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REVOLUCIONÁRIO, LOUCO, SUICIDA, ARTISTA, ARTISTAS







Exposição Werther Effect, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira ©MunicípiodeLoures






Felizmente, os autores do filme e da exposição que aqui me compete apresentar concederam pouca importância à patética narrativa pseudo-romântica do famoso livro do jovem Goethe e do seu irritante protagonista. No filme, retenho a cena de abertura e a evocação da loucura ou da fantasia como formas de superação do contexto social. 

Duas citações permitem, de algum modo, ancorar no livro o tópico irracionalista.

“Concentro o espírito em recolhimento e encontro nele um mundo de pensamentos ... ou antes de percepções confusas e de vagos desejos ... Não são raciocínios, ainda menos projectos de acção, mas intangíveis sonhos que me flutuam ante os olhos e nos quais gostosamente me perco” (p. 18/19).

“Será então destino do homem só ser feliz antes de possuir o uso da razão e depois de o perder ? Pobre louco ! Quanto invejo a tua loucura, a tua perturbação dos sentidos !“ (p. 142/143).

Quanto à cena de abertura, recreando o suicídio de Werther, tem sobretudo um valor estético e formal (veja-se o jogo de cores das roupas) que antecipa as opções estéticas do filme. Destaque para os ténis Nike, numa alusão aos ténis Nike Decade (1993), usados pelos 39 membros da seita “Heaven'sGate” quando cometeram um suicídio colectivo em Março de 1997.

Desde logo o título remete menos para a personagem de Werther do que para o “efeito Werther”, uma noção criada por David Phillips em 1974 para designar um conjunto de suicídios que podem ocorrer na sequência do suicídio de uma pessoa famosa. David Phillips designou desta forma o fenómeno, tomando como exemplo a sucessão de suicídios cometidos de forma que pareciam copiar a morte do protagonista da novela de Goethe após a publicação do livro.

O fio condutor da minha aproximação a estas obras é a noção de “utopia”.

Querendo ser redundante poderia dizer “utopia impossível”: o conteúdo de uma utopia, por definição, é algo não é possível (se fosse, não era uma utopia, era um plano). Prefiro dizer que é a própria forma conceptual da noção de utopia que deixou de ser possível.

Para justificar esta afirmação vamos sondar algumas das formas terminais da experimentação dos limites da possibilidade de convocação da noção de utopia Comentaremos três formas : o Revolucionário, o Louco e o Artista.

As ações dos 4 protagonistas da história que “Werther Effect” nos apresenta podem começar por ser vistas como tentativas de subversão radical e ultrapassagem dos limites das convenções sociais determinadas pelo chamado “sistema”. Aqui se afirmaria uma dimensão revolucionária que, neste caso, se desenvolve sobretudo na via da valorização da atividade sexual, nomeadamente através do recurso a uma pluralidade de drogas capazes de assegurar a persistência da sua pertinência programática e da sua intensidade física e mental. O sexo como forma de libertação e revolução, um pouco ao jeito dos delírios de Wilhelm Reich. O líder do grupo, ausente, é chamado Guilherme, tal como o destinatário das cartas de Werther. Não será necessário explicitar os limites deste tipo de atividade revolucionária (que poderia situar-se, com algum abuso caricatural, no âmbito do que Álvaro Cunhal, num outro tempo, chamou  “Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista”).

Para evocar mais uma tríade, lembremos a “Droga Loucura Morte” da primeira campanha oficial portuguesa (ainda no tempo da ditadura, fase Marcelo Caetano) contra o consumo de drogas. Como seria de esperar, os sugestivos cartazes acabaram por ser adotados, à época, como materiais promocionais da referida “droga”.

Importa assinalar - no modo como se desenha o esgotamento da dinâmica revolucionária do nosso grupo - que o fator que precipita o fracasso é o desaparecimento do líder carismático e a orfandade ideológica, afetiva e sexual a que ela condena todo o grupo. Sem o líder carismático que assegura a identificação e a gratificação desejantes nada tem sentido e não resta nada para fazer. Talvez não seja por acaso que (quase) todas as experiencias revolucionárias se esvairam através do culto de um ditador carismático sustentado por formas cada vez mais degradadas de corrupção e repressão massivas. É por isso que o problema da sucessão dos ditadores é (quase) sempre trágico. 

Em “Werther Effect”, o Revolucionário transforma-se em Louco, talvez à espera de ser recolhido por extraterrestres ou, na ausência destes, talvez em Suicida.

Mas há uma outra dinâmica utópica suscetivel de, a seu modo, assumir uma intenção revolucionária. Falamos do Artista.





É esta a componente mais importante deste filme e desta exposição. As referencias à teoria das cores de Goethe e aos trabalhos de Oskar Schlemmer, com a Bauhaus e Weimar como pano de fundo, enquadram um admirável   trabalho de construção de esculturas, composição de coreografias, concepção cenográfica, direção de luzes e (na exposição) produção de pinturas (pintadas ou bordadas).

As pinturas - que não aparecem no filme mas podemos ver na exposição - são inspiradas em posters de Herbert Bayer para a exposição da Bauhaus em Weimar, 1923 ou, no caso dos “Urplanze”, 2013/16, em embalagens de drogas sintéticas, daquelas que se compravam, baratas, nas smartshops, como adubos para plantas.

A maioria dos objetos apresentados são indissociáveis das coreografias. São objetos escultóricos para vestir e usar no âmbito de coreografias a que, no contexto das artes plásticas, se poderia chamar performances. Importa sublinhar que são objetos construídos para terem uma relação direta e instrumental com os corpos humanos.

Nas coreografias (vejam-se Schlemmer e a Bauhaus) manifesta-se uma aparente contradição entre os delírios libertários do discurso do grupo e a vocação sistémica e geométrica (chamemos-lhe assim) dos movimentos. O paradoxo é real e remete para a pitoresca ideia de alguns modernismos da primeira metade do século XX segundo a qual (simplificando) a geometria (“Ponto Linha Plano”, à moda de Kandinsky, mais coisa menos coisa) ia salvar o mundo.

Alguns objetos que não se articulam diretamente com as coreografias servem a concepção cenográfica e integram referências à “Wassily Chair” de Marcel Breuer e a uma mesa de Eileen Grey.

Destaco a importância da parede, suporte de intensos efeitos cromáticos, já que o trabalho de direção de luzes (são luzes reais como no teatro e não efeitos de pós produção digital) tem um papel decisivo na construção do ambiente geral do filme e, sobretudo, na indução da interpretação dos sucessivos discursos, variando as cores consoante o tom das declarações enunciadas.

A maior riqueza do trabalho dos autores - tal como se manifesta neste filme e nesta exposição - reside na capacidade de instituir uma “atmosfera utópica”, que se desdobra em múltiplas formas de estímulo e propagação da imaginação produtiva : criar possibilidades de imaginar ideias, objetos, espaços, cenários, sons, discursos, movimentos. Não são as formas que libertam. Não são as luzes que libertam. Não são as ideias que libertam. O que liberta os poderes da imaginação criativa (o que liberta o poder da liberdade, passe a inevitável redundância) é a criação de uma atmosfera produtiva que alimenta, de modo   sempre renovado, expansivo, a capacidade de produzir isto ou aquilo ; ou, mais exatamente, tudo o que se quiser.

“Ainda há muita merda para fazer “. Sem esquecer o significado da palavra “merda” no contexto teatral.

Isto poderia ser uma descrição da dinâmica do trabalho de JPV e NAF, uma dinâmica de trabalho cooperativo que gera uma lógica de comunidade no trabalho de estúdio ou, neste caso, no trabalho das filmagens : os protagonistas são também atores (aliás designados pelos seus nomes próprios) que estão a inventar o seu trabalho de atores.

(Trailer do filme Werther Effect: https://vimeo.com/78301734)


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Alexandre Melo, no âmbito da exposição Werther Effect, na Galeria Municipal Vieira da Silva, no Parque da Cidade, em Loures. De 16 Abril a 29 de Outubro de 2016.






NEOBARROCO / JOÃO PEDRO VALE




ARTFORUM
Outubro/October 2006


João Pedro Vale. Foi bonita a festa, pá. 2006



Exhibited as part of the group show “Neobarroco” in São Paulo along with works by Camila Sposati and Friederike Feldmann, the most recent large-scale sculpture by the Portuguese artist João Pedro Vale, Foi bonita a festa, pá (The Party Was Beautiful, Yes), 2006, was constructed from a jangada, a balsa raft from the northeast of Brazil. This craft seems particularly appropriate to its situation in this gallery, the work of Paulo Mendes da Rocha (winner of this year’s Pritzker Prize), who has created a long, narrow, very high nave, much like an overturned boat.   

Let us examine the metamorphoses and dislocations that Vale has performed on this raft (instead of the caravel of this colonialist ancestors) with which, as a Portuguese, he arrives today in Brazil. Vale painted the boat red, generating maximum contrast with the browns and golden yellows of its decorations: empty beer bottles and their caps. The red and gold recall, above all else, the Catholic Baroque theatricality that marks the Portuguese heritage in Brazil, and recall as well the red flags that played a major role in Portugal’s democratic revolution of 1974. The so-called Carnation Revolution is further evoked here by an arch of red plastic carnations that extends along the boat like the arches that typically decorate popular celebrations. The evocation of popular conviviality finds its most striking expression in the use of bottle caps from Sagres beer as if they were ornamental jewels.

Sagres is the name of a town in southern Portugal, the site of the school where many fifteenth-century navigators were trained. The play between the “rich” effects of colour and light and “poor” materials, between luxury and kitsch, is part of dialectical play of contradictions that characterize this sculpture and the whole of Vale’s work.

A similar formal and symbolic dislocation using objects related to colonial expansion is evident in a set of thirteen smaller sculptures Vale presented in Vienna. Here the references were to objects in cabinets of curiosities such as that of Emperor Maximilian II, housed today in the Kunsthistorisches Museum in Vienna. A product of the anthropological curiosity and the fantasies associated with colonial exploitation, these objects were intended to illustrate the exoticism of distant lands, supposedly inhabited by strange beings like the unicorn (whose horn turns out to be a narwhal’s) or the “wild man” (an African slave covered in goatskins) – this cruel invention being the reference in one of the most successful pieces in the Vienna exhibition, Ecce Homo, 2006. The shape of a trophy cup transforms itself into an exotic body, made with glue from a glue gun, a wig balanced on the inverted horns of a Viking carnival helmet lined with leather and gilded tacks, and the tip of an umbrella. A necklace of mock-tortoise pendants and a duster made of Chinese rooster feathers complete the assemblage.

Vale appropriated and metamorphoses pre-existing objects, using both ordinary and uncommon materials to sabotage the distinction between beauty and horror, naïveté and sophistication. Popular forms of creativity are placed in the service of an analysis of colonialist fantasies; demystification of the fictions of domination opens the path to a hybrid multiplicity of egalitarian possibilities for a plastic and symbolic interplay. 

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Texto traduzido para inglês por Clifford E. Landers e publicado na revista mensal Artforum, na edição de Outubro de 2006, por ocasião da exposição Novo-Barroco, Galeria Leme, S. Paulo, Brazil.

DEPOIS DA FESTA




João Pedro Vale. Foi Bonita a Festa, pá! 2006.




A mais recentre escultura de grandes dimensões de João Pedro Vale foi elaborada a partir de uma jangada trazida do Noroeste do Brasil para ser transformada e exibida na Galeria Leme em São Paulo. A circunstância torna-se significativa devido à peculiar história das relações entre Portugal e Brasil. A circunstância espacial particular desta apresentação deve ainda ser sublinhada devido à admirável concepção arquitectónica da galeria da autoria de Paulo Mendes da Rocha (Prémio Pritzker deste ano) que criou uma nave longa, estreita e muito alta que parece fazer apelo à passagem de um barco.

A obra de Vale põe me jogo a relação entre Portugal e Brasil, no quadro da revisão multiculturalista do colonialismo e de uma problematização da relação entre práticas culturais populares e eruditas. Esta escultura surge na sequência de outras obras do autor alusivas às viagens marítimas tendo como referência barcos (Bonfim e Barco Negro, 2004) e um farol (Heróis do Mar, 2004).

Vejamos quais as metamorfoses e deslocações a que Vale submete esta jangada (em vez de uma caravela) com a qual, como português, «chega» hoje ao Brasil. Em primeiro lugar a cor. Todo o barco é pintado de vermelho gerando o máximo contraste com os castanhos e amarelos dourados dos adornos: garrafas vazias de cerveja e respectivas tampas. O vermelho e dourado remetem, antes de mais, para uma teatralidade católica e barroca que é marca do legado português no Brasil. A inspiração mais directa vem do Coche dos Oceanos que fez para da embaixada, custeada pelo ouro do Brasil, enviada em 1716 pelo Rei D. João V ao Papa Clemente XI: um coche todo em talha dourada e veludo vermelho do qual, ao passar, eram distribuídas moedas de ouro pelo povo. As mesmas cores remetem para as bandeiras vermelhas que, em Portugal, tiveram grande protagonismo durante a revolução de 1974, que gerou uma grande empatia entre artistas portugueses e brasileiros, ambos submetidos a longos períodos de ditadura.

A peça chama-se Foi Bonita a Festa, Pá, verso de uma canção então censurada no Brasil, do cantor brasileiro Chico Buarque, dedicada à revolução portuguesa. A «Revolução dos Cravos» é ainda assinalada por um arco de cravos vermelhos que se estende ao longo do barco, ao jeito dos arcos que decoram os terreiros de festas populares. A marca das formas de convívio e diversão popular tem a sua expressão mais conseguida no uso, como se fossem decorativas jóias douradas (as moedas de ouro dos pobres), das tampas das garrafas de cerveja Sagres, tradicionalmente usadas também nas brincadeiras de crianças. Garrafas vazias são usadas em cachos distribuídos pelo barco, sugerindo bóias ou a sensação de flutuação inerente ao tempo «depois da festa». Não devemos esquecer que Sagres é o lugar onde terá existido uma escola de navegação que esteve na origem da viagens marítimas e o nome do navio-escola da armada portuguesa.

O jogo entre os materiais «pobres» e os efeitos «ricos» de cor e luz, fazendo eco ao jogo entre luxo e o kitsch, é outra das formas tomadas pelo jogo dialéctico de contradições que estruturam esta escultura e, de resto, o conjunto da obra do autor.

O mesmo tipo de deslocações formais e simbólicas realizadas a partir de objectos relacionados com a expansão colonial está patente num conjunto de 13 esculturas de menores dimensões apresentadas na galeria Layr: Wuestenhagen, em Viena. As referências são objectos da colecção do Imperador Maximiliano II, hoje guardados no Kunstkammer do Kunsthistorisches Museum de Viena. Produto da curiosidade antropológica e das fantasias associadas à exploração colonial, estes objectos pretendiam ilustrar o exotismo de paragens distantes. Portugal foi um dos principais fornecedores devido à presença em Lisboa da Rainha Catarina de Áustria e à acção de um «dealer»/«advisor» que funcionava como espião do Imperador. Para alimentar uma procura crescente os fornecedores inventaram seres estranhos como o unicórnio (cujo adorno era afinal um bico de Narval) ou o «homem silvestre» (escravos africanos cobertos de pêlos de cabra para serem exibidos como raridades).

Esta invenção cruel serve de referência a uma das peças mais conseguidas da exposição: Ecce Homo. A forma de uma taça transforma-se num corpo exótico, metade tronco de cola termofusível, metade peruca afro-disco de Carnaval, que se equilibra sobre os cornos invertidos de um capacete viking de Carnaval, forrado de cabedal e tachas douradas, e uma ponta de chapéu de chuva. Um colar de pingentes de imitação de tartaruga e um penacho com penas de galo chinês completam o conjunto. Nesta exposição, a multiplicação das invenções formais e a combinação dos mais improváveis materiais geram uma irrisão do exotismo que é acompanhada de uma paródia às fantasias sexuais colonialistas com acentuado valor desmistificador.

No conjunto das suas peças mais recentes, Vale aprofunda um trabalho de citação e metamorfose de objectos pré-existentes através do recurso a materiais pobres e inusitados que sabotam a distinção entre o belo e o horrível, a humildade e a sofisticação. A valorização das formas populares de criatividade é posta ao serviço de uma análise das fantasias colonialistas em que desmitificação das ficções de dominação abre o caminho a uma pluralidade de possibilidades igualitárias de invenção híbrida de novos jogos plásticos e simbólicos.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa.



EU TENHO UM SONHO






 
João Pedro Vale. I Have a Dream. 2002


No passado dia 31 de Outubro, abriu no MARCO, Museu de Arte Contemporânea de Vigo, a exposição «Outras Alternativas», comissariada pelo jovem crítico e curador espanhol David Barro e reunindo obras de 20 artistas portugueses das mais recentes gerações, isto é, revelados na última década e alguns mesmo já no novo século. A exposição tem as virtudes próprias da diversidade e vitalidade da actual cena nacional e a vantagem de, graças à distância de um ponto de vista menos ligado às circunstâncias locais, agrupar algumas obras e misturas de nomes pouco previsíveis e capazes de suscitar debate.

O que importa aqui sublinhar é a constatação do que a exposição representa: há uma nova geração, ou várias, consoante a arrumação cronológica que se adoptar, de jovens e muito jovens artistas portugueses cujas obras têm já a maturidade e consistência suficientes para participar numa dinâmica internacional de que esta grande exposição, em museu espanhol é assinalável exemplo, tanto mais que a Espanha tem uma função fulcral como ponto de passagem dos artistas portugueses rumo a uma circulação global.
Entretanto, para quem queria dar a volta ao mundo da arte de um modo menos rápido do que aquele que parece caracterizar a dinâmica dos artistas portugueses do século XXI, um dos métodos mais poéticos e aventurosos é, sem dúvida, a viagem em balão.

Para o efeito poderão tentar utilizar o balão criado, em 2002, por João Pedro Vale e apresentado em Lisboa (Lugar Comum, Barcarena), no Porto (Artes em Partes) e agora em Vigo.

João Pedro Vale, que nasceu, estudou e trabalha em Lisboa, teve a primeira exposição individual na Galeria Módulo em 2000. Ali apresentou um conjunto de esculturas que remetiam para objectos ligados à atmosfera de um ginásio, apostando em sugestivas referências sexuais e na utilização de matérias pouco convencionais (sabão, pastilha elástica, «batôn») com uma surpreendente capacidade de apelo sensorial.

Por exemplo, a peça Body Sculpture consiste num complexo de ginástica, daqueles que permitem a realização de uma multiplicidade de exercícios através de variações da posição do corpo e dos vários elementos da máquina. Todas as superfícies estofadas da máquina estão cobertas de pastilha elástica de mentol, devidamente mastigada ou amassada de modo a produzir efeito equivalente, dando à forma final da escultura um delicado tom verde e um apetecível aroma a mentol que alastra ao espaço circundante.

Aquilo que começa por ser um «ready-made», isto é uma apropriação de um objecto pré-existente, transforma-se num palpitante apelo à intimidade. Um objecto que costumamos associar a formas mecânicas e frias, ainda que suadas, de exercitamento do corpo vê-se transformado em eventual propiciador de fantasias sensuais menos comuns.

João Pedro Vale realizou depois uma série de peças de grandes dimensões e grande impacto, entre as quais se destacam as esculturas inspiradas na figura do Pinóquio (Espaço EDP, 2001), na Dorothy de O Feiticeiro de Oz (Feira de Arte de Lisboa, 2001). Vedetas multinacionais de um imaginário cultural global, reinventadas para proveito e gozo dos nossos imaginários pessoais. Figuras consagradas pela cultura de massas até ao ponto de se tornarem estereótipos ganham um suplemento de sensualidade, através dos materiais usados e da forma manual e caseira da sua utilização, e são reinvestidos de uma vocação sentimental que as reenvia para a sua origem lúdica e fantasista, em relação com o imaginário e a memória da infância.

O grande balão voador com o qual começámos esta digressão pelo trabalho de João Pedro Vale tem uma forma inspirada no castelo da Bela Adormecida do filme do Walt Disney e é feito de tecidos vários em tons de cor-de-rosa. I Have a Dream é o seu nome inscrito em bandeiras que adornam o balão e nas bilhas de gás que lhe alimentam o voo. No entanto, como é habitual neste tipo de balões, sobretudo quando se chamam «I Have a Dream» (eu tenho um sonho) não nos é possível ver o balão em pleno voo, apenas o podemos observar em estado de queda com as torres do castelo suspensas de uma varanda ou espalhadas pelo chão.
Os pessimistas poderão pensar que o balão falhou na sua missão mas não é verdade. Nós não sabemos por onde é que o balão já voou nem por quantos sonhos ele já passou e também não sabemos quantas mais vezes ele irá voltar a levantar voo e passar por outros tantos novos sonhos.

As obras de arte não são promessas de políticos nem delírios de poetas. As obras de arte não fingem transformar os sonhos em realidades. As obras de arte são a realidade do facto de haver um sonho.

A viagem de balão à volta ao mundo não tem princípio nem fim, tem apenas momentos de pausa e repouso que devemos agradecer e entender como convite.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 3 de Janeiro 2004, p. 30-31.

BELLS ARE STILL RINGING




CURADORIA DE/CURATED BY ALEXANDRE MELO
Galeria Graça Brandão, Lisboa / Lisbon, 17/01 - 8/03/2014

Com/with: De Almeida e Silva, Efrain Almeida, Flávio Gonçalves, Gabriel Abrantes, Igor Jesus, João Maciel, João Pedro Vale, Nuno Alexandre Ferreira, Tiago Alexandre, Vasco Araújo




Uma exposição com o título BELLS ARE STILL RINGING, inaugurada no mês de Janeiro, não é dissociável do Natal, embora a frase evoque outras referências (por exemplo filmes e canções). Uma exposição de grupo, com artistas muito diferenciados, também nunca seria uma exposição monolítica e aqui encontramos artistas oriundos das artes plásticas e do cinema, trabalhando com pintura, filme, escultura, desenho, objectos, gravura,… e abordando temas relacionáveis com o Natal de formas mais ou menos directas ou, nalguns casos, puramente especulativas. A diversidade é particularmente apropriada a uma noção como Natal que, para além do seu significado religioso tradicional, remete hoje para uma série de figuras consagradas pelo imaginário popular, para uma dimensão económica e, sobretudo, para uma ideia de comunidade ou família, onde a dinâmica de comunicação e a partilha de sentimentos e experiências servem aqui como uma boa maneira de definir o trabalho de grupo que permite realizar uma exposição como esta, aberta a todos o que a queiram visitar.

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An exhibition entitled BELLS ARE STILL RINGING, opening in January is inseparable from Christmas, although the sentence also evokes other references (like films and songs). This group show has many different artists, and would never be a monolithic exhibition, as these artists are coming from visual arts and film, practicing painting, film, sculpture, drawing, objects, printmaking… and addressing themes related with Christmas more or less in a direct way or, in some cases, a purely speculative manner. This diversity is particularly appropriate to a notion like Christmas since, in addition to its traditional religious significance, it also refers to a series of figures consecrated in the folk imagery, to an economic dimension, and, most importantly, to the idea of community or family, where the dynamics of communication and the sharing of feelings and experiences serves as an appropriate analogy for the group work that allows the execution of an exhibition such as this one, which, of course, is open to all of those who wish to visit.