começaram a voltar as suas atenções para a arte contemporânea e têm a possibilidade de constituir colecções consistentes nessa aérea. É um fenómeno minoritário mas que poderá alargar-se a partir do momento em que comece a haver um reconhecimento público generalizado da valia de escolhas que, porque mais contemporâneas, tendem ainda a aparecer, aos olhos do coleccionador tradicional, como demasiado arriscadas. Por outro lado, há uma vaga mais recente de coleccionadores que começaram a comprar ao mesmo tempo que os artistas, cujas obras adquirem começaram a expor e que por assim dizer acompanham, também em termos de cumplicidade estética e cultural, a evolução das suas carreiras. São pessoas que não têm um poder de compra muito elevado mas que têm um papel fundamental enquanto base social e cultural de apoio e enquanto germe de uma futura geração de coleccionadores mais informada e mais sintonizada com a criação contemporânea.

A.L. – Ainda no âmbito das colecções e coleccionadores, qual é ou deveria ser a situação, em Portugal, no que diz respeito aos coleccionadores institucionais, seja o estado as fundações ou outras entidades?

A.M. – Uma resposta exacta exigiria uma análise caso a caso. Generalizando, diria que em primeiro lugar, o número de coleccionadores institucionais importantes, quer em termos de montante de compras quer em termos de prestígio cultural, é bastante reduzido. A situação alterar-se-á à medida que as instituições, públicas ou privadas, forem compreendendo até que ponto a dimensão cultural é importante para a valorização e articulação social das suas actividades. Em segundo lugar, quase todas as colecções institucionais – a recente colecção da Fundação Luso-Americana é talvez a única excepção – sofrem de dois defeitos: a falta de uma ideia ou critério estruturador, e a falta de uma perspectiva de longo prazo com a consequente ausência de regularidade c continuidade de aquisições. Estas faltas acarretam dois tipos de inconvenientes. Por um lado determinam um tipo de intervenção casuística, aos repelões, com um timing arbitrário e uma lógica imprevisível. Por outro lado inspiram uma abrangência sem limites ou um ecletismo sem princípios que acabam por transformar as supostas colecções em aglomerados heteróclitos de peças cuja reunião não tem maneira de fazer sentido. Esta situação é tanto mais grave quanto as colecções institucionais, pelo seu peso económico e visibilidade, deveriam constituir um exemplo para o mercado no seu conjunto. Se na diversidade das suas opções estéticas e culturais as instituições em causa adoptassem para as suas colecções uma ideia, um conceito, um critério, uma perspectiva estratégica, em tudo a sua acção poderia ser muito importante para a construção e amadurecimento do mercado da arte em Portugal.

A.L. – Todo este conjunto de insuficiências e limitações que temos vindo a apontar aos coleccionadores portugueses, e que estão muito relacionados com a falta de informação, não poderão levar à formação de colecções que sejam autênticos “elefantes brancos”?

 A.M. – Existem de factos supostas colecções que não se podem mostrar fora do círculo familiar e ainda outras colecções que com o passar do tempo vão descobrindo que nunca o foram. Esta situação está relacionada com um fenómeno assaz chocante que é a massiva falta de informação sobre a arte contemporânea. Mesmo sem falar da inexistência de grandes ou pequenas exposições, retrospectivas ou de actualidade. Não existe sequer um centro de documentação, uma biblioteca ou uma livraria – já não digo mais que uma – onde se tenha acesso de forma minimamente sistemática e actualizada a livros, catálogos ou publicações periódicas sobre arte contemporânea. Este deserto tem consequências não tanto ao nível do meio artístico propriamente dito – que, por vias internacionais, tem acesso à mesma informação que o meio artístico de qualquer outro país – mas sobretudo ao nível da opinião pública em geral e da investigação sobre arte contemporânea. Esta é, em termos práticos, impossível em Portugal, por falta de tudo. Quanto à opinião pública média o problema que se põe não é já o de se identificar ou não mas o de virtualmente não ter qualquer ideia ou imagem do que se passou no últimos 30 anos no campo das artes plásticas.

A.L. – Haverá a possibilidade de no mercado de arte em Portugal, a breve prazo, se vir a dar uma queda, um crash, semelhante ao que ocorreu no princípio da década de 70?

A.M. – Julgo que, apesar de todos os problemas e limitações de que viemos falando, existem agora mais elementos moderadores e parâmetros de referência mais sólidos do que existiam nessa altura. O grau de profissionalismo dos vários agentes envolvidos é apesar de tudo mais elevado e não creio que as manobras especulativas possam atingir uma dimensão catastrófica. Poderá haver altos e baixos, aumentos ou quebras da procura, dependentes das oscilações de conjectura económica mas não se me afigura que, até ver, o mercado da arte esteja a alimentar em si mesmo factores ou dinâmicas autodestrutivas. Por outro lado podemos também considerar que uma ligeira recensão ou uma quebra da euforia – se é que se pode falar de euforia, parece-me um pouco exagerado – podem também ter um efeito regulador, moderador, selectivo. Permitindo distinguir entre o profissionalismo e o trabalho sólido e facilidade inconsequente de quem aproveita os bons momentos para empolar operações especulativas.

A.L. – Sempre que se fala das relações entre e a arte e economia, de mercado da arte, surgem acusações relativas à massificação da relação com as obras de arte e da sua consequente banalização e de valorização em termos de sentido e de relação profunda com o observador. Será que este processo é inevitável?


A.M. – Actualmente existe uma crescente integração da criação artística na lógica económica mais geral das sociedades, o que implica uma certa mercantilização, mediatização e massificação da circulação e da distribuição das obras de arte. Mas isso não impede que continuem a ser possíveis diferentes tipos de relacionamento. Se eu faço uma viagem de 15 dias ao estrangeiro e aproveito para visitar seis exposições ou museus, por dia em 12 cidades diferentes é natural que no meu regresso tenha um sentimento de massificação e que me queixe de uma quebra da intensidade da minha relação com cada uma das obras que olhei. Mas ninguém me obriga a fazer isso. Posso dedicar o mesmo tempo a ver apenas uma exposição ou até apenas uma obra. A escolha é sempre do observador e os diferentes tipos e níveis de relacionamento não são sequer incompatíveis. Tudo depende, em cada situação, do objectivo e da modalidade de atenção.


............................
"Mercado da arte : Conversa com Alexandre Melo". in Artes & leilões, Lisboa, Out.-Nov. 1989, p.12-16

PEDRO CALAPEZ



Fundação Calouste Gulbenkian
Desenhos sobre madeira, 1989


Nas duas exposições realizadas recentemente por Pedro Calapez, foram exibidos trabalhos dos dois últimos anos. Estas pinturas englobam, quanto aos materiais e execução, as principais características dos primeiros trabalhos do pintor iniciados em 1983-84. O suporte utilizado foi a madeira em bruto, por vezes coberta por uma leve camada de cinza. À primeira vista, as pinturas consistem numa acumulação obstinada de gestos garatujados e de contornos criados quer por grafite preta quer por gravação na superfície da madeira. O método de desenhar de Calapez define-se por uma sensualidade perspicaz, que não tem, contudo, a ver com o drama psicológico do expressionismo vibrátil. Trata-se, pelo contrário, de uma sensualidade física que resulta da oposição entre os gestos das mãos e a resistência objectiva dos materiais, criando assim uma sensualidade própria do que é manual.

No que diz respeito à composição, o resultado deste processo é a criação de uma nebulosa espacial que dá à sua pintura uma transparência e profundidade paradoxais. Desta atmosfera única, podemos destacar um número de contornos e formas básicas principais que sugerem truques de perspectiva geométrica ou estruturas cenográficas ou arquitecturas elementares. Sugere-se ainda a existência de objectos tais como poços, mesas, altares, tronos e sepulturas que, devido ao isolamento a que estão sujeitos, adquirem um peso religiosamente simbólico. Neste trabalho predominam formas que nunca emergem completamente mas que pairam no limite da própria realização, como que recuperadas de um todo perdido.

Poderíamos então dizer que a pintura de Calapez tenta recuperar as fundações ou o que resta das estruturas e crenças. Depois de se ter perdido toda a naturalidade da presença humana, todo o sentido da totalidade, a tarefa que nos fica é a de criar um espaço – tanto real como abstracto – no qual se torne possível repor signos essenciais e valores perdidos.


Contrariamente ao que faz em trabalhos anteriores, Calapez já não representa aqui o céu explorando a densidade, as cores, a luminosidade; em vez disso, cria o seu próprio céu.

................................
Alexandre Melo, Pedro Calapez – Fundação Gulbenkian, in Flash Art, Milão, Outubro, 1989