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CARNE DE SOL



Adriana Varejão. Parede com Incisões à la Fontana. 2002.
Adriana Varejão. Linda da Lapa. 2002.




A primeira vez que Marcantonio (um amigo e galerista histórico de Adriana, pioneiro da divulgação de arte contemporânea brasileira no mundo) me mostrou trabalhos de Adriana Varejão pareceu-me, e não sei se ousei dizê-lo, tal era o seu entusiasmo, que eram excessivos. Demasiado. Barrocos, pós-coloniais, decorativos, expressivos, viscerais, antidecorativos, sexuais, multiculturais: demasiado. Parecia-me que o trabalho de Adriana correspondia de modo demasiado perfeito aos estereótipos da minha visão do Brasil, que, então, ainda não conhecia. Depois viria a descobrir que o estereótipo era meu e era eu o responsável pela sua projecção sobra a obra de Adriana. É um erro muito comum.

A primeira vez que encontrei Adriana Varejão voltei a sentir uma impressão de excesso, mas desta vez era uma espécie de excesso de doçura. Para me poupar o trabalho de procurar uma palavra que acabaria por se revelar ainda menos apropriada, chama doçura à indeterminável qualidade de sedução que Adriana transporta no olhar. Esta paradoxal sensação de excesso haveria de longa e lentamente alastrar, até se dissipar em tempos de convívio que se desdobraram por botequins do Rio, lugares de música e dança, samba, choro e outros coisas de que não retive o nome, uma casa em festa com vista sobre Ipanema, uma tempestade tropical na floresta carioca, um estúdio cheio de saunas aberto para um jardim, um mega-evento em Inhotim. As qualidades do olhar, portanto.

Alguém disse, a propósito das pessoas, que os olhos são janelas da alma, ou coisa que o valha. Tratava-se, por certo, de um mentiroso, se não mesmo um criminoso, que com este estratagema retórico visou e provavelmente conseguiu obter ganhos ilícitos. Os olhos só revelam a alma dos cães, até porque as pessoas não têm alma. Quando se pensa dizer ou se diz a alguém que no fundo dos seus olhos queremos ver ou estamos a ver um mundo inteiro, o mundo inteiro, isto é apenas o princípio de um grande erro. No fundo dos olhos de quem quer que seja não há nada e à superfície há apenas o reflexo do nosso olhar. Cair neste equívoco é mais do que um erro, é um perigo.

Toda a riqueza, a felicidade e o infinito da vida começa, está e nunca acaba dos olhos para fora e não dos olhos para dentro. Afinal, o que é que está do lado de fora de um olhar? O mundo inteiro, isto é apenas o princípio de um grande erro. No fundo dos olhos de quem quer que seja não há nada e à superfície há apenas o reflexo do nosso olhar. Cair neste equívoco é mais do que um erro, é um perigo.

A partir do ponto de vista de Adriana Varejão, dos olhos para fora, posso deixar de projectar os meus estereótipos sobre o Brasil, a arte brasileira, ou a arte, a expressão ou barroco em geral.

Um corpo não é um saco de lixo psicológico para dentro do qual se espreita através dos olhos ou de qualquer outro improvável orifício. O corpo é carne. Nalguns casos mais milagrosos, o corpo é carne de sol, que é carne mais saborosa do mundo.

Falemos de Linda da Lapa e de Linda do Rosário (2004), duas esculturas agora apresentadas no CCB (numa mostra antes vista na Fondation Cartier, em Paris) que, tendo origem na anterior série dos «charques», fazem referência ao desabamento, em 2002, no Rio, de um hotel vocacionado para encontros sexuais.

O espaço revestido de azulejos que estas obras nos sugerem não é um espaço virtual, neutro, separados do mundo. É um espaço que nos remete para situações concretas: um talho, um bar, uma cozinha, uma casa de banho, um hospital, ou, aqui, um hotel. O espaço social, o espaço doméstico e o espaço íntimo fazem, assim, a sua entrada no espaço da arte. São espaços em que o corpo deve estar contido e protegido, do mesmo modo que os azulejos protegem uma parede e esta, por sua vez, circunscreve a estrutura de um edifício. O objectivo seria manter o corpo sob controlo. Mas este objectivo é inviável.

O trabalho de Adriana Varejão demonstra que não é possível ocultar o corpo. Em todos estes trabalhos, o rebordo lateral das superfícies pintadas toma a forma de uma larga massa de carne que extravasa todos os limites. A obra surge como uma imensa e monstruosa sanduíche de carne em que as paredes ocupam a posição das fatias de pão. A extraordinária presença desta massa de carne é o verdadeiro acontecimento maior destes trabalhos. O acontecimento em que se inscreve o nosso espanto e a nossa excitação, o lugar do escândalo e do fascínio. O que é esta carne? De onde vem esta carne e o que está aqui a fazer?

A carne é, antes de mais, a carne de um corpo. Tal como sucede nas pinturas com fendas, a autora inscreve o corpo nos seus trabalhos, não sob as formas figurativas tradicionais, mas do modo mais directo e ostensivo: a exibição da incontrolável explosão da carne.

A demarcação em relação aos estereótipos de representação do corpo toma frequentemente, na obra de Adriana Varejão, a forma de desconstrução dos modelos colonialistas de representação dos povos subjugados. Neste sentido, a carne é também, num sentido metafórico, a carne de uma comunidade social específica: as populações subjugadas do Brasil colonial e contemporâneo e as correspondentes formas culturais populares, em que a expressão corporal tem um papel destacado (dança, música, Carnaval). A presença da carne torna-se, assim, a expressão da espessura de uma experiência histórica.

Finalmente, a carne é ainda – e inscrevem-se aqui as especificidades femininas ou feministas da obra da autora – a expressão da irredutibilidade de uma memória e de uma experiência pessoais, biográficas, através das quais se manifesta a autonomia de uma afirmação autoral.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 12 de Novembro 2005, p. 54-55

JUVENTUDE PERDIDA




Gus Van Sant. Last Days. 2005. Michael Pitt (protagonista)


O único mistério da vida é a adolescência. O nascimento é apenas um acontecimento, devido à ausência de consequências racionalmente processáveis, é um não-acontecimento. A ideia de mote produz imensos efeitos, mas a morte, na realidade não existe. Tem falta de um depois documentável. A velhice, sendo talvez uma coisa boa, é o que é. A idade adulta também. Isto é: também é a velhice.

A infância, do ponto de vista do próprio, não é nada, porque o próprio não tem ponto de vista próprio. A infância são as mães. Uma coisa extraordinária mas que não chega a ser um assunto, porque é sempre bastante mais. A infância também serve às vezes para ser depois inventada.

A adolescência é o único mistério. Um rapaz já é um homem, mas ainda não sabe bem o que é, e isso é susceptível de gerar inúmeros equívocos, que por vezes se viram contra o próprio ou contra os que o rodeiam. A violência adolescente aparece como uma espécie de cena de pancada em que agressor e vítima são a mesma pessoa, se é que se lhe deve chamar pessoa. A adolescência é uma forma de fome. A comida disponibilizada pelos mais velhos não presta, e os adolescentes comem a sua própria carne, que por vezes se torna venenosa.

A melhor alternativa à violência são os espelhos, mas estes nem sempre funcionam do modo mais desejável. A descoberta do espelho é a maior descoberta da história da humanidade de cada homem. O rapaz passa a poder ser um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, uma legião de imagens de homens capazes de arrumar e usar o mundo à medida das suas vontades, fantasias e prazeres. Nos melhores casos, o sortilégio dos espelhos inspira imagens de sucesso, que são também uma promessa de sexo.

Mas é preciso ter muito cuidado com os espelhos, porque nunca se sabe exactamente qual a imagem que nos vão devolver. Uma descoincidência radical pode geral uma decepção com consequências catastróficas.
Um dos grandes especialistas da contemplação da adolescência, na plenitude do seus potencial de sedução, é o realizador Gus Van Sant. Recordemos uma das suas primeiras obras, a média-metragem Mala Noche (1985), ou Matt Dillon em Drugstore Cowboy (1989), River Phoenix e Keanu Reeves em My Own Private Idaho (1991). Até chegarmos ao que ele agora considera ser uma trilogia, composta por Gerry (2002), com Matt Damon e Casey Affleck, Elephant (2003) e Last Days (2005), com Michael Pitt no protagonista. Em todos estes casos trata-se de filmar corpos portadores do que chamamos o mistério da adolescência. Um esplendor pasmado, mesmo quando afligido por uma agitação frenética. Consideramos aqui que o estado de adolescência se pode prolongar para além do prazo de validade estética dos candidatos ou do período cronológico que lhe está destinado. É o caso da referência central de Last Days, Kurt Cobain, e de alguns outros mártires juvenis, por vezes um pouco estúpidos.

No meio da desoladora beleza dos desertos de Gerry, um dos protagonistas pergunta: “Para onde é que vais?” Resposta: “Não sei. Ajuda-me a chegar lá”.

A adequação da maneira de filmar de Gus Van Sant aos seus objectos privilegiados revela-se sob a forma de uma frieza e distanciamento peculiares. O autor não finge ser possível uma identificação com a interioridade dos objectos filmados. Este efeito de decepção sistemática é particularmente perturbador no caso de Last Days. Jamais nos é concedida a ilusão de entrar dentro da personalidade dos protagonistas, sentir o que eles sentem ou pensar o que eles pensam. Podemos vê-los de um modo atento, demorado, lento, levemente voluptuoso. Podemos por vezes julgar ver o que eles vêem. Mas nunca saberemos nada sobre eles, como nunca saberemos nada sobre ninguém em estado de adolescência. Ou seja, antes de cair dentro dos formatos vulgarizadores que fazem com que já não reste quase nada que valha a pena ser, porque tudo é já mais do que sabido.

A aparente frieza do método do Gus Van Sant não se confunde com a indiferença, porque é vitalizada por uma empatia estética com os corpos filmados que nalgumas passagens se aproxima do fascínio obsessivo.
Há quem considere Last Days sublime, à maneira de Dreyer. Veja-se a cena da ressurreição e ascensão. O respeito da câmara impede-os de segredar uma psicologia. A aura dos corpos permanece imaculada, transformando-os em maravilhosos exemplos da perdição contemporânea.

Ian Curtis, Kurt Cobain e Michael Jackson são os três (anti?) heróis da Doppelganger Triology (Triologia do Duplo, 2001/2004), que começou a tornar conhecida a obra do artista plástico Slater Bradley, nascido em São Francisco em 1975, estudante na UCLA (Los Angeles), hoje activo em Nova Iorque e cada vez mais presente em galerias e museus nos Estados Unidos e na Europa...

A trilogia reúne os vídeos Factory Archives (2001/2002), Phantom Release (2003) e Recorded Yeasterday (2004), dedicados às três figuras referidas. Nestes vídeos, os protagonistas são interpretados por Benjamin Bock, um efectivo duplo do autor cujo papel é representar Slater Bradley a representar o papel das suas personagens de eleição. A estética adoptada evoca a filmagem clandestina de concertos por fãs amadores, os filmes atingidos pela degradação física ou as experiências de manipulação directa da película na tradição do cinema experimental.

O efeito oscila entre o culto nostálgico das estrelas caídas e a atmosfera fantasmática dos suspiros e aflições do imaginário em busca de objectos e ideias de identificação. No seu filme mais recente, Intermission (2006), o artista retoma a figura de Michael Jackson, mostrando-o a passear na neve e a subir a uma árvore, numa referência pungente a uma infância inviável. A encenação de um relacionamento com um outro tipo de heróis da cultura popular juvenil (Darth Vader) pode observar-se por exemplo, na fotografia de grandes dimensões Uncharted Settlements I (2005), visível numa exposição de grupo na Team Gallery (Nova Iorque).

Na exposição «Bridge Freezes Before Road», comissariada por Neville Wakefield para a Gladstone Gallery (Nova Iorque), encontramos The Yeat of the Doppelganger (2004).

O filme mostra uma rapaz de tronco nu e cabelo louro, um pouco desgrenhado, descendo as bancadas desertas de um estádio para se ir sentar em frente de uma bateria instalada no centro do relvado e iniciar um frenético solo. À sua volta treina um grupo de atletas que correm para trás e para a frente, em explosões de velocidade, como quem ensaia sempre recomeçados arranques de corridas que de imediato se transformam em «sprints» finais. A descrição destas imagens serve de resumo e conclusão desta crónica.

Last Days, de Gus Van Sant, tem estreia marcada para 13 de Outubro.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 27 de Agosto 2005, p. 30-31




O MELHOR VERÃO DA MINHA VIDA




Munteau & Rosenblum. Untitled (what has happened?). 2002.
Munteau & Rosenblum. Untitled (The day doesn't promise...). 2003.



Sempre que se aproxima o Verão, desperta em mim uma tentação melancólica em que uma vaga promessa de excitação, que se advinha já frustrada, se confunde com uma imensa e bem familiar nostalgia em relação a coisas que nunca existiram.

Neste estado de espírito encontrei um objecto ideal de contemplação nas pinturas e desenhos de Muntean/Rosenblum, uma dupla constituída pelos artistas Markus Muntean e Adi Rosenblum que, a partir de Viena, tem vindo a assegurar uma presença constante e imediatamente reconhecível no circuito internacional das artes, graças às suas representações de adolescentes, de acordo com os mais singelos códigos de uma figuração aproximável das ilustrações de livros infantis.

São retratos de jovens surpreendidos em situações de total tédio e descontracção em que uma branda expectativa convive com uma sensação de conforto destituída de qualquer espécie de euforia.

É uma atmosfera de suspensão em que o suave torpor da saciedade parece ter-se antecipado à descabida rudeza da exibição da força de vontade.

As personagens que compõem estas cenas, compostas em tons de pastel de acordo com harmonias quase clássicas, manifestam, nas suas poses, roupas e acessórios, uma plena comunhão com os ideais de juventude, beleza, bem-estar e prosperidade veiculados pelo bom gosto das melhores revistas de moda e «life-style». No entanto, a intensa leveza das cenas que congregam tão cordatos seres humanos, modelados por uma tendencial androginia de recorte pré-rafaelita, está talvez mais próxima da soberana placidez de algumas cenas religiosas (que por vezes servem de referência directa aos artistas) que do pasmo elegante de uma sessão de fotografias de moda.

A atitudes destes jovens configura um nihilismo tranquilo em que a sensação de vazio ou de falta que, noutros contextos, terá inspirado celebradas rebeldias e desesperos deu lugar a uma sabedoria precoce. Uma filosofia da vida contemporânea que prescinde de exaltações heróicas, que já sem sabem mistificadoras quando não trágicas, para dar lugar a uma confortável amenidade que aceita a plenitude da vida como um infinito inconsequente que se estende até ao céu a partir de um vazio central. Aquilo que falta, aquilo que sempre falta. A menos que se considere que a espera é sempre uma promessa. Mas de quê?

As especulações gratuitas que aqui me permiti são legitimadas pelos textos que, à maneira de legendas, acompanham as pinturas e desenhos dos autores e que, por vezes sob a forma de colagens de lugares-comuns das meditações mais quotidianas, configuram uma ética específica.

São palavras que não sabemos se correspondem às reflexões ou à voz interior das personagens representadas, dos autores ou de nós próprios. Por isso mesmo permitem diferentes mecanismos de identificação e ajudaram Muntean/Rosenblum a tornarem-se interlocutores privilegiados do meu próprio estado de espírito.

Se eu fosse uma personagem destes quadros, a legenda do meu retrato diria que o melhor Verão da minha vida foi o que nunca tive durante a adolescência.

Todos os anos, quando as aulas se extinguiam, pensava ou sentia que tinha direito a um Verão perfeito como aqueles cuja imagem inventara a partir de bocados de anúncios a gelados, bebidas e bronzeadores, fotografias de revistas, capas de discos e momentos de filmes ditos fúteis.

Um Verão com grupos alegres de «teenagers», em motas e carros descapotáveis, sempre a caminho de festas, praias e pores-do-sol, à descoberta do sabor da pele dourada, dos lábios salgados e de outras coisas assim.

Não sei se isto é possível fora do glorioso reino do imaginário. Em todo o caso sobraram para mim as obras completas de escritores como Pessoa, Duras, Wilde, ou Fitzgerald que não podem vir mais a propósito. Para não ficar o resto da vida, como os heróis de Fitzgerald, a lamentar um Verão que nunca existiu dediquei-me, com relativo sucesso, a coleccionar fragmentos de um Verão que, assim, a pouco e pouco, vai deixando de não ter existido.
Entre muitos cenários possíveis, e até para variar em relação aos bucólicos cenários mais habituais nos Munteau/Rosenblum, escolho para mim, para efeito desta crónica, o muito cinematográfico cenário de Los Angeles e destaco alguns itens mais pitorescos de uma colecção pessoal que deve ser vista como um «work-in-progress». Mas progresso em direcção a quê?

Tomar o pequeno-almoço num terraço de madeira sobre as areias de Malibu; adormecer e acordar a olhar para as palmeiras e pequenas ondas de Santa Mónica; ir beber «dry martinis» ao fim de tarde a uma casa cor-de-laranja e verde de um amigo; ir ver o pôr-do-sol com um outro amigo no ponto mais alto de uma grande mansão secreta; fazer compras na melhor «boutique» do mundo (Max Field) e dar um salto a Rodeo Drive; pedir um Gibson no Musso & Frank (Hollywood Boulevard); flutuar na piscina do Mondrian antes e depois da intervenção de Philip Starck; mergulhar e ouvir música barroca debaixo de água; dormitar na bóia cor-de-rosa da piscina do Standard; ver os cumes dos arranha-céus reflectidos na superfície da piscina no topo do Standard Downtown à meia-noite; ir passar o dia a passear em Venice a ter ideias para livros que ainda não tive tempo para ir para lá escrever; aprender a conduzir só para poder deslizar de carro pela PCH (Pacific Coast Highway) e pelo Sunset Boulevard.

Podia escolher outros cenários mas enumeração corria o risco de se tornar fastidiosa e já foi cumprido o objectivo de ilustração de uma modalidade particular de identificação com as personagens de Muntean/Rosenblum. É altura de passar à conclusão.

Sei que o Verão voltará a brilhar, perfeito, sobre um corpo, mas entretanto há ainda algumas lágrimas a secar no caminho.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 18 de Junho 2005, p. 52-53




TUDO ISTO É FADO



Francesco Vezzoli. Amália Traída. 2004

Vasco Araújo. Arte e o Fado, Azulejo da Colecção Alma Lusa. 2005
Adriana Molder. Arte e o Fado, Azulejo da Colecção Alma Lusa. 2005




«Povo, povo eu te pertenço!» Esta declaração lê-se no azulejo criado por Vasco Araújo para a colecção «Alma Lusa», uma série de 20 azulejos e CD dedicados ao fado, lançados pelo BPI.

O que podem dizer estas palavras, num pálido eco das mesas palavras ditas por Amália? O que é pertencer? Talvez seja fazer parte de uma comunidade: um povo, por exemplo. Mas o que é o povo? É um povo, o povo ou apenas povo?

Pronunciada por uma «diva», esta declaração não é a constatação de uma entidade preexistente (o povo que a admira), mas sim a criação, a instituição, através das palavras que a convocam, de uma comunidade unificada pelo próprio lugar central da «diva» em torno da qual a comunidade se congrega.

Mas pertencer também é ser objecto de uma relação de posse, que é como quem diz ser possuído. A questão da diferenciação entre sujeito e objecto de posse é sempre complexa no quadro das relações humanas e mais ainda no âmbito da relação entre uma «diva» e o seu público ou entre um artista e o seu público. A figura da «diva», na ópera ou no fado, é uma referência central da obra de Vasco Araújo, que muitas vezes, tal como aqui, se apresenta como duplo da «diva». Na mesma série de azulejos, Adriana Molder recorre também à imagem da Amália. Em poucos anos de regular apresentação do seu trabalho, a artista conseguiu afirmar um lugar próprio da produção imagética, constituindo uma galeria, em constante expansão, de figuras com bem reconhecível pertença autoral.

As imagens de Adriana Molder começam por ser identificáveis através da especificidade do dispositivo técnico que lhes dá origem. As peculiares cambiantes texturais permitidas pela utilização, como suporte, de papel «esquisso» aliam-se a um processo pouco usual de aplicação da tinta-da-china com recurso a formas de controlo de manchas aleatórias. Os tipos de transparência e a inesperada densidade resultante destes processos criam o espaço especial, indeterminado, em que as personagens parecem estar mergulhadas.

Estamos numa galeria de figuras em que se combinam, os ecos da fidelidade retratísticas, a vocação para a invenção ficcional ou narrativa e, pairando em torno de tudo, algo que, para não lhe chamar aura, designaremos por qualidade atmosférica. Uma atmosfera que desloca o estatuto da representação para um estatuto de memória, onde o exercício da distância em relação ao observador se torna irreversível e, nesse trânsito, torna inevitável e quase leve passagem de uma sombra de morte. Todas as personagens são fantasmas, e as imagens são sempre póstumas. Dir-se-ia, então, que tudo isto é fado e que a imagem de Amália, aqui evocada na dupla distância de uma capa de disco, não poderia deixar de aparecer e de ensombrar a galeria de figuras de Adriana Molder.

Vasco Araújo e Adriana Molder, de uma modo que talvez é inevitável para qualquer português, artista ou não, evocam Amália de dentro para fora. Ou seja, a partir de um dentro que é precisamente o sentido de comunidade que em torno do nome de Amália se constituiu e hoje perdura como referência mítica cujo poder em nada se esbateu.

Uma posição diferente em relação a Amália é a do artista italiano Francesco Vezzoli no seu vídeo Amália Traída, recentemente apresentado na sua exposição na Casa de Serralves.

Vezzoli tem vindo a elaborar um sistemático e sedutor trabalho de recriação e reencenação de figuras de «divas» e «stars» do mundo do cinema e da música, adoptando uma atitude em que o fascínio estético se conjuga com um distanciamento «camp» e a emoção lírica não foge aos riscos do «flirt» com o «kitsch».

O autor começa por colocar Amália num contexto mais vasto que o do fado e as suas circunstâncias históricas portuguesas, escolhendo para actrizes do seu filme e veículos de evocação de Amália duas outras «stars» com outras e bem diferenciadas origens disciplinares, culturais e geográficas: Lauren Bacall e Sónia Braga.

Bacall, de quem entre muitas outras coisas ninguém esqueceu o eterno: «just put your lips together and blow», é aqui chamada a, usando os lábios de modo aliás bastante ostensivo, ler, como quem lê episódios de uma novela ou documentário radiofónico, sucessivas cenas da vida de Amália, escritos a partir de informações convencionais obtidas na Internet. O tom, tal como o sorriso, é simpático, mas construído com uma deliberada artificialidade que o aproxima da complacência irónica. A seguir, Sónia Braga, em sucessivos «quadros vivos» reportáveis à estética do «video-clip», vem dar corpo a imagens ilustrativas dos diferentes momentos da carreira e vida de Amália.

É claro que Lauren Bacall e Sónica Braga, para além de interpretarem e apresentarem Amália, interpretam e apresentam também as suas próprias imagens e mitos, nomeadamente, no caso da artista brasileira em Portugal, a imagem de Gabriela (da telenovela que adaptou o romance de Jorge Amado), também ela detentora de um lugar cativo no imaginário nacional português. Deste modo, Amália Traída desestabiliza a visão portuguesa ortodoxa do mito de Amália e perturba o confortável sentido de comunidade que gostamos de lhe associar. Em contrapartida, dá-nos acesso aos prazeres estúpidos e heterodoxos de assistir a um convívio entre três mulheres, três mitos e uma multiplicidade de personagens e memórias que entre elas se sublinham, rivalizam, entrechocam, complementam, sobrepõem ou menorizam. À nossa confusão e fruição não falta sequer, como o nome da obra indica, um ligeiramente desagradável sentimento de traição à Amália a que julgamos pertencer.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 30 de Abril 2005, p. 62-63





O QUE DIZEM OS HORÓSCOPOS



James Coleman. horoscopus. 2004/05. ©MNAC.


Conta Jonas Mekas, pioneiro do cinema «underground» americano, que quando Stan Brakhage, um outro pioneiro, viu pela primeira vez o filme Sleep, de Andy Warhol – que mostra durante seis horas John Giorno a dormir -, a sua reacção foi muito negativa. Surpreendido, Mekas descobriu que o filme fora projectado em 24 em vez de em 16 imagens por segundo. Corrigida a velocidade, Brakhage repetiu a experiência e confessou que uma visão do mundo completamente nova se tinha manifestado perante os seus olhos.

O tempo, a temporalidade da percepção, a modificação do ritmo narrativo e a mudança do regime de relação entre o observador e o objecto artístico são questões cruciais do cinema de Warhol, do cinema de «vanguarda», em geral, e de todas as experiências envolvendo a imagem projectada no terreno das artes plásticas desde os anos 70 até hoje.

Nome maior neste contexto é o de James Coleman, um artista irlandês de que o Museu do Chiado apresentou uma exposição que é já uma das mais importantes da temporada. A exposição combina uma dimensão retrospectiva com a apresentação de uma obra em estreia mundial: horoscopus (2004/05).

É uma exposição cuja visão requer tempo. Mais tempo e uma relação com o tempo diferente daquela a que estão habituados os visitantes de exposições. A simples visão das obras, pelo menos duas vezes, requer duas visitas de, pelo menos, duas horas. Estaríamos próximos da experiência do cinema, mas o modo de circulação do observador é diferente. É a diferença entre as cadeiras da plateia de uma sala de cinema e uma sala de exposições que acolhe imagens e som e na qual se circula livremente.

A digressão pela obra do autor reúne sete peças, desde as históricas Pump (1972) e Playback of a Daydream (1974) até obras de «maturidade», com destaque para Lapsus Exposure (1992/94) e Charon (MIT Project) (1989), uma notável reflexão sobre a natureza da fotografia enquanto «media» e a complexidade do seu lugar estético e politico na sociedade contemporânea.

A nova obra – horoscopus (2004/05) é composta por dois monitores de televisão, dispostos lado a lado, que exibem, quase sempre, imagens de pessoas em diálogo. Por vezes, a imagem ocupa todo o ecrã, geralmente em «close-up». Outras vezes, o ecrã aparece dividido em quatro, cada janela mostrando uma imagem diferente ou nenhuma imagem. As colunas de som, instaladas a meio da sala, permitem ouvir, com uma clara separação, os sons das conversas, umas em inglês, outras em francês, correspondentes a cada televisor.

Esta obra deve ser abordada não apenas na perspectiva da história do uso da imagem em movimento pelas artes plásticas (Bruce Nauman, Dan Graham ou Vito Acconci) mas também da história do cinema e suas relações com o vídeo e a televisão. Para isso, é relevante, por exemplo, o confronto com Godard e as suas experiências na área do vídeo (como France Tour Détour Deux Enfants), ou com o cinema de Marguerite Duras, em que a relação indivíduo/actor/personagem (L’Homme Atlantique) e as relações entre banda-imagem e banda-som (India Song/Son Nom de Venise dans Calcutta Désert) atingiram um rigor e radicalidade ainda hoje difíceis de superar. No ecrã, no plano em negro, lê-se repetidamente a palavra «loss» (perda), que poderia ser um outro título desta obra e evoca uma das ideias fortes da obra de Duras num texto que parte da crítica ao cinema vulgar: «Plus la peine de faire votre cinéma. Plus la peine, Il faut faire le cinéma de la connaissance de ça: plus la peine. Que le cinéma aille à sa perte, c’est le seul cinéma. Que le monde aille à sa perte, qu’il aille à sa perte, c’est la seule politique» (Le Camion, Minuit, 1997, pág. 74).

A sequência de horoscopus dura cerca de uma hora e está dividia em seis segmentos, pelos quais passam duas personagens principais e algumas figuras secundárias. Os conteúdos de cada segmento são, de modo sucinto, os seguintes: uma mulher jovem fala com a protagonista sobre a relação desta com um homem, enquanto dois homens, um deles o protagonista, falam sobre a relação deste com uma mulher; um homem planeia com o protagonista o encontro com uma mulher; um casal de jovens namorados confronta a protagonista; o protagonista move-se como um cego à procura de alguém; os dois protagonistas falam sobre a razão que a terá levado a deixá-lo; os mesmos falam sobre as dificuldades da sua relação.

A maior parte das cenas tem lugar no que parece ser um armazém abandonado, com algumas paredes cobertas por graffitis, executados por uma figura só visível de modo fugidio. Talvez seja apenas uma coincidência o facto de a forma mais típica do graffiti (a «assinatura» personalizada/pseudónimo) ser uma das formas mais visuais, sintéticas e extremas de reivindicação de uma identidade.

A telenovela, a forma hoje mais omnipresente de ficção narrativa com pretensões realistas, centrada em questões sentimentais, é a referência cujo confronto com esta obra de Coleman se impõe de modo mais óbvio. Aliás, a telenovela foi uma referência frequente no trabalho do autor.

Somos confrontados com actores que, no âmbito de uma admirável trabalho de improvisação a partir de uma estrutura fornecida por Coleman, falam obsessivamente dos seus encontros, desencontros, expectativas, angústias e decepções amorosas. Este é o principal ponto de coincidência com o discurso telenovelesco. A partir daqui, Coleman procede a um sistemático processo de subversão e distanciamento em relação à linguagem televisiva. O tom da representação não é o naturalismo piegas típico da telenovela, mas o tom granuloso e sofrido típico, por exemplo, do chamado cinema social britânico. O facto de quatro das oito câmaras digitais utilizadas terem sido colocadas no próprio corpo dos actores transmite às imagens um inquietante acréscimo da proximidade física. Uma desolada afiliação, por vezes próxima da asfixia, percorre todas as cenas. Não temos a imagem nítida e asséptica própria da higiene televisiva, mas sim uma imagem sempre instável, suja, descentrada, que a todo o momento põe em causa a nossa capacidade de ver tudo, continuar a ver, ou perceber de modo claro o que se está a ver.

A demonstração das limitações ou da impotência da nossa visão e a sua afirmação como dado maior da experiência estética e moral da contemporaneidade é, de resto, uma das lições não só deste trabalho como de toda a obra de James Coleman.

A dificuldade de ver transfere o ónus da identificação da mensagem e da caução da autenticidade para a banda sonora, ou seja, para as vozes. O que as vozes nos dizem, aqui de modo explícito e insistente, é que as pessoas por mais que olhem umas para as outras, nunca se conseguem ver tal como são e que isso implica o risco de catástrofe de qualquer relação humana.

Podemos ver e rever esta obra como quem lê sucessivos horóscopos à procura de qualquer coisa: uma palavra, uma hipótese, um alívio, que permita continuar a inventar uma história, ou seja, continuar a viver.

Não existe nenhuma identidade essencial (natural, pré-alienação) que seja possível descobrir ou liberal e, portanto, não existe nenhuma verdade absoluta nos sujeitos a partir das quais se poderia construir uma história verdadeira, certa e acabada de uma relação entre eles. Só existem fragmentos de imagens que correspondem a visões sempre incompletas, instáveis e descoincidentes. É por isso que todas as histórias de amor são complicadas: porque não são apenas histórias e, no entanto, não podem deixar de ser histórias. São reais e são ficções. São o espectáculo do real.

Ao contrário do que pensam os moralistas reaccionários, herdeiros de salvíficos totalitarismos, isto não é uma consequência da perversidade do capital ou da sociedade do espectáculo, mas sim a condição imanente do exercício da liberdade, da imaginação, da vida em sociedade. O espectáculo é, e sempre foi, a única forma real da vida. É por isso que o espectáculo tem de continuar. Na via de uma pluralidade libertária, desestabilizando e multiplicando os estereótipos, através da proliferação das ficções, da diversificação das ilusões e da intensificação dos sentidos. A via da perdição é a única salvação.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 26 de Fevereiro 2005, p. 38-39.