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FORMOSOS E NÃO SEGUROS


Still from They died with their boots on, Raoul Walsh, 1941


Soldados, Soldadinhos de chumbo, de carne, de sangue. Quando era criança, quando ouvia as vozes de comando, corria para a janela para ver passar os soldados: as fardas, as marchas, as ladainhas, os gritos, os rostos pequenos.

O que são os soldados e o fascínio dos soldados?

São os rapazes, os filhos já homens dos homens, os anos mais vivos dos corpos dos homens, olhos infinitos. Tudo isso organizado em função do ponto de vista mais oposto e mais extremo: o ponto de vista da morte. Isso mesmo, a morte, brutal, metálica, sangrenta, final: o fim, a morte.

Num soldado olhamos para o princípio, a plenitude da presença – a beleza – de um princípio. Visto a partir do ponto de vista do fim.

Ou então podemos inverter a formulação e dizer:
Num soldado olhamos lá para o fundo do fim, a morte e o extermínio, com os olhos joviais da causa da vitória do ideal.

E depois? Ou seja, agora?

Depois da esperança e do extermínio, depois da esperança exterminada e do extermínio da esperança, o que é que os soldados nos oferecem ainda?

Não falo dos soldados reais, os novos soldados americanos, que apenas nos dão a segurança e o futuro, porque eles, eles “tordos morreram calçados” (They died with their boots on, Raoul Walsh, 1941). Falo dos soldados desenhados por Alexandre Conefrey na sua série de trabalhos O fim do Sacro Império / Descalça vai para a fonte (1998).

Os soldados das fardas, das estampas e dos aromas. Os soldados da velha Europa, velhíssimos, europeus e imperiais, os que marcharam durante um século inteiro, um século que levou quase cem anos a chegar ao fim. Os que marcharam descalços, os pés à flor do sangue, sobre os estafados campo da Europa. Iam formosos e não seguros. Fizeram o fim sem saber o que faziam. Deixaram uma nostalgia inviável. Cheia de crimes e de nada.

Nestes soldados perdidos encontramos hoje a coincidência da juventude com a morte, do princípio com o fim, da utopia com o terror. O contorno de uma fascinante história podre fixado num olhar eternamente espantado.
Sobram as fardas, as estampas e as posturas.

No grande cemitério europeu floresceram jarros podres e listas, intermináveis listas, de vítimas.

Nous sommes tous de juifs allemands”. A paisagem da história. O jardim do ideal, lá onde a ordem se transformou em crime.

O olhar tem de ganhar altura, voar sobre os campos massacrados. Temos de ir mais para trás. Restaurar monumentos e consagrá-los ao amor de uma ordem e de uma paz anterior aos crimes da razão absoluta, totalitária. Desenhar uma aliança.

Onde é que se pode procurar? O que é que se consegue encontrar?

Encontramos as páginas dos velhos livros, as coroas de glórias de heróis mais sábios, os ornamentos da civilidades, os desenhos das letras de alfabetos mais nobres.

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Alexandre Melo, “Formosos e não seguros”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº23,  Lisboa, Abril 1999

EM MUNIQUE



Akademie der Bildenden Künste, München


Na última semana do passado mês de Janeiro, estive em Munique para conhecer e discutir, em regime de seminário, o trabalho de cerca de três dezenas de artistas e estudantes da Academia de Belas Artes.

A minha primeira intenção, quanto ao início desta crónica, era começar por falar do estado do tempo e da arquitectura da cidade. Depois pensei que podia fazer a economia da introdução turística, e que valia mais descrever alguns dos trabalhos, projectos e ideias que os estudantes me apresentaram. Porque é em conversas como estas, em sucessivas horas de discussões a respeito das maneiras e da procura das maneiras de colocar, abordar, inventar ou resolver os mais variados problemas, que é mais fácil perceber qual a especificidade, a vitalidade e razão de ser do trabalho, da atitude e do resultado da produção daqueles a quem continuamos a chamar artistas.

A quase todas as profissões (e respectivos profissionais) com que deparamos na nossa vida quotidiana, pedimos a sociedade pede, que analisem e resolvam determinados problemas – por exemplo, alimentar-nos, construir uma ponte ou proteger-nos os pés – relativamente aos quais nos poderão ser propostas diferentes hipóteses, tão variadas quanto as possibilidades técnicas em causa e a imaginação estética e intelectual disponíveis. No entanto, todas essas hipóteses têm de satisfazer, minimamente que seja, uma expectativa e um conjunto, mínimo que seja, de requisitos específicos pré-determinados. Poderíamos falar de função, mas dizer expectativa minimamente pré-determinada é mais abrangente.

Só ao artista nade se pede, em termos de expectativa pré-determinada e objectivada. Pede-se-lhe apenas que faça o que quiser, para que, com o que ele fizer, e chamando-lhe arte, podermos nós fazer o que quisermos. Ao artista, portanto, pede-se tudo. Tudo ou nada? Tudo e nada, isso sim.

Passo a enumerar algumas coisas que me ofereceram em Munique.

Astrid Giers propõe-se encher de fumo alguns dos imensos corredores e incontáveis salas da Academia, iluminando tudo de um modo especial, e convocando o público para, do exterior, observar o efeito através dos vidros das janelas. Vincent Mitzev quer ocupar uma das salas construindo no seu interior uma réplica exacta invertida – de cabeça para baixo – da arquitectura e recheio da própria sala. Jolene König pegou no conjunto de armários individuais, onde um grupo de estudantes guarda os seus haveres e materiais de trabalho, e construiu com eles um “muro” que, visto de um lado, exibe uma monocórdica sucessão geométrica de portas rectangulares e, visto do outro, revela os multifacetados conteúdos dos armários, tal como os encontrou na sala de aulas.

Cristina Gómez Barrio quer fazer um filme com a história da criatura de Frankenstein, que estaria ainda hoje viva, algures num deserto gelado, especulando a respeito da vida, do tempo e do amor. Para a gravação do monólogo, espera obter a voz de Nick Cave. Brigit Kramer envolveu o corpo em balões e meias insufláveis e enche-os de ar, ao ritmo mecânico de uma respiração ofegante, registando o processo em vídeo. Katharina Duer, convidada a apresentar um projecto de arte pública para Villingen-Shcwenningn, uma cidade composta por duas comunidades, entre as quais são frequentes conflitos, propôs a construção, numa praça central, de um ponto de encontro, uma casa em vidro sobre a qual seriam gravados mapas das diferentes zonas da cidade. Vêem: falámos de arquitectura, do estado do tempo, do espaço e da experiência própria de convívio numa maneira de falar em que os modos rotineiros de problematizar os assuntos, ou analisar problemas, dão lugar a outros modos de inventar problemas e problematizar rotinas. Outras maneiras, desafiadoras e revitalizantes de pensar isto ou aquilo, de falar disto ou daquilo: tudo e nada.

Chamam-lhe arte. 


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Alexandre Melo, “Em Munique”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº22,  Lisboa, Março 1999


EM LOS ANGELES


Ed Ruscha, A Particular Kind of Heaven, 1983. Oil on canvas


Agora que penso nisso reparo que Los Angeles é exactamente o sítio onde a Beleza tem sido produzida desde há, pelos menos, mais de meio século. Nem Florença nem Milão, não, Los Angeles, L.A., Beleza com B grande. Não a verdadeira beleza, claro, a verdadeira beleza não existe. A Beleza pura e simplesmente: Hollywood, Beverly Hills, Dinheiro, Sexo, essas coisas com que os forasteiros sonham e à volta das quais L.A. vive. Sabemos, evidentemente, que tudo isto é uma ilusão, uma mentira, uma fraude, nada mais do que a matéria com que são feitos os sonhos.

O que eu quero dizer é que quando começamos a pensar em L.A., começamos a lidar com um estereótipo, um clã de estereótipos. É inevitável. Assim sendo, o melhor é fazê-lo de uma modo aberto, directo. É o que eu tenho tentado fazer com L.A. Provavelmente não quero que a minha relação com a cidade seja crítica ou desconstrutiva. Nem estou certo que ela pudesse sê-lo. E porque é que a minha relação com L.A. deveria ser crítica? Ou porque não?

O que eu julgo ser realmente possível é jogar o jogo das distâncias, pôr em cena um processo de distanciação.

Poderia dizer que este é o tipo de jogo que, pelo menos desde a pop art, tem sido jogado entre a arte – as artes plásticas, a arte contemporânea – e a cultura popular de massas, em geral.

Na sequência de um convite para organizar a exposição anual estudantes de artes plásticas da UCLA – Universidade de Los Angeles – pude apreciar o modo aberto e directo como muitos estudantes lidam com noções de beleza, medo, angústia, glamour, tal como elas se manifestam incorporadas em imagens de rostos, corpos, edifícios, ruas, objectos do quotidiano, heróis cinematográficos. Alguns estarão mais próximos dos estereótipos e dos lugares comuns. Alguns outros são mais elaborados e sofisticados. Alguns enfáticos. Mas, provavelmente, todos nós estamos condenados a parecer demasiado qualquer coisa na nossa relação com os estereótipos que formam o nosso incontornável horizonte cultural. Isto faz parte dos riscos que corremos quando aceitamos jogar o jogo das distâncias.

A maioria dos estudantes com que falei encara o seu trabalho de um modo conceptualmente lúcidos mas descomplexado, pessoal mas comprometido com as imagens do mundo em redor, intenso mas descontraído. Creio que tudo isto faz parte da atmosfera aberta característica da UCLA.

Na minha conversa com os estudantes e as suas obras, no processo de trabalho conducente à organização da exposição, procurei não impor antecipadamente os meus pontos de vista, nem o meu universo pessoal de referências, mas estou certo que não pude evitar as implicações da minha particular relação com a cidade e os seus – meus – estereótipos.

No paragrafo anterior, a palavra mais importante é a palavra “conversa”. Provavelmente, é uma das melhores designações possíveis para o real conteúdo do trabalho de um organizador de exposições ou de um crítico de arte. Por conversa entendo um interminável work in progress. A exposição que inaugurou a 20 de Novembro 1998 na New Wight Gallery da UCLA ou este texto – que é uma tradução parcial adaptada do texto que escrevi para acompanhar a exposição – são momentos de um processo em curso, uma conversa interminável. O jogo continua. Com quantos destes artistas voltarei eu a falar? E em que situações?

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Alexandre Melo, “Em Los Angeles”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº21,  Lisboa, Fevereiro 1999

DEPOIS DA FESTA




João Pedro Vale. Foi Bonita a Festa, pá! 2006.




A mais recentre escultura de grandes dimensões de João Pedro Vale foi elaborada a partir de uma jangada trazida do Noroeste do Brasil para ser transformada e exibida na Galeria Leme em São Paulo. A circunstância torna-se significativa devido à peculiar história das relações entre Portugal e Brasil. A circunstância espacial particular desta apresentação deve ainda ser sublinhada devido à admirável concepção arquitectónica da galeria da autoria de Paulo Mendes da Rocha (Prémio Pritzker deste ano) que criou uma nave longa, estreita e muito alta que parece fazer apelo à passagem de um barco.

A obra de Vale põe me jogo a relação entre Portugal e Brasil, no quadro da revisão multiculturalista do colonialismo e de uma problematização da relação entre práticas culturais populares e eruditas. Esta escultura surge na sequência de outras obras do autor alusivas às viagens marítimas tendo como referência barcos (Bonfim e Barco Negro, 2004) e um farol (Heróis do Mar, 2004).

Vejamos quais as metamorfoses e deslocações a que Vale submete esta jangada (em vez de uma caravela) com a qual, como português, «chega» hoje ao Brasil. Em primeiro lugar a cor. Todo o barco é pintado de vermelho gerando o máximo contraste com os castanhos e amarelos dourados dos adornos: garrafas vazias de cerveja e respectivas tampas. O vermelho e dourado remetem, antes de mais, para uma teatralidade católica e barroca que é marca do legado português no Brasil. A inspiração mais directa vem do Coche dos Oceanos que fez para da embaixada, custeada pelo ouro do Brasil, enviada em 1716 pelo Rei D. João V ao Papa Clemente XI: um coche todo em talha dourada e veludo vermelho do qual, ao passar, eram distribuídas moedas de ouro pelo povo. As mesmas cores remetem para as bandeiras vermelhas que, em Portugal, tiveram grande protagonismo durante a revolução de 1974, que gerou uma grande empatia entre artistas portugueses e brasileiros, ambos submetidos a longos períodos de ditadura.

A peça chama-se Foi Bonita a Festa, Pá, verso de uma canção então censurada no Brasil, do cantor brasileiro Chico Buarque, dedicada à revolução portuguesa. A «Revolução dos Cravos» é ainda assinalada por um arco de cravos vermelhos que se estende ao longo do barco, ao jeito dos arcos que decoram os terreiros de festas populares. A marca das formas de convívio e diversão popular tem a sua expressão mais conseguida no uso, como se fossem decorativas jóias douradas (as moedas de ouro dos pobres), das tampas das garrafas de cerveja Sagres, tradicionalmente usadas também nas brincadeiras de crianças. Garrafas vazias são usadas em cachos distribuídos pelo barco, sugerindo bóias ou a sensação de flutuação inerente ao tempo «depois da festa». Não devemos esquecer que Sagres é o lugar onde terá existido uma escola de navegação que esteve na origem da viagens marítimas e o nome do navio-escola da armada portuguesa.

O jogo entre os materiais «pobres» e os efeitos «ricos» de cor e luz, fazendo eco ao jogo entre luxo e o kitsch, é outra das formas tomadas pelo jogo dialéctico de contradições que estruturam esta escultura e, de resto, o conjunto da obra do autor.

O mesmo tipo de deslocações formais e simbólicas realizadas a partir de objectos relacionados com a expansão colonial está patente num conjunto de 13 esculturas de menores dimensões apresentadas na galeria Layr: Wuestenhagen, em Viena. As referências são objectos da colecção do Imperador Maximiliano II, hoje guardados no Kunstkammer do Kunsthistorisches Museum de Viena. Produto da curiosidade antropológica e das fantasias associadas à exploração colonial, estes objectos pretendiam ilustrar o exotismo de paragens distantes. Portugal foi um dos principais fornecedores devido à presença em Lisboa da Rainha Catarina de Áustria e à acção de um «dealer»/«advisor» que funcionava como espião do Imperador. Para alimentar uma procura crescente os fornecedores inventaram seres estranhos como o unicórnio (cujo adorno era afinal um bico de Narval) ou o «homem silvestre» (escravos africanos cobertos de pêlos de cabra para serem exibidos como raridades).

Esta invenção cruel serve de referência a uma das peças mais conseguidas da exposição: Ecce Homo. A forma de uma taça transforma-se num corpo exótico, metade tronco de cola termofusível, metade peruca afro-disco de Carnaval, que se equilibra sobre os cornos invertidos de um capacete viking de Carnaval, forrado de cabedal e tachas douradas, e uma ponta de chapéu de chuva. Um colar de pingentes de imitação de tartaruga e um penacho com penas de galo chinês completam o conjunto. Nesta exposição, a multiplicação das invenções formais e a combinação dos mais improváveis materiais geram uma irrisão do exotismo que é acompanhada de uma paródia às fantasias sexuais colonialistas com acentuado valor desmistificador.

No conjunto das suas peças mais recentes, Vale aprofunda um trabalho de citação e metamorfose de objectos pré-existentes através do recurso a materiais pobres e inusitados que sabotam a distinção entre o belo e o horrível, a humildade e a sofisticação. A valorização das formas populares de criatividade é posta ao serviço de uma análise das fantasias colonialistas em que desmitificação das ficções de dominação abre o caminho a uma pluralidade de possibilidades igualitárias de invenção híbrida de novos jogos plásticos e simbólicos.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa.



QUANDO VALE A LETRA Z?







Doglas Gordon e Philippe Parreno. Zidane, A Portrait of XXIst Century. 2006.




Uma atitude optimista assume que todos queremos a letra A, primeira e inaugural: «Top of the list, king of the hill / A number one» (New York, New York). Lembro-me de ouvir Laurie Anderson dizer que o problema era todos quererem ser 1 e ninguém querer ser o 0, o que, na melhor das hipóteses, é uma maneira tristonha de não dizer que o problema é haver quem não queira ser 1 e não se importe de ser 0. Mas isto é uma questão política.

Falei em A porque quero falar em Z. A última letra do alfabeto tem o acréscimo de potência que lhe advém de, sendo uma última oportunidade, concentrar a energia do ajuste de todas as contas que ficaram por fazer desde o já longínquo empalidecimento da auro do A.

Houve um tempo risonho em que as tardes de domingo da televisão eram animadas pelas proezas de Douglas Fairbanks, o senhor da espada que desenhou o mais belo Z da história do cinema e da Humanidade. Falo de The Mark of Zorro (1920) e Don Q, Son of Zorro (1925).

Doug é o modelo positivo do herói prometido à glória do século XX que então nascia em Hollywood: «Ninguém conseguiu retomar a frescura, o sentido de um perpétuo narcisismo, inocente e adolescente, que Douglas Fairbanks trouxe para os ecrãs» (Richard Schickel, His Picture in the Papers, Charterhouse, New York, 1973). Tudo era apenas alegria e «tudo era apenas a capacidade de usar o corpo inteiro para manifestar carácter, atitude e emoção» (Jeanine Basinger, Silent Stars, Knopf, New York, 1999).

Quase cem anos depois os artistas plásticos Douglas Gordon e Philippe Parreno realizaram sob o signo da letra Z um filme a que deram o subtítulo «A Portrait of the XXIst Century» (Um retrato do século XXI).

Vi pela primeira vez este filme em Maio em casa de Douglas Gordon em Nova Iorque. Conversámos e resolvi esperar para o ver ao vivo, em Junho, no magnífico estádio de futebol de Basel. Entretanto, fui ouvindo opiniões: em Cannes, Jean-Michel Frodon, director dos «Cahiers du Cinéma», dizia-me, sem má vontade, que o filme não se aguentava enquanto «cinema». Por fim tive ainda que esperar pela diluição dos efeitos do Mundial de Futebol, já que o Z deste filme é o Z de Zinédine Zidane.

Os autores filmaram com 17 câmaras (35mm, alta definição) o corpo de ZZ durante toda a sua prestação num jogo do Real Madrid realizado em Madrid a contar para o campeonato nacional de Espanha.

O filme é uma das primeiras obras-primas do novo século, fundamental para o questionamento do actual devir das práticas artísticas, e desloca a obra de Douglas Gordon para o mais elevado nível de ambição.
Registe-se o cruzamento entre a história da artes visuais e do cinema, entre as referências eruditas e o espectáculo popular de massas, entre registo documental e narrativo, entre filme e televisão. Note-se a experimentação técnica em termos de filmagem, montagem e banda sonora. As possibilidades de análise são imensas.

Começo pelo subtítulo que tem um duplo significado e permite colocar duas questões: como é que se pode, se é que se pode, fazer o retrato da realidade de hoje? Como é que se pode, se é que se pode, fazer, hoje, o retrato de alguém?

O filme coloca a hipótese de ser, ele próprio, um retrato do século XXI (intenção que se torna clara no uso do texto e nas imagens do intervalo) e leva-nos a perguntar se é possível produzir imagens eleitas capazes de elaborar um ponto de vista específico, autoral, sobre um mundo que é já ele próprio conjunto de imagens. (A mesma questão é colocada de uma outra maneira e com uma outra resposta, que analisaremos noutra ocasião, no admirável filme Diários da Bósnia, de Joaquim Sapinho.

O futebol faz aqui o papel de mundo: o real, como se costuma dizer. Para quem gosta de futebol este filme é a realização de um sonho que todos alimentamos sempre que vemos, ao vivo, um jogo de futebol. Vivos na moldura do estádio à volta do relvado não podemos ver, em rigor, nem rostos, nem sorrisos, nem suor nem quase gestos. Também não podemos ver o todo porque não há todo se não o que se dispersa pelos quatros cantos do horizonte onde as tentações do olhar nos fazem andar quase sempre um pouco atrasados atrás da bola, que afinal nem se vê bem se entra ou não entra. Um jogo de futebol ao vivo é menos uma experiência visual do que uma experiência sensorial e social total. Um jogo de futebol ao vivo é como a vida ao vivo. Nunca se pode ver nem perceber, rigorosamente, nem tudo nem nada.

Sentimos o que nos calha com o fulgor possível, pensamos um pouco e adaptamo-nos mais ou menos ao movimento dos corpos nos tempos que nos cabe.

O contrário destas impossibilidades (quem tem a sua positiva contrapartida de euforias comunitárias no que se passa a propósito do que se passa no relvado) seria uma experiência da omnividência que só as câmaras permitem simular. Este filme é uma concretização desta utopia disfórica através da focalização exclusiva do corpo de um jogador. O processo de selecção realizado através da filmagem e montagem produz um fio condutor: o corpo de Zidane, impossível herói de uma improvável narrativa.

Chegamos aqui à segunda questão: a possibilidade contemporânea do retrato, na acepção que a tradição artística lhe atribui de representação unívoca e pacífica de um sujeito que assim se consagra. Douglas Gordon escolhe o seu herói, como se impunha, num dos espectáculos que mais fascinam as multidões de hoje: o futebol.

Sobre a questão do herói, cito um breve texto inédito escrito por Douglas Gordon aquando da sua passagem por Lisboa, em Junho passado:
«Nothing existed before ‘Adam’ and nothing after. No future, no past, heroes where always what was needed ‘how’. Call Superman ‘now’. Not yesterday, too late. Not tomorrow, too need...». («Nada existiu antes de ‘Adão’ nem depois. Nem futuro, nem passado, heróis sempre foram o que foi necessário ‘agora’. Chamem o Super-homem ‘agora’. Não ontem, é demasiado tarde. Não amanhã, não será preciso...»).

Hoje, como o filme nos mostra, o retrato só pode ser um retrato em movimento, os pontos de vista têm de ser muitíssimos e o retratado está sempre no meio de uma parada de gentes e acontecimentos. O sujeito precisa de ser isolado, para que o retrato tenha sentido enquanto retrato, mas a operação faz o retrato perder o sentido que só o contexto lhe daria. O sentido do retrato de um ser individual acaba por ser a falta do que perder para poder ser retratado, isolado. Parece um paradoxo mas parece-se ainda mais com o estatuto contemporâneo da identidade individual.

A forma como Zidane é recortado e separado do contexto do jogo, cujas peripécias se tornam quase incompreensíveis, conjuga-se com o seu comportamento glacial, como que indiferentes ao que o rodeia, sem risos, lágrimas ou afeições comunicativas. Vendo-o arrastar as chuteiras no relvado, recordamos a figura radical e solitária do matador, sozinho em frente do touro ou, segundo alguns especialistas, da morte. Reparando na indiferença como que se afasta ou desvia o olhar do pólo de acção em que se decide o destino da jogado que ele próprio incitou, mas onde já não tem nada a fazer, lembramos o cowboy solitário que se afasta em direcção ao deserto abandonando a festa no povoado que ajudou a salvar. Imaginamos um herói trágico que vence batalhas mas não se consegue salvar. Fim do jogo. Fim de carreira. Fim. Eis o homem que perdeu. A conclusão deste filme, confirmada pela violência do gesto conclusivo da carreira de Zidane, desenha a terrível imagem de um anti-herói contemporâneo: um herói negativo para o século XXI.

Por esta razão e por todas as outras razões este texto é dedicado a Ronaldinho Gaúcho e às rulotes da Catedral.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa.


VOCÊS SABEM LÁ



Ang Lee. O Segredo de Brokeback Mountain. 2005.



Há pouco tempo vi na televisão um documentário realizado durante o Festival de Cinema de San Sebastian de 1972 em que se incluía uma rara entrevista com Howard Hawks. A entrevista tinha um lugar a bordo de um pequeno barco, as perguntas tinham a saudosa candura do cinema amador, e as respostas, como seria de esperar, tinham a grandiosa inocência do grande cinema.

Quando perguntaram a Hawks quais os filmes que mais tinha gostado de fazer, ele respondeu qualquer coisa como isto: «Os filmes que mais gostei de fazer: os ‘westerns’ com John Wayne. Eu só tinha de lhe explicar o que queria que ele fizesse. Ele fazia, e eu filmava».

Há alguns anos, uma perversa distância horária entre a aula da tarde e a aula da noite do meu horário de professor deixou-me o tempo exacto para, ao longo do semestre, ver – sempre na companhia de pipocas – uma série de filmes de uma hora de Lone Star Productions em que pude apreender a mais elementar gramática do «western» e apreciar o nascimento de John Wayne antes de ele se tornar o John Wayne histórico.

Nesses filmes preciosos, com títulos como Neath the Arizona Skies, Blue Steel ou Riders of Destiny, o jovem John Wayne dá o corpo a uma figuração masculina que veicula, dir-se-ia que com uma absoluta naturalidade, a imagem da pureza e inocência original do novo homem do novo Oeste, que é também, para o efeito, o novo Ocidente, ou, se quiserem, a nova Europa, isto é, a América. Claro que a naturalidade de que falo não é a da Natureza, que é tudo menos natural, mas sim a do cinema, que é a única natureza que nos foi dado produzir e, portanto, conhecer.

O corpo de John Wayne foi o portador de um olhar, um sorriso, uma pose que tinham ao mesmo tempo a evidência de uma encarnação do bem e de uma plena presença masculina («How many times do I gotta tell you, I don’t acta t all, I re-act»). A celebração desse John Wayne é feita de modo magistral pela escritora americana Joan Didion num texto comovente, intitulado «John Wayne: A Love Song» (1965), incluído no livro Slouching Towards Bethlehem, uma das obras máximas da autora. Didion conta como ficou para sempre à espera que um homem prometesse construir-lhe uma casa «at the bend in the river where the cottonwoods grow» e cita Raoul Walsh com a sintética eloquência que o caracteriza: «Dammit. The son of a bitch looked like a man».

Estavam criadas as bases para a construção da figura mítica que o cinema de Walsh, Ford e Hawks celebraram e consagraram: o «cowboy», uma das figuras mais fortes do imaginário cultural do século XX. Um estereótipo é antes de mais uma ideia de bem e um ideal de beleza modelados sob uma forma que permite gerar processos de identificação de massas. Um exemplo privilegiado da eficácia genérica da imagem do «cowboy» é a famosa campanha publicitária da Marlboro centrada na figura do «Marlboro Man». Através de anúncios cada vez mais depurados, em que foram deixando de existir quaisquer palavras ou mensagens explicitas, a Marlboro limitou-se a fazer deslizar o seu nome da marca para dentro de um universo que, através das mais simples imagens de paisagens e homens a cavalo, continha a vastidão de um mundo inteiro, o mundo do «cowboy».

São estas imagens da publicação da Marlboro que, nos anos 80, vão ser apropriadas por Richard Prince, um dos mais importantes artistas plásticos americanos do nosso tempo. O apropriacionismo é uma tendência da prática artística contemporânea que consiste em usar algo já existente, com alterações mínimas, mas apresentando-o de um modo diferente, num contexto diferente, abrindo assim um espaço de multiplicação, subversão ou inversão de sentidos.

«A imagem do ‘cowboy’ é tão familiar na iconologia americana que se tornou quase invisível devido à sua banalização. Ao mesmo tempo, o ‘cowboy’ é uma das mais sagradas e teatrais (‘masklike’) figuras culturais. No sentido cultural e geográfico, o ‘cowboy’ é uma imagem de ‘endurance’ e um símbolo, um estereótipo do cinema americano. É ao mesmo tempo o vagabundo (‘wanderer’) e o símbolo mítico da mobilidade social» (Rosetta Brooks, in Catálogo Richard Prince, Whitney Museum). Quando Prince reenquadra e refotografa as imagens dos anúncios da Marlboro e as apresenta no contexto do mundo da arte contemporânea, recria uma distância suplementar que permite um novo olhar. As imagens do mundo do «cowboy» são depois despidas de todas as suas especificações mais particulares, mais fechadas ou mais vinculadas e deslocadas para um terreno de indeterminação dos sentidos que abre, por um lado, para a nostalgia dos desejos de pureza original e, por outro, para todas as possibilidades de novas conexões e conotações.

Pensa-se por vezes que um estereótipo é uma entidade fechada. Foi talvez essa crença que tornou o «cowboy», num dado momento, um alvo preferencial das caricaturas típicas da propaganda antiamericana. Mas um estereótipo é o representante de um mundo inteiro, e, por isso, a dinâmica de liberação dos sentidos não se pode fazer contra o estereótipo, mas sim abrindo no coração do estereótipo um espaço liso que lhe devolve a tensão originária e o horizonte infinito do que nos habituámos a chamar liberdade. Se falamos de horizontes de liberdade não pode haver evocação mais feliz do que a do «cowboy».

Brokeback Mountain é, por certo, o filme do ano, uma majestosa história de amor e uma obra-prima do melodrama. É também uma lição de moral e uma demonstração do anacronismo cultural dos grandes inquisidores e falsos liberais, que continuam a promover a homofobia e a discriminação com base nas preferências sexuais. Mas Brokeback Mountain é, sobretudo, a demonstração da capacidade do grande cinema para transportar toda a carga mítica da sua tradição e, ao mesmo tempo, abrir espaços infinitos para a imaginação das histórias que hão-de dar novos destinos aos nossos heróis eternos. É a celebração do cinema como triunfo da liberdade que pode unir num mesmo abraço Jake Gyllenhaal, Heath Ledger, John Wayne, Dean Martin e todos os «cowboys» do mundo.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 25 de Março 2006

UM HOMEM E UMA MULHER



João Pedro Rodrigues. Odete. 2005.



É muito desagradável deixar cair coisas no chão. Em determinadas circunstâncias, a queda de uma chávena de chá meio cheia sobre o soalho de uma sala pode ter consequências susceptíveis de comprometer de forma definitiva uma carreira mundana.

Imaginem agora que, não sabemos por quantos momentos, sustentamos entre as nossas mãos um coração. O coração de alguém. O perigo é imenso. Um coração é um objecto vivo e muito sensível. Deixar cair um coração, partir um coração, é por certo o maior crime que contra a humanidade se pode cometer, e não é nada fácil encontrar quem o sabia redimir.

Numa das sequências mais belas e mais terríveis de toda a história do cinema (não sei se devo acrescentar português), Diogo Dória atira violentamente para o chão o vaso de vidro que contém o coração de Francisca. Falo de Francisca, de Manoel de Oliveira, inventada a partir de Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís, e de um trágica história de amor do final do século XIX.

Francisca é o século XIX ou a pré-história do cinema: o cinema que havia, sempre houve, na pintura e no romance, antes de haver cinema. Entre Francisca e Odete está o século XX, ou seja, a histórica do cinema. É esta a matéria-prima, a paixão e a sabedoria de João Pedro Rodrigues: o conhecimento apaixonado da história do cinema. É esta a matéria-prima, a paixão e a sabedoria de João Pedro Rodrigues: o conhecimento apaixonado da história do cinema. Histórias de vida, sexo, luz, morte e amor. É por isso que João Pedro Rodrigues é um dos mais fortes e originais autores emergentes no panorama do cinema contemporâneo. Odete é a Francisca do século XXI.

Esta é a história de um coração partido e de um coração posto em estado de desassossego. Dois incidentes iniciais. Pedro, o namorado de Rui, morre, ou parece morrer, num acidente de automóvel. O namorado de Odete mostra desagrado em relação à hipótese de ter um filho. A obsessão de Odete com a ideia de ser mãe atira a protagonista para uma errância que servirá de fio condutor à narrativa.

A deriva de Odete é movia pela ideia de maternidade. Um tema recorrente sob formas que valeria a pena comparar em vários filmes portugueses recentes, como Glória, de Manuela Viegas, ou A Mulher Policia, de Joaquim Sapinho.

Veja-se a relação de Odete com a mãe (Teresa Madruga) de Pedro, cuja evolução nos dá a chave dos pontos de viragem da narrativas. As mães acabam sempre por se entender.

A deriva de Rui não é uma deriva e não é motivada por nenhuma ideia. Porque um coração partido não tem ideias. Não sabe bem tem para onde ir e só pode ficar onde está, no chão, à espera que alguma coisa lhe aconteça.

A morte de Pedro é apenas um pretexto ficcional. No cinema, como na vida, a morte não existe, só existe a vida. O problema é que a vida não existe por si só. Só existe antes e depois da morte de alguém.

O coração de Nuno Gil (Rui) é o centro, o campo de batalha e objectivo deste filme, ou, pelo menos, deste texto. Ana Cristina de Oliveira (Odete) vai fazer com que aconteçam coisas, que é a sua grande especialidade pessoal, mesmo quando não está num filme. Escrevo aqui os nomes dos actores antes do nome das personagens porque no cinema de João Pedro Rodrigues os actores, para além de intérpretes de personagens, são, antes de mais, os portadores dos seus próprios corpos. Reveja-se o caso exemplar de Ricardo Meneses em O Fantasma.

O objectivo de Odete é o mesmo de qualquer pessoa saudável e ambiciosa. Encontrar um corpo, ter um corpo, que seja ao mesmo tempo o seu corpo, um filho e um amante. Deixo ao vosso critério discernir se quando falo do seu corpo me refiro aqui ao corpo próprio, ao corpo de alguém que se tem, se é que se pode ter alguém (ter um filho, possuir um corpo), ou a ambos.

É um programa óbvio, embora não seja fácil de concretizar. Não é executável, mas é praticável. Não é um programa na acepção de plano susceptível de ser executado, mas no sentido de um dispositivo de referência susceptível de gerar práticas, exercícios, acontecimentos (à maneira de Deleuze). Um campo de acção, como seja por exemplo um corpo, é, neste sentido, infinito.

Odete, sendo um filme e revelando o entendimento das possibilidades da vida que só o cinema proporciona, vai demonstrar de um modo implacável que por causa do desejo e do amor todas as impossibilidades se tornam plausíveis. As cores do arco-íris são apenas a expressão do triunfo da luz sobre um céu carregado de nuvens. A expressão de uma eterna aliança. Em volta de duas alianças circulam as metamorfoses dos sentimentos desta história, que se desequilibra entre a assustadora efemeridade e a potencial eternidade de qualquer aliança amorosa.

Voltamos à diferença entre o século XIX e o século XXI. Conjugando um romantismo radical e pós-humano com a clareza do nihilismo optimista do jovem século. Odete não é uma tragédia. Também não é um Breakfast at Tiffany’s. É um «Later Dinner at Starbucks». Uma comédia dramática a que João Pedro Rodrigues teve a generosidade de oferecer um «happy end»: ou seja, um final tão feliz quanto possível.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 11 de Fevereiro 2006


CARNE DE SOL



Adriana Varejão. Parede com Incisões à la Fontana. 2002.
Adriana Varejão. Linda da Lapa. 2002.




A primeira vez que Marcantonio (um amigo e galerista histórico de Adriana, pioneiro da divulgação de arte contemporânea brasileira no mundo) me mostrou trabalhos de Adriana Varejão pareceu-me, e não sei se ousei dizê-lo, tal era o seu entusiasmo, que eram excessivos. Demasiado. Barrocos, pós-coloniais, decorativos, expressivos, viscerais, antidecorativos, sexuais, multiculturais: demasiado. Parecia-me que o trabalho de Adriana correspondia de modo demasiado perfeito aos estereótipos da minha visão do Brasil, que, então, ainda não conhecia. Depois viria a descobrir que o estereótipo era meu e era eu o responsável pela sua projecção sobra a obra de Adriana. É um erro muito comum.

A primeira vez que encontrei Adriana Varejão voltei a sentir uma impressão de excesso, mas desta vez era uma espécie de excesso de doçura. Para me poupar o trabalho de procurar uma palavra que acabaria por se revelar ainda menos apropriada, chama doçura à indeterminável qualidade de sedução que Adriana transporta no olhar. Esta paradoxal sensação de excesso haveria de longa e lentamente alastrar, até se dissipar em tempos de convívio que se desdobraram por botequins do Rio, lugares de música e dança, samba, choro e outros coisas de que não retive o nome, uma casa em festa com vista sobre Ipanema, uma tempestade tropical na floresta carioca, um estúdio cheio de saunas aberto para um jardim, um mega-evento em Inhotim. As qualidades do olhar, portanto.

Alguém disse, a propósito das pessoas, que os olhos são janelas da alma, ou coisa que o valha. Tratava-se, por certo, de um mentiroso, se não mesmo um criminoso, que com este estratagema retórico visou e provavelmente conseguiu obter ganhos ilícitos. Os olhos só revelam a alma dos cães, até porque as pessoas não têm alma. Quando se pensa dizer ou se diz a alguém que no fundo dos seus olhos queremos ver ou estamos a ver um mundo inteiro, o mundo inteiro, isto é apenas o princípio de um grande erro. No fundo dos olhos de quem quer que seja não há nada e à superfície há apenas o reflexo do nosso olhar. Cair neste equívoco é mais do que um erro, é um perigo.

Toda a riqueza, a felicidade e o infinito da vida começa, está e nunca acaba dos olhos para fora e não dos olhos para dentro. Afinal, o que é que está do lado de fora de um olhar? O mundo inteiro, isto é apenas o princípio de um grande erro. No fundo dos olhos de quem quer que seja não há nada e à superfície há apenas o reflexo do nosso olhar. Cair neste equívoco é mais do que um erro, é um perigo.

A partir do ponto de vista de Adriana Varejão, dos olhos para fora, posso deixar de projectar os meus estereótipos sobre o Brasil, a arte brasileira, ou a arte, a expressão ou barroco em geral.

Um corpo não é um saco de lixo psicológico para dentro do qual se espreita através dos olhos ou de qualquer outro improvável orifício. O corpo é carne. Nalguns casos mais milagrosos, o corpo é carne de sol, que é carne mais saborosa do mundo.

Falemos de Linda da Lapa e de Linda do Rosário (2004), duas esculturas agora apresentadas no CCB (numa mostra antes vista na Fondation Cartier, em Paris) que, tendo origem na anterior série dos «charques», fazem referência ao desabamento, em 2002, no Rio, de um hotel vocacionado para encontros sexuais.

O espaço revestido de azulejos que estas obras nos sugerem não é um espaço virtual, neutro, separados do mundo. É um espaço que nos remete para situações concretas: um talho, um bar, uma cozinha, uma casa de banho, um hospital, ou, aqui, um hotel. O espaço social, o espaço doméstico e o espaço íntimo fazem, assim, a sua entrada no espaço da arte. São espaços em que o corpo deve estar contido e protegido, do mesmo modo que os azulejos protegem uma parede e esta, por sua vez, circunscreve a estrutura de um edifício. O objectivo seria manter o corpo sob controlo. Mas este objectivo é inviável.

O trabalho de Adriana Varejão demonstra que não é possível ocultar o corpo. Em todos estes trabalhos, o rebordo lateral das superfícies pintadas toma a forma de uma larga massa de carne que extravasa todos os limites. A obra surge como uma imensa e monstruosa sanduíche de carne em que as paredes ocupam a posição das fatias de pão. A extraordinária presença desta massa de carne é o verdadeiro acontecimento maior destes trabalhos. O acontecimento em que se inscreve o nosso espanto e a nossa excitação, o lugar do escândalo e do fascínio. O que é esta carne? De onde vem esta carne e o que está aqui a fazer?

A carne é, antes de mais, a carne de um corpo. Tal como sucede nas pinturas com fendas, a autora inscreve o corpo nos seus trabalhos, não sob as formas figurativas tradicionais, mas do modo mais directo e ostensivo: a exibição da incontrolável explosão da carne.

A demarcação em relação aos estereótipos de representação do corpo toma frequentemente, na obra de Adriana Varejão, a forma de desconstrução dos modelos colonialistas de representação dos povos subjugados. Neste sentido, a carne é também, num sentido metafórico, a carne de uma comunidade social específica: as populações subjugadas do Brasil colonial e contemporâneo e as correspondentes formas culturais populares, em que a expressão corporal tem um papel destacado (dança, música, Carnaval). A presença da carne torna-se, assim, a expressão da espessura de uma experiência histórica.

Finalmente, a carne é ainda – e inscrevem-se aqui as especificidades femininas ou feministas da obra da autora – a expressão da irredutibilidade de uma memória e de uma experiência pessoais, biográficas, através das quais se manifesta a autonomia de uma afirmação autoral.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 12 de Novembro 2005, p. 54-55