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CROFT: UM MONUMENTO PARA ZURIQUE





José Pedro Croft. Sem Título. 1987


recentes escultura de José Pedro Croft. Desde a passada quarta-feira, e até amanhã, pode ser visto entre as 12 e as 20 horas, no pavilhão da EMI-Valentim de Carvalho, o nº 626, no Fórum das artes de Zurique. Na Suíça portanto.

A exposição de José Pedro Croft é constituída por esta única peça que ocupará, aproximada mas não exactamente, o centro de pavilhão com 12 m de comprimento por 5 de largura, aberto ao espectador, a todo o comprimento, do lado em que no chão da escultura se recorta uma reentrância. A altura do “stand” é pouco maior do que a das paredes da peça, e a luz difusa do pavilhão é completada com focos verticais apontados ao interior da construção. Do outro lado do corredor, na Galeria António Tucci Russo, de Turim, estão trabalhos de Mário Merz.

A atenção necessariamente particular a conceder a este trabalho de José Pedro Croft resulta, é claro, não apenas da inusitada monumentalidade das suas proporções – funcionando neste contexto como uma instalação – como da constatação do facto de a sequência do trabalho mais recente do autor se fazer menos por sucessão de exposições individuais – a última foi em 85, na Leo, e os trabalhos actuais marcam já, em relação a ela, uma assinalável distância – do que por uma sucessão de peças individualizadas que vão sendo expostas em diferentes contextos e locais.

Reportando-nos às colunas que aparecem na exposição da Leo, em 85, e no trabalho executado no mesmo ano no Simpósio da Pedra no Porto vemos que a mesma estrutura formal da base, a coluna, nos surge, nos trabalhos seguintes, orientada no sentido da destroçada vocação da figura humana; as cabeças da exposição colectiva “Arquipélago”, aproximáveis das realizadas em 84 para a instalação no Cabo Espichel.

Até esses trabalhos, e ainda neles, predominava a “modelação” da pedra, incisão e cortes, acompanhada de uma ressonância figurativa. O que não impedia, entretanto, que as questões materiais da construção das peças propriamente dita – encaixes, assentamento, formas de equilíbrio – e as questões do relacionamento com o espaço circundante tenham alguma vez deixado de estar presentes, e de ser, nalguns casos, decisivas.

Com a coluna apresentada no Arco, Madrid, em 1986, deixamos de ter o bloco único, trabalhado no sentido da produção deste ou daquele tipo de referência figurativa ou arquitectónica, para passarmos a ter, como ponto de partida, um conjunto de blocos irregulares, um conjunto heteróclito de fragmentos, alguns deles com marcas residuais dos anteriores referentes, com os quais se vais construir uma precária e anómala coluna.

Colunas, guaritas, casas

Esta evolução confirma-se e aprofunda-se na coluna realizada para a Bienal de Vila Nova de Cerveira, construída por sobreposição de camadas de placas de mármore de pequena altura. O princípio da construção torna-se mais sistemático devido a uma “normalização” – não absoluta, é certo, porque se mantém algumas variações e irregularidades – de formato e modo de corte dos fragmentos constitutivos da peça.

Mantém-se no entanto o princípio da precariedade – também ele reforçando a importância do próprio fazer da construção – resultante de os fragmentos não serem colados, mas apenas empilhados, procedimento que se mantém na peça de Zurique.

Peças mais recentes, mostradas na III Exposição Gulbenkian e na colectiva “Cumplicidades”, fazem-nos passar da forma da coluna para a forma do que, em termos descritivos, se aproxima de uma guarita; o autor falou de sarcófagos.

Essencial, o facto de, na medida em que se mantém a proporção antropomórfica e que se torna evidente a separação entre um exterior e um interior, se poder, em limite, começar a falar de “casas”. Como se, de dentro para fora da primitiva coluna maciça, o espaço e a luz tivessem podido nascer e alagar-se até ficarmos com três paredes, um chão, construção aberta já, por cima e por um dos lados, ao exterior. Esse progresso no disciplinamento do próprio processo construtivo que se traduz, como vimos, num controlo e predizibilidade – planificação prévia – cada vez maiores, quer da natureza e características dos fragmentos a utilizar, quer das regras e lógica da sua combinação – por exemplo, mais “cerrada” na peça da Gulbenkian, mais “alternante” na das “Cumplicidades”. Para completar o trajecto que nos conduz à peça de Zurique importa ainda referir a “cruz de caixas” apresentada, nos jardins do Palácio de Belém e que no próximo mês de Junho será mostrada em Antuérpia. Aí, o mesmo princípio de construção por acumulação de placas finas, de pedra, é utilizado na construção de um massivo objecto, admissivelmente tumular.

Se quisermos arriscar, para a evolução descrita, a hipótese de uma formulação mais abstracta, podemos sugerir que passamos de uma lógica em que o confronto entre os gestos e as operações da modelação e a estrutura e resistências da pedra produzia sentidos sob as formas da descoberta, ou da revelação – aí o papel da reminiscência de ancestrais códigos figurativos -, para uma lógica em que a construção e o sentido mútua e contemporaneamente se constituem pela instauração de uma ordem tanto mais intrinsecamente trágica quanto tem de ser vivida como exercício pragmático da pura liberdade de um autor.

Contra ou apesar do destino

“Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder / tão firme e silencioso como só houve / no tempo mais antigo. / Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer, / sorrindo com ironia e doçura no fundo / de um alto segredo que os restitui à lama, / de doces mãos irreprimíveis, / - Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas, / as casas encontram seu inocente jeito de durar contra / a boca subtil, rodeada em cima pela treva das palavras “ (Herberto Hélder).

A escultura de Zurique é composta por cerca de 700 peças cortadas em desperdícios de mármore branco de Vila Viçosa e mármore rosa de Estremoz. Têm forma paralelepipédica mas, ao contrário do que acontecia em peças anteriores, têm uma grande variabilidade de dimensões sendo também os blocos, em geral, mais altos, o que, tornando menos evidente o empilhamento, as camadas, reforça o “efeito-casa”.

Três paredes ligeiramente desniveladas, assentes sobre um chão que se prolonga frontalmente, tornam nítida a marcação de uma distinção entre interior e exterior, bem como a sugestão de um movimento de aproximação / entrada. Os frisos que percorrem irregularmente a superfície interior das paredes enfatizam essa diferenciação e, na sua irregularidade, que prolonga a multiplicidade dos tipos de tensões que se estabelecem entre as diferentes dimensões e colorações dos blocos, impedem uma leitura monocórdica, estimulam leituras temporal ou funcionalmente estratificadas. Sobre o chão, entre as paredes, ligeiramente enviesada, uma caixa 2 m de comprimento por 0,5 m de largura, maciça, construída com blocos semelhantes aos das paredes.

É inevitável que se fale de templos, túmulos, jazigos. Há quem diga que se erguem casas contra ou apenas apesar do destino. Que toda a liberdade é apenas a de escolher construir as paredes para acolher a própria morte. Assim se pode concluir que as casas existem para a morte; o que institui, ainda assim, uma duração: talvez seja isso a vida, talvez seja a actividade dos chamados artistas.

“- Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam / pelos muitos sentidos dos meses, / dizendo: aqui fica uma casa, aqui outras, aqui outra, / para que se faça uma ordem, uma duração, / uma beleza contra a força divina?” (Herberto Hélder)

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Alexandre Melo, “Croft: um monumento para Zurique”, in Expresso, Lisboa 7 de Março de 1987

O QUADRADO DE OURO



Pedro Cabrita Reis
1987



Da ordem e do caos, 1986. 100 x 210 cm



A expressão “quadrado de ouro”, que se exibe em título a este comentário à obra de Cabrita Reis, não pretende insinuar, para o seu trabalho, nem uma devoção doutrinal mística, nem uma vocação ficcional narrativa. Excluídos estes dois pontos de fuga, correntes na produção artística contemporânea, o “quadrado de ouro”, designa: por um lado, a dimensão emblemática e ritualizante dos trabalhos de Cabrita Reis; por outro lado, as duas lógicas contraditórias – uma analítica, outra pulsional – que movem a sua obra e que, na sempre provisória resolução, em cada peça da sua contradição, fazem a tensão interna do processo criativo. Assinalam o lugar estratégico do local de Cabrita Reis no terreno do confronto das tendências plásticas contemporâneas.

Uma lógica analítica.
O quadrado evoca, na sua evidência geométrica, uma lógica analítica que se manifesta de duas formas.
Em primeiro lugar numa complexa conceptualização prévia de cada trabalho ou exposição que se traduzem: por um lado, numa recorrência de estruturas e motivos formais, constatável em diferentes trabalhos de uma mesma fase ou mesmo diferentes fases; por outro lado, num poderoso e envolvente efeito espectacular de instalação que tende, em limite, a transformar as exposições numa ocupação integral do espaço. Em segundo lugar, e ainda mais evidentemente o quadrado, como figura geométrica elementar, aponta aqui uma tendência obsessiva do artista para cristalizar a referência aos universos temáticos e formais a que se reporta, em torno da representação dos seus símbolos mais depurados – linhas quebradas, escadas, redes espirais, labirintos, cruzes, manchas e transparências orgânicas, outras formas geométricas e ortogonais. No mesmo sentido se dirige a tendência que, na continuidade da sua obra, se vem desenhando para convocar elementos cada vez mais simples, cada vez mais únicos, cada vez mais geométricos.
Um sentido global de depuração está igualmente patente na austeridade das cores predominantes utilizadas – negros, terras, óxidos, cinzas, castanhos – e na gestão dos efeitos de luz e brilho. Mais do que a cor em si própria, valoriza-se a degradação, o desgaste, a erosão, como que provocados pela passagem do tempo.
Vemos assim que o que designámos por lógica analítica recobre um trânsito de simultânea permanência e reabilitação de uma postura conceptual, por um lado, e de um escrúpulo geométrico tendencialmente minimalista, por outro.
Esta lógica, detectável em muitas evoluções actuais, sempre conviveu em Cabrita Reis com uma lógica oposta pulsional, que a potenciou e abriu a situações de maior complexidade e originalidade. É a essa outra lógica, de excesso e teatralidade, que nos reportaremos ao fazer referência ao ouro.

Uma erosão pulsional.
O ouro assinala, por referência directa a uma das cores mais utilizadas por Cabrita Reis – geralmente contraposto ao negro – e por alusão bastante óbvia, um sentido de exuberância, do excesso e do espectáculo que geralmente se associam ao barroco.
Se estes são sentidos pertinentes para a evocação do ouro, a sua profunda razão de ser no contexto deste comentário é, porém, de natureza metafórica, e remete para níveis menos aparentes e superficiais.
O ouro, em sentido metafórico, é aqui evocado em duas direcções. Por um lado, como o mais precioso dos metais preciosos, que o trabalho da mão humana conseguiu arrancar à terra, constituído assim uma evocação das origens. Por outro lado, material mítico em que se consubstanciam as utopias teleológicas – “A Idade do Ouro” – evocação dos fins. Estas duas acepções correspondem a características marcantes do trabalho de Cabrita Reis:
- A ancoragem em valores míticos, situações vitais e elementos materiais de natureza primordial e ancestral;
- A valorização da energia e fulgor físico dados ao processo de construção material de cada obra;
- A irreprimível aspiração a um absoluto e a uma totalidade utópicos que sistematicamente o artista implica na sua atitude e nos seus trabalhos.
A ancestralidade e a primordialidade estão patentes que nas fixações temáticas de anteriores trabalhos quer no tipo de materiais utilizados e na forma da sua utilização.
Os trabalhos anteriores centram-se insistentemente nos temas da guerra – “Cenas da Caça e da Guerra” (Galeria Diferença, Lisboa, 1983), acções e territórios de combate, heróis, troféus – e nos temas de religião, em sentido lato – “Os discretos Mensageiros” (Galeria Cómicos, Lisboa, 1984), “A Anunciação” (Galeria Cómicos, ARCO 85, Madrid), “De um santuário e certos lugares...” (Galeria “JN”, Porto, 1985), a obsessão da morte, túmulos, altares, objectos rituais, de culto.
Quanto aos materiais e modo de execução, assistimos a um progressivo adensamento, desde os tradicionais papel ou tela, utilizados no princípio da década, até à diversidade actual: peles, folha de ouro, barro, madeira, ardósia, metal, vidro. Um processo em que tiveram importância decisiva a madeira, as grandes massas de tinta, utilizadas como suporte de devastadoras intervenções – perfuração, colagem, “assemblage”, pintura – de que acabavam por resultar verdadeiros relevos murais, entendíveis como instalação. Frequentemente, aliás, a experiência da tridimensionalidade e da manipulação dos destroços de materiais foi levada até à construção de esculturas propriamente ditas.
Na evolução desde uma pintura plana até à agitação de objectos literalmente impostos ou arrancados ao primitivo suporte, fica implícito um tipo de execução que, na sua fisicidade, dá conta da diferença, qualitativa que se manifesta, para cada peça, entre a conceptualização prévia e o resultado final. E é essa diferença que instaura a dimensão utópica do trabalho de Cabrita Reis.

Epílogo
O ponto de partida é, como vimos, o de uma lógica analítica, conceptual. Mas essa lógica não se subordina nem se limita ao exercício de uma posição teoricamente elaborada, seja ela minimalista ou outra. Cabrita Reis investe no próprio acto de fazer, no excesso nele inscrito, na vocação espectacular por ele desencadeada, com a convicção dum resultado final – a obra – em que a evidência de uma autoria iniludível venha dotar de uma totalidade utópica o rigor do projecto.
“Da ordem e do caos” (Galeria Cómicos, Lisboa, 1986), “Anima et macula” (Cintrik Gallery, Antuérpia, 1987), títulos das suas duas últimas exposições individuais, dão conta, com exactidão, da convivência dos dois pólos contraditórios que, no seu conflito, definem uma tensão criativa original.

O rigor do conceito obriga-se a passar pelo arrebatamento do fazer para que o absoluto a atingir, a totalidade, jamais deixe de se constituir em espectáculo necessário e evidentemente assinado.

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Alexandre Melo, “O quadrado de ouro”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 3/8/1987