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UM HOMEM E UMA MULHER



João Pedro Rodrigues. Odete. 2005.



É muito desagradável deixar cair coisas no chão. Em determinadas circunstâncias, a queda de uma chávena de chá meio cheia sobre o soalho de uma sala pode ter consequências susceptíveis de comprometer de forma definitiva uma carreira mundana.

Imaginem agora que, não sabemos por quantos momentos, sustentamos entre as nossas mãos um coração. O coração de alguém. O perigo é imenso. Um coração é um objecto vivo e muito sensível. Deixar cair um coração, partir um coração, é por certo o maior crime que contra a humanidade se pode cometer, e não é nada fácil encontrar quem o sabia redimir.

Numa das sequências mais belas e mais terríveis de toda a história do cinema (não sei se devo acrescentar português), Diogo Dória atira violentamente para o chão o vaso de vidro que contém o coração de Francisca. Falo de Francisca, de Manoel de Oliveira, inventada a partir de Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís, e de um trágica história de amor do final do século XIX.

Francisca é o século XIX ou a pré-história do cinema: o cinema que havia, sempre houve, na pintura e no romance, antes de haver cinema. Entre Francisca e Odete está o século XX, ou seja, a histórica do cinema. É esta a matéria-prima, a paixão e a sabedoria de João Pedro Rodrigues: o conhecimento apaixonado da história do cinema. É esta a matéria-prima, a paixão e a sabedoria de João Pedro Rodrigues: o conhecimento apaixonado da história do cinema. Histórias de vida, sexo, luz, morte e amor. É por isso que João Pedro Rodrigues é um dos mais fortes e originais autores emergentes no panorama do cinema contemporâneo. Odete é a Francisca do século XXI.

Esta é a história de um coração partido e de um coração posto em estado de desassossego. Dois incidentes iniciais. Pedro, o namorado de Rui, morre, ou parece morrer, num acidente de automóvel. O namorado de Odete mostra desagrado em relação à hipótese de ter um filho. A obsessão de Odete com a ideia de ser mãe atira a protagonista para uma errância que servirá de fio condutor à narrativa.

A deriva de Odete é movia pela ideia de maternidade. Um tema recorrente sob formas que valeria a pena comparar em vários filmes portugueses recentes, como Glória, de Manuela Viegas, ou A Mulher Policia, de Joaquim Sapinho.

Veja-se a relação de Odete com a mãe (Teresa Madruga) de Pedro, cuja evolução nos dá a chave dos pontos de viragem da narrativas. As mães acabam sempre por se entender.

A deriva de Rui não é uma deriva e não é motivada por nenhuma ideia. Porque um coração partido não tem ideias. Não sabe bem tem para onde ir e só pode ficar onde está, no chão, à espera que alguma coisa lhe aconteça.

A morte de Pedro é apenas um pretexto ficcional. No cinema, como na vida, a morte não existe, só existe a vida. O problema é que a vida não existe por si só. Só existe antes e depois da morte de alguém.

O coração de Nuno Gil (Rui) é o centro, o campo de batalha e objectivo deste filme, ou, pelo menos, deste texto. Ana Cristina de Oliveira (Odete) vai fazer com que aconteçam coisas, que é a sua grande especialidade pessoal, mesmo quando não está num filme. Escrevo aqui os nomes dos actores antes do nome das personagens porque no cinema de João Pedro Rodrigues os actores, para além de intérpretes de personagens, são, antes de mais, os portadores dos seus próprios corpos. Reveja-se o caso exemplar de Ricardo Meneses em O Fantasma.

O objectivo de Odete é o mesmo de qualquer pessoa saudável e ambiciosa. Encontrar um corpo, ter um corpo, que seja ao mesmo tempo o seu corpo, um filho e um amante. Deixo ao vosso critério discernir se quando falo do seu corpo me refiro aqui ao corpo próprio, ao corpo de alguém que se tem, se é que se pode ter alguém (ter um filho, possuir um corpo), ou a ambos.

É um programa óbvio, embora não seja fácil de concretizar. Não é executável, mas é praticável. Não é um programa na acepção de plano susceptível de ser executado, mas no sentido de um dispositivo de referência susceptível de gerar práticas, exercícios, acontecimentos (à maneira de Deleuze). Um campo de acção, como seja por exemplo um corpo, é, neste sentido, infinito.

Odete, sendo um filme e revelando o entendimento das possibilidades da vida que só o cinema proporciona, vai demonstrar de um modo implacável que por causa do desejo e do amor todas as impossibilidades se tornam plausíveis. As cores do arco-íris são apenas a expressão do triunfo da luz sobre um céu carregado de nuvens. A expressão de uma eterna aliança. Em volta de duas alianças circulam as metamorfoses dos sentimentos desta história, que se desequilibra entre a assustadora efemeridade e a potencial eternidade de qualquer aliança amorosa.

Voltamos à diferença entre o século XIX e o século XXI. Conjugando um romantismo radical e pós-humano com a clareza do nihilismo optimista do jovem século. Odete não é uma tragédia. Também não é um Breakfast at Tiffany’s. É um «Later Dinner at Starbucks». Uma comédia dramática a que João Pedro Rodrigues teve a generosidade de oferecer um «happy end»: ou seja, um final tão feliz quanto possível.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 11 de Fevereiro 2006


À PROVA DE RESSURREIÇÃO?




Deste Lado da Ressurreição. Joaquim Sapinho.


“A graça existe apenas, portanto, onde se reflete a ressurreição.”
(Karl Barth)

“ … e até os mortos vão ao nosso lado.”
(Vozes ao alto, letra de José Homes Ferreira e música de Fernando Lopes-Graça)

Um dos filmes mais importantes do século XXI chama-se Deste Lado da Ressurreição (Joaquim Sapinho, 2011). Levou tanto tempo a fazer quanto este jovem século. Não sei se é dos melhores. Quem sou eu, que cada vez tenho mais dificuldade em encontrar o pior, para saber o que é melhor. Direi apenas que o filme, tal como é, não poderia ter sido feito sem o ator Pedro Sousa.
No entanto, há uma ideia que resulta de algumas dezenas de horas de conversa com Joaquim Sapinho. É uma ideia simples: só há vida (a morte não é coisa que haja e por isso não é assunto ). No entanto, a vida, que é tudo o que há (e por isso também não chega a ser “um” assunto), é apenas o que há deste lado de uma linha inexistente que nos separa de um outro lado a respeito do qual nada pode ser dito, nem sequer que seja um lado e muito menos que seja outro. Tudo se faz e se diz em função desta impossibilidade. É este o lugar da palavra ressurreição. Há artistas (por exemplo Robert Bresson e haverão poucos mais exemplos) que tratam este assunto. Que assunto? Não se sabe.
Um autor chamado Karl Barth explica isto muito bem: “ Aquilo a que os homens, deste lado da ressurreição, chamam ‘Deus’ é, de um modo muito característico, não Deus. O ‘Deus’ deles não redime a sua criação, mas permite o livre curso da humana ausência de retidão; não se declara a si mesmo como Deus, mas é a plena afirmação do mundo e dos homens tais como são. Isto é intolerável, porque, apesar das elevadas honras que lhe oferecemos para seu engrandecimento, ele é, de facto,  ‘Não-Deus’. O grito de revolta contra um tal deus está mais perto da verdade do que os sofismas com que os homens tentam justificá-lo. Só porque não têm nada melhor, só porque lhes falta a coragem do desespero é que a generalidade dos homens, deste lado da ressurreição, não cai no mais ostensivo ateísmo” (A Epístola aos Romanos, 1919).
 Há quem prefira a miséria que por aí se vê ao esplendor da desesperança, mas importaria não confundir a resignação com a complacência.
De modo inesperado, o tema da ressurreição surge como traço de união entre algumas das minhas mais intensas experiências artísticas deste ano. Na Art Unlimited, uma exposição paralela (este ano comissariada por Gianni Jetzer) à Feira de Arte de Basileia, onde se mostram obras de artistas representados por galerias participantes, Douglas Gordon apresentou Henry Rebel (2011). Numa sala escura dois grandes ecrãs equilibram-se, em cruz, um em cima do outro. Antes de passar à explicação vamos recuar um pouco.
Cheguei mesmo em cima da hora a uma projecção matinal do Festival de Cannes 2011 para ver Restless (Gus Van Sant, 2011). Em Cannes é difícil conjugar o horário da noite com o da manhã. A consequência foi não ter prestado a devida atenção aos credits de abertura. Por isso me senti acossado (haunted, como o realizador pretendia), ao longo do filme,  pela circunstância de reconhecer um olhar (ver uns olhos conhecidos) mas não os conseguir identificar (onde e de quem?). Os credits finais trouxeram a resposta. Soube com exactidão que tinha visto aqueles olhos num dos mais belos screen tests de Andy Warhol: o de Dennis Hopper. O rapaz chama-se Henry Hopper e tem, como deve ser, os olhos do pai.
Não sabia que Douglas Gordon viria a convidar Henri Hopper para uma obra integrada no projeto Rebel, iniciado por James Franco.
Douglas contou-me que estava um pouco nervoso quando convidou Henry para ir a Berlim falar do projeto. Na dúvida foi esperá-lo ao aeroporto mas ficou a dúvida : vou cumprimentá-lo ou beijá-lo, tratá-lo por tu ou por você? Henry aproximou-se, poisou a mala, abraçou-o e disse que era a segunda vez que estava em Berlim. Nunca se esqueceria da primeira vez porque foi em Berlim que recebeu a notícia da morte do pai: o pai.
Henry Rebel é uma dupla projecção, 1h30 em loop. As imagens registam o que podemos considerar duas performances, a solo, intensas como se de cortar a respiração (prefiro dizer que são hipnotizadoras e sufocantes, como os afundamentos e os exercícios carnais do protagonista de Deste Lado da Ressurreição). O ponto de partida são duas sequências não filmadas do guião de Rebel Without a Cause (Nicholas Ray,1955) envolvendo corpos, fogo e chicote. Para que não se pense que estou a contribuir para o altar habitual devo dizer que   naquela história o meu favorito não é James Dean, é Sal Mineo.
Não vou especular sobre o que Henry Hopper, em concreto, faz ou deixa de fazer. Só quero chamar a atenção para o que (em nome do ...) o corpo dele faz por todos os acima mencionados que já não estão nem ali nem entre nós, e por nós próprios que, bem vistas as coisas, também não estamos aqui.
Ainda em Basileia, na Fundação Beyeler , uma exposição que é a obra máxima de Phillipe Parreno. Marilyn Monroe deixou escrita em papel timbrado do Hotel Waldorf Astoria uma descrição do seu quarto no hotel.
Philippe Parreno, num filme intitulado Marilyn (2012) permite-nos, em plano-sequência subjetivo, ver aquilo que viram os olhos de Marilyn ao percorrer o quarto do hotel e ouvir o texto dita pela voz de Marilyn (não há nenhuma dúvida quanto ao facto de ser mesmo a voz de Marilyn, a voz do Happy Birthday, Mr President ... que todos ouvimos ao lado de JFK). Para eliminar qualquer derradeira dúvida, Parreno mostra-nos a caneta de Marilyn escrevendo o texto acima referido com a caligrafia de Marilyn.
Tudo isto tem uma explicação tecnológica mas o que aqui importa são as implicações espirituais. “ ... porque estas Mortas regressam, sim, estas Mortas regressam, senhores, porque eu as amo, e por saberem isso elas obedecem-me ; só o amor ressuscita os mortos” (Monsieur de Bougrelon, Jean Lorrain, 1897).
Numa outra sala, é apresentado o filme Continuously Habitable Zones aka C.H.Z. (2011), uma viagem às profundezas de um “jardim negro”, criado pelo autor para um coleccionador privado, algures no Norte de Portugal.
As imagens dos filmes existem, e são eternas, mas elas são também as imagens que delas permanecem na nossa memória. A memória não é um gravador, é um agente ativo de transformação que potencia a criação de novas imagens que passam a conviver com as imagens do passado e as suas sempre renovadas (por cada pessoa, em cada momento) memórias.
Importa dedicar aqui um pensamento a River Phoenix cuja existência e preservação tem inspirado tantos cuidados.  Slater Bradley, em colaboração com Ed Lachman, diretor de fotografia de Dark Blood (1993), o filme que River Phoenix estava a rodar aquando da sua morte (overdose à porta do The Viper Room em Sunset Boulevard), realizou uma série de desenhos a partir de fotografias de rodagem (Look up and stay in touch, 1993/2011) e dois filmes (Shadow, 2010 e Dead Ringer, 2011) que retomam situações perdidas do filme inacabado (cuja apresentação pública foi, por fim, anunciada para este Outono).
James Franco, em colaboração com Gus Van Sant, dedicou-se à re-criação de My Own Private Idaho, a obra prima do ator.  A instalação Memories of Idaho inclui os filmes My own private River, reunindo takes de River não utilizados na versão final, e Idaho, uma espécie de versão fantasma do filme feita a partir de um script não utilizado. Vi estas obras no Festival de Toronto 2011 no mesmo dia em que assisti à dia estreia mundial de Deste Lado da Ressurreição. Joaquim Sapinho não esteve presente porque teve de regressar a Portugal devido à morte do pai. Tema de um dos seus próximos filmes.
Quem está ou não está entre nós? Estamos entre quem?  Senti que estava entre eles (ou deveria dizer entre nós?), ao entrar na escurecida sala que, no verão passado, acolheu o melhor trabalho da Documenta 13, Kassel.
Estava escuro e não sabia para onde dirigir os passos nem onde pôr o corpo, não sabia se caminhar na direção de um centro ou derivar à procura de uma parede. Havia um som de fundo no escuro, um som de muitas vozes talvez humanas, e o som das vozes tomou volume e começaram a mover-se e a crescer à minha volta corpos que eram com toda a certeza humanos.
Esta é uma descrição da obra de Tino Sehgal. Algo que poderíamos caracterizar como uma performance interativa. A questão dos limites entre a realidade e a encenação, entre a luz e as trevas, ou o silêncio e a voz, é corporizada de modo a incluir o nosso próprio corpo como parte plena do que está a passar-se, que se não sabe o que é.
Antes de terminar é preciso referir a curta-metragem Manhã de Santo António (2012) de João Pedro Rodriques que encerrou a Semaine de la Critique em Cannes. O autor encontra na maior abstração formal uma intensidade maior. Qual é o estatuto real ou ficcional, fnio ? Quem recebeu o poder e a graça e daquelas raparaigas que regressam de uma noite de santo Ant. Estava escuro e nlaboraçm-meísico ou espiritual, dos rapazes e raparigas (fantasmas? mortos-vivos?) que regressam desta noite de Santo António?


Quem falou que a vida é à prova de ressurreição ?

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Artigo publicado em 'Quociente de Inteligência', suplemento de cultura do Diário de Notícias, a 8 de Dezembro de 2012. (pp: 20-21)

ESTAR E NÃO ESTAR / BONECOS




João Pedro Henriques e João Rui Guerra da Mata
Santo António, Mimesis Art Museum, Coreia do Sul


Santo António de João Pedro Rodrigues

ESTAR E NÃO ESTAR
PARA JOÃO PEDRO RODRIGUES

Uma figura moldada por um tecido sintético negro move-se com uma determinação cujo desígnio ou destino não conseguimos adivinhar sobre uma extensa paisagem de detritos noturnos. Esta é uma descrição simples de  uma das últimas sequências de “O Fantasma” (2000), primeira longa-metragem de João Pedro Rodrigues, que desde logo o estabeleceu como um dos autores mais significativos e originais da sua geração.  
Quem quisesse evocar referências poderia falar de uma combinação peculiar entre ecos de Bresson e de Pasolini, tornada inconfundível por uma forma única de olhar (enquadrar) e por uma forma também única, e radical, (ambas se mantêm até hoje) de trabalhar o desenho das personagens e dos corpos até ao limite da exploração das suas possibilidades ou das suas impossibilidades (físicas e/ou ficcionais). Mais exatamente trata-se de trabalhar sobre a linha de delimitação (e os problemas da inviabilidade da sua rigorosa definição) entre as possibilidades e impossibilidades dos corpos. Por isso, a questão das metamorfoses dos corpos assume um papel preponderante que se torna ainda mais explícito nas duas longas-metragens seguintes “Odete” (2005) e “Morrer como um homem” (2009). As metamorfoses incluem, na sua expressão mais evidente, o uso de diferentes tipos de adereços (associáveis, por exemplo, às práticas s/m, fetish ou drag) ou a modelação pelo body-building dos corpos filmados na recente curta-metragem “O corpo de Afonso” (2013). No entanto, as expressões mais relevantes desta lógica da metamorfose consistem sobretudo na elaboração de surpreendentes e complexas formas de relacionamento e transmutação entre mortos e vivos ou entre homens e mulheres (incluindo o tema da transexualidade). O potencial metamórfico dos seres (físicos ou ficcionais) inclui ainda as relações entre seres humanos e animais que - desde a primeira curta-metragem “Parabéns” (1997) - é fundamental no trabalho do autor, incluindo esta instalação em que, entre os seres vivos, só os animais, nas suas breves aparições, sugerem a presença de uma vitalidade que se costuma considerar exclusiva dos humanos. Para além dos animais, as presenças mais vivas são as dos anúncios publicitários rotativos e as dos automóveis.

Com a instalação “Santo António”, realizada especialmente para o Mimesis Art Museum, a partir  de imagens registadas durante a rodagem da curta-metragem “Manhã de Santo António” (2012), João Pedro Rodrigues, depois de consagrado no mundo do cinema, faz a sua primeira intervenção no chamado mundo das artes plásticas. Este movimento biunívoco entre o mundo do cinema (festivais e salas de cinema) e o mundo das artes plásticas (museus e salas de exposição) tem adquirido um significado preponderante na conjuntura artística das últimas décadas envolvendo nomes tão significativos quanto Apichatpong Weerasethakul, Chantal Akerman, Douglas Gordon, Eija-Liisa Ahtila, Isaac Julien, Matthew Barney, Pedro Costa ou Yang Fudong.  Das galerias para as salas de cinema ou dos festivais de cinema para os museus estes são exemplos muito diversificados de um trânsito cada vez mais fluído que leva muitos artistas hoje em dia a trabalhar já de forma ddireccionadae diferenciada para os dois circuitos. Estes trânsitos são feitos dos modos mais variados e não cabe aqui sugerir uma tipologia nem fazer comparações com João Pedro Rodrigues até porque se trata do seu primeiro trabalho neste contexto.

Consideramos que a forma encontrada para esta instalação, que nos situa no interior de um cubo cujos 4 lados são totalmente ocupados por 4 imagens, é particularmente feliz e adequada à valorização de dois aspetos fundamentais relacionados com a concepção espacial desta narrativa. Neste filme (tal como no filme que lhe deu origem) há dois tipos de espaços : um espaço quadrado, potencialmente fechado, que é desenhado pela malha urbana de prédios e escadas e tem a sua expressão mais acabada na praça quadrada dominada pela estátua do Santo ; e um espaço vectorial unidirecional, abstracto e indeterminado, que não se confunde nem com as ruas nem com as irrupções da natureza (veja-se como uma personagem atravessa as próprias árvores) e que é o espaço desenhado pela deslocação das personagens segundo uma lógica e um horizonte que, mais uma vez, não podemos adivinhar.
A montagem (na dupla acepção de editing e instalação) das imagens no interior de um cubo permite, em simultâneo, instaurar uma situação claustrofóbica (em que estamos rodeados por diferentes fragmentos de um mesmo espaço) e uma dinâmica de fuga interminável, porque as deslocações das personagens deslizam de um ecran para o outro, de um lado para o outro, traçando um movimento sem princípio nem fim, apesar dos limites físicos do local onde nos encontramos.

Voltando ao início arriscaria dizer que este filme começa onde acaba “O Fantasma”. Para além do raccord entre as figuras compare-se a frase que acompanhou a divulgação de “O Fantasma” – “Não se pode viver sem amor” - com a quadra de Fernando Pessoa evocada  nesta instalação “ ... “.
Importa reconhecer, entretanto, que  esta obra surge muito tempo depois e muitos corpos depois. Muito tempo depois, no que diz respeito ao tempo das transformações sociais, culturais e comunicacionais, designadamente o advento do tempo das vãs glórias digitais. Muitos corpos depois, no sentido de uma progressiva exaustão das possibilidades de uma produtividade física ou narrativa (produção de imaginário) auto-sustentada pelo próprio corpo.
A narrativa do filme percorre um arco muito rápido e muito tenso (embora o olhar e os enquadramentos ultra-rigorosos o façam parecer frio e suave) entre a banalidade urbana e quotidiana de uma circunstância típica da cidade de Lisboa (junto à Praça de Alvalade, onde se encontra a estátua de Santo António, um grupo de jovens regressa das comemorações da festa popular da noite de Santo António) e a absoluta indeterminação da situação ontológica ou metafísica destes jovens seres que se movem numa direcção cujo sentido nos escapa.  
Eles têm ainda os atributos físicos dos corpos humanos (urinam, vomitam, um tem manchas de sangue?) na camiseta, alguns estão semi-despidos, permitindo admitir alguma prévia actividade física) mas não falam e não nos é concedido acesso aos seus rostos ou olhares (será que foram apagados como nalguns filmes de terror particularmente aflitivos?). Caem, levantam-se e continuam caídos. Adormecem e continuam acordados, acordam e continuam a dormir. Parecem, por vezes, como é o caso da protagonista, ser guiados por telemóveis que nunca abandonam mesmo que o caminho conduza ao afogamento. Este pormenor não parece ser muito importante. Talvez no universo digital em que pequenitas máquinas ( e só nelas a custo se vê o reflexo de um rosto) conduzem os homens a questão da morte tenha outros contornos. Talvez estas personagens sejam já seres ressuscitados, uma espécie de zombies que a saciedade tornou inofensivos, ou objectos de uma intervenção para-psicológica extra-terrestre cujo objectivo não nos foi revelado. Ou talvez sejam apenas pessoas normais, pessoas como nós (admitindo que nós somos pessoas normais, o que é pouco provável), e estejam apenas mais ou menos ressacados. Continuam a andar não se sabe bem porquê nem para onde e cada um de nós é livre de os seguir ou não.

(Agora, entre parêntesis, surgem algumas imagens que me disseram terem sido filmadas em Acapulco. Mas, na verdade, de facto, de onde vêm estas imagens? De um improvável continente a que outrora nos habituáramos a chamar realidade ? Ou serão talvez, apenas (?), imagens interiores de um pensamento?)

O único néon de imagens no interior de um cubo permite em simultâneo que as mãos façam parecer frio. O único ponto de vista está atrás dos nossos olhos e é o ponto de vista de uma câmara. A câmara de João Pedro Rodrigues. O olhar do Santo, no final, é um olhar cego e mudo que não nos traz a salvação. Ou será esta a salvação?

Santo António de João Rui Guerra da Mata


BONECOS
PARA JOÃO RUI GUERRA DA MATA

O conjunto de desenhos de João Rui Guerra da Mata apresentado em paralelo à instalação “Santo António”, de João Pedro Rodrigues, permite desenvolver algumas reflexões sobre a natureza das respectivas estratégias de figuração. Designamos por estratégias de figuração o conjunto de processos através dos quais um determinado modo de olhar para os corpos e avaliar o modo como os corpos se põem e movem no mundo, dá lugar a uma determinada forma de apresentação ou representação desses mesmos corpos.
Sabemos e poderíamos adivinhar que os desenhos de JRGM – uma pequena selecção de um vasto conjunto de trabalhos do mesmo tipo que vem realizando desde 1985 - partem de um determinado modo, pessoal, de olhar e avaliar corpos, designadamente, neste caso, alguns dos corpos dos actores e outros colaboradores envolvidos na produção do filme “Manhã de Santo António” que esteve na origem da instalação “Santo António”. A observação dá lugar, na maioria dos casos, a fotografias que servem de ponto de partida para um trabalho de transformação das figuras, sobretudo rostos ou, por vezes, torsos.
O processo passa por diferentes fases que, no essencial, correspondem a sucessivas etapas de um processo de eliminação de informação específica particularizadora, no sentido psicológico, da pessoa em causa,  e de subsequente valorização de determinados traços (também no sentido gráfico literal da palavra) da sua fisionomia e postura : e não, de modo algum, da sua expressão, já que se trata, antes de mais, de banir a expressão.
Se o ponto de partida da relação com o corpo representado é a fotografia (por vezes associada aos métodos próprios do trabalho de casting), já o tipo de traços retidos e o tipo de linha que os configura poderiam ser relacionados, na sua origem, com alguns exemplos consagrados da BD francesa e belga, ou, nalguns aspetos mais particulares, com a BD e a animação japonesas.
O resultado final, apesar de se tratar de um trabalho totalmente feito à mão, tem pontos de contacto com formas de figuração gráfica e digital que hoje se multiplicam nos écrans das pequenitas máquinas sem as quais tantas jovens criaturas parecem não saber o que fazer nem com as mãos nem com os olhos.
... e no entanto, mesmo sem alma (como se diz ser próprio de alguns animais) e sem carne (como é próprio das imagens) a existência de corpos (ou uma espécie de pré-existência de corpos) é sinalizada pelas linhas que lhes designam pontos de consistência e pelos traços que lhes apontam vetores de deslocação que, quem sabe, um dia, ascenderão ao estatuto de vocações.

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Texto realizado por ocasião da exposição 'Santo António' de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, no Mimesis Art Museum, na Coreia do Sul, inaugurada em Novembro 2013.