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"... E O RITMO É DE BOI!"




Festival de Parintins na Amazónia Bruno Domingos/Reuters
A propósito dos modos como passamos o tempo ou o tempo passa (marcar o ritmo) resolvi falar da mais apaixonante experiência cultural que vivi no último ano: o Festival Folclórico de Parintins, uma ilha com 100.000 habitantes (recebe cerca de 50.000 visitantes durante o festival) no grande estado do Amazonas, no Brasil.

Iniciado (com formato que se foi alterando) em 1965, o festival realiza-se agora todos os anos no último fim-de-semana de Junho. Numa arena desenhada em forma de cabeça de boi, chamada Bumbódromo, em três noites consecutivas, as agremiações representativas do Boi Caprichoso e do Boi Garantido apresentam, cada uma, três espectáculos inéditos, cada um com duas horas de duração. A exibição reúne música (“Boi” também é uma forma musical), dança, canções, declamações e uma sofisticada cenografia composta por dezenas de “alegorias” — engenhosas construções cénicas animadas por uma multiplicidade de “efeitos especiais”. O espectáculo não envolve nenhum boi, animal vivo. No final das três noites um júri (sempre acusado, por certo justamente, de corrupção) atribui a vitória a um dos bois.

A origem da celebração é descrita de várias formas : festividade de origem religiosa oriunda do Nordeste; fábula mágica sobre a morte e ressurreição de um boi e a salvação de uma comunidade; criação, no início do século XX,  de dois pequenos bois, brinquedos artesanais, por duas crianças que se tornaram figuras de referência local. As descrições disponíveis são intermináveis e contraditórias. Hoje em dia, o elemento mais forte é a  valorização das especificidades culturais da Amazónia, “aldeia mística”.  

Importa o que permanece: a alegria de “brincar de Boi” e a rivalidade entre os Bois.  

O espectáculo oferecido pelos Bois-Bumbá reúne, de forma original, as características de três empolgantes experiências culturais: a ópera, o futebol e o Carnaval.

Ao falar de ópera recordo aproximações a encenações barrocas e, sobretudo, a experiência do “Ring” de Wagner, em particular quando se assiste às quatro óperas em sequência num curto período de tempo. Retenho, em comum, o império do ritmo, o arrebatamento da voz e o poder de atracção visual das cenografias. Sem sequer especular sobre convergências nos modos de combinação entre figuras reais e sobrenaturais, psicologias humanas e destinos transcendentais, deuses, heróis, feiticeiros, gigantes, mártires e meros humanos. Não sei quase nada sobre ópera mas ouso dizer que gosto de ver e ouvir Bryn Terfel (o meu Wotan). Já no caso do Boi, não hesito em enaltecer a voz de David Assayag, actual “levantador de toadas” (cantor) do Boi Caprichoso e, por certo, uma das mais belas vozes vivas no mundo.

Enfim, paixão. Com a vantagem de a música ser, por definição, uma coisa incompreensível, o que significa que pode (não) ser compreendida por todos.  

O tópico da rivalidade conduz-nos ao futebol. A rivalidade entre os dois bois é tal que a pequena ilha de Parintins está, para quase todos os efeitos práticos, dividida em duas partes, em que imperam de um lado a cor azul e do outro a cor vermelha. É o único local do mundo onde a Coca-Cola é vendida em latas não apenas vermelhas mas também azuis. O Bumbódromo está dividido ao meio, ficando de um lado a “galera” do Caprichoso e do outro a “galera” do Garantido. Não se pode (mesmo) estar no meio de uma “galera” vestido com a cor do “Boi contrário”. Durante a exibição do seu Boi o respectivo público (também sujeito a pontuação, pois faz parte da apresentação) actua, acompanhando o espectáculo (de forma ainda mais intensa que o público do futebol, mesmo se considerarmos o público do Liverpool nas suas melhores tardes), enquanto a outra metade da bancada permanece em silêncio e sem iluminação. Contam-se histórias de prefeitos que mandaram alterar as cores nos semáforos e nas passadeiras para peões de acordo com as cores dos seus bois. A natureza lúdica do espectáculo não exclui uma radical rivalidade com elaboradas implicações políticas e financeiras.   

Para ilustrar a dimensão dramática (“operática”) do futebol em geral bastará recordar a saga do Brasil na Copa 2014: desde o atentado colombiano (talvez encomendado pelos argentinos) contra Neymar até ao desfecho “trágico”(1-7).

Enfim, paixão. Com a vantagem de o prazer do jogo (combate) e o desejo de vitória serem sentimentos tão pouco nobres quanto partilháveis por toda a espécie humana.

Aqui chegados, a evocação do Carnaval já deve parecer óbvia, mas importa esclarecer que a principal referência, apesar das semelhanças formais, não é o Carnaval do Rio (que de resto contrata em Parintins muitos dos seus melhores colaboradores cenográficos), um espectáculo relativamente convencional.

Invoco o Carnaval de rua, tomando como exemplo o Carnaval de Salvador, que permite uma participação intensa e abrangente e uma interpenetração fluida entre performers, participantes e espectadores. Carlinhos Brown é famoso (entre outras coisas, por exemplo, o cabelo) por “puxar” o “trio” no chão, no “arrastão” da manhã de Quarta-feira de Cinzas.

 Há diferenças entre ir em cima do “trio eléctrico”, assistir “de” camarote,  ir “dentro” da “corda” (que delimita o espaço de quem pagou para estar junto ao “trio”) ou ir na “pipoca” (fora da “corda”), mas não há como excluir quem quer que seja. Não pode ser proibido estar na rua. As ruas ficam fisicamente cheias.

Enfim, paixão. Com a vantagem de toda a população estar, por definição, convidada e convocada.

Há outra nuance.

No Carnaval do Rio existe um júri que, este ano (obra-prima de ironia e verdadeiro hino à corrupção), resolveu distinguir uma escola que homenageou (a troco de dinheiro, segundo alguns rumores) a Guiné Equatorial, prestigiado bastião da “lusofonia”.

Em Salvador não há um júri mas um método difuso de sondagem que faz emergir, como que por consenso, a música do Carnaval. Não se sabe bem porquê mas toda a gente vai percebendo, ao longo do Carnaval, qual vai ser a música do Carnaval, que acaba por ir sendo cantada por múltiplos intérpretes. Este ano, Márcio Victor (líder da banda Psirico) ganhou com Tem Xenhenhem. Já tinha ganho o ano passado com o inesquecível Lepo Lepo e, em 2008, com Mulher Brasileira (Toda Boa). O ritmo é mais ou menos sempre o mesmo (o melhor do “Pagode”), tal como o assunto (de inspiração, por assim dizer, “neo-pós-feminista” ou “neo-queer”), mas também não há assim muitos assuntos susceptíveis de interessar (quase) todas as pessoas.

Mais aliciante, do ponto de vista sociológico, o segundo lugar alcançado este ano por Igor Kannario, que só à última hora foi autorizado a desfilar, devido à sua alegada relação com pessoas envolvidas em práticas ilegais (e que não são nem políticos nem líderes de grandes empresas ). Os refrões dos seus maiores sucessos são lapidares : “Eu não sou de baixar a cabeça para ninguém” e “Tudo nosso nada deles”, que até o prefeito ACM Neto acabou por ter de trautear em cima de um “trio” em directo para a televisão.

Igor Kannario, o “Príncipe do Gueto”, foi seguido, sem “corda”, pela maior multidão do Carnaval de Salvador 2015: a maioria, como não poderia deixar de ser, veio do Bairro, como não poderia deixar de ser, da Liberdade.

“É nois !”.

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Alexandre Melo, "...E o Ritmo é de Boi!", in Jornal Público, edição especial "25 Dar Tempo ao Tempo", 5 de Março de 2015. 

À PORTA DE UMA ESQUINA EM GREENWICH VILLAGE



Mesmo ao lado do pequeno estúdio que desta vez me calhou arrendar, à porta de um modesto e simpático restaurante italiano, estou a ver um rapaz a fazer conversa de angariação de clientes, com muitos gestos e sapatos sem meias com os atacadores soltos. Achei que podia ser um excelente actor e acabei por saber que tinha chegado há pouco de Nápoles, tem saudades do mar, começou há dois dias a estudar inglês e já era ou ia ser ator. Por mim já é e é bom saber que os bons estereótipos nova-iorquinos continuam a funcionar. Está agora a falar ao telefone com a mãe e vê-se que está muito contente.
É um pouco ridículo pretender caracterizar uma coisa tão extraordinária como Nova Iorque mas o artista Lawrence Weiner, para além de me oferecer ao almoço búzios frescos comprados no mercado, a mim que pensava que só havia mar em Portugal, disse duas coisas que tive de anotar : “Nova Iorque é a única cidade em que se pode estar em casa sem ter a sensação de ser um looser (perdedor)” e uma outra, mais enigmática, “Em Nova Iorque a chuva não vem do céu, vem do chão”. One way & another & another, lê-se numa série recente de trabalhos do autor. De todas as maneiras ao mesmo tempo, a possibilidade de todos os caminhos, as maneiras de levar todos os tempos à comunhão, a contemporaneidade, portanto.
Este é um tema  de The Nightman Cometh (2011) de Yang Fudong (Pequim, 1971). Numa paisagem coberta de neve (a preto e branco), um guerreiro de tempos antigos: ferido e perdido depois de uma batalha perdida. Entre sonho e reflexão, hesita sobre o caminho a tomar e os seus pensamentos dão lugar a três personagens com roupas modernas que, na mesma paisagem, partilham as suas dúvidas e expectativas.
Fudong descreve o filme não como histórico ou alegórico mas como “neo-realista”: “‘Neo-realismo’ é um teatro da história onde entram em jogo as condições correntes das sociedades contemporâneas. Quem realmente existe é o guerreiro nobre com o seu traje de época ou o fantasma com roupa moderna? Quando a cena do campo de batalha e outros eventos históricos aparecem e reaparecem, eles pertencem a quê, ao passado, ao presente ou ao crepúsculo do futuro?”.
The Fifth Night (2010), outra obra incluída na recente exposição na Galeria Marian Goodman, apresenta em 7 ecrãs - a acção vai transitando de uns para outros – estilizadas cenas do quotidiano numa praça que evoca Xangai nos anos 30. Diferentes grupos de  pessoas, na sua maioria homens e mulheres jovens, vão passando, descansando, cruzando olhares e trajectos que nunca se chegam a encontrar. Vamos descobrindo sucessivos fragmentos do espaço até compreendermos que estão todos no mesmo lugar - mas não sentimos que estejam juntos - e que tudo está afinal a ser filmado. Quererá isto dizer que não esteja a ser vivido ?
Lidamos aqui com características da nossa contemporaneidade que a torna talvez diferente de anteriores contemporaneidades. (Hipótese 1) Não só todos os tempos existem ao mesmo tempo, num tempo que não sabemos qual é - embora saibamos que tem de ser o presente -, como não é possível distinguir entre realidade e representação. Os novos meios tecnológicos, no âmbito do cinema e da realidade virtual, fazem com que esta impossibilidade de distinção seja uma evidência técnica (uma questão crucial da reflexão artística atual é a revisão das noções de documentário e ficção e das relações entre elas). Podemos ver com o maior detalhe realista coisas que nunca aconteceram ou aconteceram há muitos séculos atrás e, ao mesmo tempo, por mais câmaras que lhes apontem, não conseguimos ver o que se passa neste momento em praças cheias de pessoas por esse mundo fora, porque ninguém sabe para onde virar a câmara nem o que fazer com o que ela vê. Mas a questão não é tecnológica. Diz antes respeito à noção de realidade e à necessidade do seu abandono ou de uma nova conceptualização que lhe dê textura. Uma reinvenção da terceira dimensão não, agora, na pintura, mas na velha realidade, ela própria.

(Hipótese 2)
Na realidade, aquilo a que as pessoas chamam realidade (incluindo as pessoas que acham que criticam a dita realidade) é tão desprovido de sentido que somos forçados a concluir que não existe. Mas então o que é que existe? Existem os corpos vivos, ou seja os corpos que se mexem, e existe o cinema. Vamos por partes. Mas então os corpos vivos não são reais? São, mas, pobres corpos, não chegam para fazer uma realidade, muito menos “a” realidade. O cinema é preciso fazê-lo. Pode-se fazer tudo o que se quiser e depois de estar feito é eterno como a vida. Mas não é a mesma coisa. Para acabar rapidamente com esta deriva especulativa que talvez pareça absurda digamos que não se deve confundir a vida com a realidade. Só há vida.
Já é um hábito. Quando vou à Galeria Marian Goodman, a menos que seja uma inauguração seguida de jantar, passo depois pela Abercrombie & Fitch para descontraír e apreciar um dos melhores castings do mundo (refiro-me aos funcionários). É difícil suportar a música e a roupa só é possível porque a banalidade a salva da vulgaridade mas as pessoas fazem fila de espera para entrarem ou serem fotografadas ao lado do rapaz de tronco nu que adorna a entrada (no Inverno põem-lhe um aquecedor por cima ou um casaco de peles, sintético, imagino).
Ouso falar desta loja porque lhe descobri alguma legitimidade artística na pessoa do autor que faz as pinturas murais que acompanham as escadas. Na galeria Clampart, em Chelsea, soube que se chama Mark Beard. A exposição que assina enquanto curador reúne pinturas de Hippolyte-Alexandre Michallon (1849-1930) e Bruce Sargeant (1898-1938). Segundo as biografias disponíveis, Michallon, de origem francesa, ensinou em Londres e caiu em descrédito, no início do século XX, devido à sua recusa do modernismo e fidelidade à representação académica do corpo humano. Em 1922, Sargeant (de quem Beard diz ser sobrinho-neto) era o seu único discípulo e se não tivesse morrido aos 40 anos teria alcançado o prestígio de nomes como Whistler, Thomas Eakins ou Winslow Homer, “artistas com os quais o seu estilo muitas vezes é comparado”. Trata-se de personagens inventadas e todas as pinturas são feitas por Beard.  Vários tempos ao mesmo tempo com realidade, história e ficção entrecruzadas.
Falamos de corpos em movimento e talvez não seja por acaso que a performance é a nova estrela em ascensão no panorama da arte contemporânea. A retrospectiva de Marina Abramovic, no MoMA, foi o momento revelador e, enquanto a artista se encena cada vez mais enquanto diva da performance e atinge a consagração absoluta, a Bienal do Whitney consagrou a tendência, dando à dança e à performance um lugar e um espaço (físico, um andar inteiro, e conceptual) da maior relevância e um prémio.
Numa discreta esquina de uma zona de passagem que passou despercebida a muitos visitantes da Bienal, entre paredes cobertas com pequenos esquemas do interior de uma complicada casa, o manequim de um rapaz muito jovem, com um fantoche numa mão, diz um monólogo interior em que os labirintos indecifráveis do seu tenro espírito se confundem com corredores paralelos de uma casa sem fim e sem saída. De vez em quando os lábios mexem ou o peito respira soltando um suspiro. O texto é de Dennis Cooper, um dos maiores escritores americanos vivos (pensem em Sade ou Hervé Guibert no século XXI). Leia-se o livro mais recente, The Marbled Swarm, (em Portugal o autor está editado pela Bico de Pena, com Purosexo.com e Fio Solto), que se relaciona diretamente com esta peça. A habitual fixação em corpos jovens atormentados, na carne e no espírito, e abandonados a cruéis narrativas, errantes e sem redenção. O resultado final desta colaboração entre o escritor e a artista Gisèle Vienne há-de vir a ser uma encenação ou performance.
Quando entrei na Galeria Elizabeth Dee, para ver a exposição de Ryan McNamara (jovem artista americano que trabalha em dança, performance e artes plásticas), o artista convidou-me, como a todos os visitantes, durante duas semanas, para me associar a umas pessoas que já lá estavam numa pequena coreografia que ele propôs e fotografou. A mim, como não quis fazer exercício físico, coube-me ficar em pé em cima de uma cadeira enquanto um casal circulava à minha volta mexendo os braços. Com todas as fotografias que produziu, McNamara fez uma série de colagens com as quais cobriu painéis, esculturas e outros objetos apresentados no mesmo espaço, nas duas semanas subsequentes, constituindo a segunda parte da exposição. Uma maneira original e eficaz de responder a uma questão da maior atualidade – como é que se expõe performance? - , tendo até o cuidado de assegurar a participação do público.  
Para entrar no stand da Galeria Sean Kelly, na Feira de Arte em Basel, não passei por uma porta mas pelo estreito espaço disponível entre um homem e uma mulher nus, virados um para o outro. É uma recriação de uma performance de Marina Abramovic (Imponderabilia, 1977). Perguntei o preço mas por estranho que pareça a obra não está à venda.


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 Última das três crónicas nova-iorquinas publicadas no Jornal 'Público', a 16/17/18 Agosto de 2012, na secção de Cultura. (pp: 24-25)

UM ABRAÇO CADA VEZ MAIS APERTADO




“Let the best man win!”
Gore Vidal


Foi uma alegria ver The Best Man (Gore Vidal, encenação de Michael Wilson) no Gerald Schoenfeld Theatre, decorado como se para uma Convenção Partidária à americana, com bandeiras por todo o lado e funcionários com chapelinhos a condizer. Uma comédia de bom gosto sobre tráfico de influências, jogos de sotaques retóricos, boas maneiras e chantagem (tudo o que adorna uma democracia saudável) nos bastidores da escolha de um candidato presidencial (em rigor nos quartos do hotel onde decorre a convenção). Quão deliciosa seria a vida política se Gore Vidal lhe escrevesse todos os diálogos e se os papéis fossem interpretados por pessoas como James Earl Jones, Angela Lansbury, John Larroquette ou Candice Bergen.
Joseph Alsop não lhes escrevia os discursos mas andava perto. Foi um dos mais influentes comentadores políticos americanos nas décadas de 1950 e 60, com acesso directo às orelhas dos Presidentes. Imaginar um tempo em que o que se escreve num jornal tem alguma importância e são os jornalistas que telefonam aos políticos a dar conselhos.
John Lithgow  tem uma interpretação admirável como Joe Alsop em The Columnist (David Auburn, encenação de Daniel Sullivan), uma peça um pouco escolar e entediante, se excetuarmos a cena de abertura em que um jovem agente da KGB (Brian J.Smith) se veste depois de um exercício de espionagem na cama, destinado a posterior chantagem.
Para não falar só deste lado do poder também vi Death of a Salesman (Arthur Miller, encenação de Mike Nichols) que, apesar da notável performance de Philip Seymour Hoffman, continua a parecer-me uma das peças mais desagradáveis e menos inteligentes do respectivo período. No entanto, milhares de pessoas precipitaram-se na blogosfera alegando as mais emocionadas identificações com os desgraçados protagonistas.
Uma pungente demonstração da tristeza do mundo contemporâneo e da miséria ideológica a que parece condenado.
Da representação teatral temos de passar para a política já que (Hipótese 1) a política é  gestão de imagem e discurso : encenação, texto, televisão, internet.
Vi umas pessoas que estavam em Washington Square e que alguns cartazes e papeis me  revelaram pertencerem ao movimento dos “ocupadores”. Há algo de tocante, quase poético, nesta insistência em ser ouvido apesar de não ter nada para dizer, estar presente a nada fazer. Tudo muito anos 70. Já saiu um disco em que os cabeças de cartaz são os meus queridos David Crosby & Graham Nash e há uma participação de Yoko Ono, pessoas que tanto nos alegram só por estarem vivas.
É interessante  ouvir os “ocupadores” falar dos 99% que dizem representar, os que não são os mais ricos (1%). Era tão bom que tivessem uma ideia sobre a forma de organizar uma sociedade mais feliz. Poderiam criar um movimento político e não teriam dificuldade em ganhar eleições (sempre são 99%). É uma pena.
O que nos obriga a falar de política, política a sério, ou seja, teatro sob a sua forma mais vulgar. Falemos das presidenciais.
A primeira vez que vi Rick Santorum (ainda alguém se lembra dele?) pensei que era um wannabe actor contratado nos confins da sua terra (personagem que sempre inspira algum carinho) para animar as ficções da Fox News (não é que Bill O’Reilly precise de ajuda) que, ainda assim, já é, 24 horas por dia, a melhor non-stop truly conservative soap-opera dos saudosos anos 50. Vieram-me as lágrimas aos olhos quando o ouvi falar do Demónio, e da maneira como ele se insinua junto de casados e abençoados casais heterossexuais para os induzir a usar contraceptivos, ou do modo como na europeia Holanda os idosos são obrigados pelo Estado a andar com uma pulseira antes de, quando se tornam demasiado idosos, serem mortos nos hospitais públicos. Deixei as lágrimas escorrer quando uma assessora de imprensa, confrontada por um ofendido funcionário da embaixada da Holanda, lhe respondeu com um profundo sorriso : “He always speaks from the heart” (“Ele diz sempre o que lhe vai no coração”). Que mais se pode pedir ?
Apesar da Fox, não deixa de ser enigmático que um dos políticos mais carismáticos dos últimos tempos, com a cor certa, um Prémio Nobel e uma retórica quase evangélica que já arrebatou Berlim, Chicago e Hollywood, esteja empatado nas sondagens com Mitt Romney (entretanto, na última quarta-feira Obama passou-lhe à frente), a respeito do qual não ocorre nada para dizer.
É estranho que Obama não tenha conseguido convencer uma clara maioria de americanos que a culpa da crise económica era dos operadores financeiros e não do governo federal (e dele próprio), nem tenha conseguido explicar as vantagens da sua grande aposta, a reforma do sistema de saúde (parece que também ninguém se deu ao trabalho de ter a certeza que a reforma não era inconstitucional). Já há quem insinue que, afinal, Hillary Clinton era o homem certo para o lugar. Ela tem quase tudo what it takes.
Claro que a culpa é sempre da economia (e/ou da religião) mas quem ler o último livro de Paul Krugman (End this Depression Now!), mais um Prémio Nobel, poderá perguntar porque é que, com a devida vénia a Keynes, não se aplica a receita (os estímulos) para acabar com a crise. Ele diz que é tão fácil.

(Hipótese 2)

Mas há um problema. O saber económico não é uma ciência nem nada que se pareça. Não há consenso entre os economistas nem sequer em relação aos princípios fundadores e objectivos fundamentais do exercício da disciplina. Mesmo que coincidam no diagnóstico dividem-se entre terapêuticas opostas e incompatíveis. Chega a ser cómico. Como alguém já disse, nunca aconteceu nada que não fosse previsto por um economista, só que, perante a mesma circunstância, tudo o que não aconteceu também foi previsto pelos economistas.
Por isso é tão fácil deslocar as questões para o plano ideológico e defender a liberdade e o direito à luta pela felicidade (que algumas pessoas associam à obtenção de muito, muito, muito dinheiro) como prioridades absolutas, mesmo contra o mais elementar bom senso em matéria de política económica. O discurso anti-capitalista mais radical (com apogeu histórico no terror comunista) não faz mais do que reforçar o paradigma oposto.
Também gostava de falar de política na sua forma mais superior até porque se trata da experiência mais substancial desta Primavera nova-iorquina. O ciclo O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner, encenado por Robert Lepage no Metropolitan. Não sei falar de música nem cantores e tive sorte porque Lepage diz que fez uma encenação destinada a quem não é melómano. A grande máquina cénica que provocou controvérsia é uma espécie de teclado gigante cujos movimentos vão criando rampas, escadas e plataformas, servindo ainda de suporte às projecções que constituem uma parte substancial da cenografia. Não me incomodou. 
A hipotética equivalência entre palco e ecrã é, aliás, um tópico fascinante para debates estéticos contemporâneos.  
O meu cenário preferido é (apesar de Chagall) o próprio Metropolitan, por fora e por dentro, de fora para dentro e de dentro para fora, as escadarias e, acima de tudo, em todos os sentidos, os candeeiros. Gostei muito de ver as quatro óperas em sequência em duas semanas. Torna-se possível tentar perceber. Tentar.

O meu herói é Wotan. O homem, ou seja, quero dizer, o Deus (trata-se afinal do último Deus ou do primeiro homem ou será a mesma coisa?) , fez tudo o que era possível, e mesmo algumas coisas impossíveis, e mesmo assim saiu tudo mal.
O problema, já sabíamos, é o problema de saber o que é que se pode saber. Desde o 1º ano da universidade, nutro uma grande simpatia pela epistemologia porque se for levada a sério consegue cancelar todos os outros saberes.
Será possível conciliar o conhecimento, o poder, a lei, o amor e a liberdade? Parece que não. Nem para os deuses, nem para os heróis, nem para os homens e mulheres comuns.
É possível ser feliz? Parece que não mas se querem mesmo saber perguntem a Wotan.
Há agora uma nova espécie de conselheiros terapêuticos, com procura crescente, chamados wantonists (não confundir com wotanists), cuja função é dizer às pessoas o que é que elas querem. Sempre é um ponto de partida.
Mas talvez a ignorância seja uma forma de santidade. Será que um abismo de ignorância pode produzir uma Santa?
Há muitos anos que me perturba o facto de dizerem que não se deve ficar o dia inteiro deitado numa praia a apanhar Sol, com pequenas pausas para banhos de mar. Sarah Palin libertou-me deste problema. Segundo se ouve em Game Change (documentário ficcionado sobre a campanha presidencial) fico a dever-lhe a única explicação que até agora consegui compreender em relação ao problema do aquecimento global.

É Deus a querer abraçar-nos com mais força ainda. Nunca quis outra coisa na vida e no meu caso nem precisa de ser Deus.



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Segunda das três crónicas nova-iorquinas publicadas no Jornal 'Público', a 16/17/18 Agosto de 2012, na secção de Cultura. (pp: 26-27)

EU E O BEAU NA CIDADE QUE NUNCA DORMIU : NOVA IORQUE




“ -  I’m trying to recover.
   - From what, from life ? ”   
(de uma conversa com Borriss Mir)

Ele disse que se chamava Beau. Faz pensar em Beau Brummell, modelo insuperável de dias perdidos, Londres, final do século XVIII, dandies. Um século depois foi Oscar Wilde. No século passado, Andy Warhol inventou-se. Agora,    como é que se pode ser dandy em Nova Iorque no princípio do século XXI ?
 
A pergunta não é fútil porque (Hipótese 1) seria útil encontrar uma atitude que combine o distanciamento necessário ao exercício da inteligência (um estilo: um distanciamento estético; porque o distanciamento intelectual, dito crítico, é uma falácia) e a empatia com a infinita diversidade do mundo (cosmopolitismo), sem rendição ao obsceno dramatismo com que o mundo se expõe sob os modos mais  grosseiros. Para desenhar esta atitude as artes e ficções são talvez mais adequadas que análises correntes que pressupõem a existência da realidade que deviam produzir.
É  uma questão decisiva mas não adianta muito para este texto. Não é possível. Vale mais esperar pelos novos anos 20, pensar em decadências e smokings cor-de-rosa e comparar com Gatsby. Não era Beau mas sim Bo, como em Boris, o pai nasceu na Rússia, a mãe na Letónia. É um músico ou cantor ou apenas, como qualquer um, performer. O suficiente para me levar a sítios que estiveram e se calhar ainda estão em moda no Lower East Side.
Era para ser Brooklyn mas levaram-me para ali. Parece tudo igual a East Village, há 30 anos, quando fui pela primeira vez a Nova Iorque e me disseram, sem serem conservadores, para não andar pela Bowery, não passar para baixo de Canal Street e não ir ao Bronx. Era perda de tempo, não havia lá nada para ver. Não é nada tudo igual. É melhor porque estamos vivos e Nova Iorque é imortal. Nem todos os fundamentalistas do mundo, todos juntos, poderiam destruir o coração da liberdade. Hão-de morrer todos, um por um, porque a vida é a liberdade.
Nunca percebi como é possível não gostar de Nova Iorque. 

(Hipótese 2)
Nova Iorque não é o centro real de um mundo tão grande e tão global que já não pode ter centro. Também é cada vez menos, embora ainda o seja, o centro do mundo das artes, porque este se está a tornar, pouco a pouco mas depressa, de facto, o mundo. Depois do 11 de Setembro, acontecimento inaugural do século XXI,  Nova Iorque é apenas, mas de modo absoluto, o centro mítico (no sentido em que se fala de Atenas ou Roma) de um Império da Liberdade que se distingue pela capacidade de, enquanto forma cultural, acolher todos os que reclamam a liberdade do exercício da imaginação e o direito à procura da felicidade. A Internacional da Liberdade contra as Internacionais do Terror.
Um dos lugares chamava-se Hotel Chantele e havia um Frank a oferecer bebidas  a quem conhecia quem o conhecia. O costume. Há quem diga que nunca se é demasiado rico, nem demasiado magro. Não creio que se possa ser mais magro  que estes jovens que se alimentam de margaritas, saladas e migalhas de drogas. É sempre agradável estar na presença de um bando de frágeis tesouros. A quem não persiga o ouro da magreza, Nova Iorque oferece múltiplas possibilidades. Até é possível comer estrelas Michelin a preços relativamente módicos desde que seja à hora de almoço e se dispense o vinho e a sobremesa.
Fiquei comovido quando ao fechar da noite ouvi uma canção muito antiga chamada Let’s Dance. Se não estivesse sentado era capaz de ter dançado. Assim só me levantei para ir dali para um sítio que não tinha nome nem existia antes de pessoas mais ou menos recomendáveis que estavam na rua nos terem dito para ir lá ter dali a meia-hora que foi o tempo de montar uns plasmas, arcas frigoríficas, cadeiras desirmanadas e uns lençóis pendurados do tecto para criar ambiente. Um after-hours artesanal com cerveja barata e tudo.
Num outro dia, depois de almoçar, estava a chover e estava por ali numa esquina a discutir a questão da magreza com o jovem realizador Daniel Schmidt quando apareceu uma pessoa muito magra a perguntar onde é que podia comprar cigarros. Uma magreza e penteado peculiares, assim de tipo mais antigo e europeu.
Uns dias depois, na estreia de Antigone Sr. Twenty Looks or Paris is Burning at The Judson Church (L) no New York Live Arts, vi que era Rob Fordeyn, um bailarino belga tão admirável quanto Thibault Lac, francês, que (com Stephen Thomson e Ondrej Vidlar) faz o novo espetáculo (parte de um work-in-progress) do coreógrafo (e também bailarino) Trajal Harrell.
O que poderia ter acontecido se os bailarinos do Voguing no Harlem se tivessem encontrado com os bailarinos “pós-modernistas” do Judson Dance Theatre ?
Esta resposta passa pela tragédia grega e desfiles de moda. “Mais do que uma ficção histórica trata-se de transplantar a proposta para um contexto contemporâneo. Esta experiência era impossível nos Bailes ou em Judson, mas, aqui e agora, criamos uma terceira possibilidade” (press-release).
Numa conversa anterior ao espetáculo, Bill T. Jones referiu que seria interessante “levar este trabalho de volta às comunidades onde o Voguing teve a sua origem” e fez algumas observações sobre o peculiar modo de andar, pleno de consequências, dos homens negros. O que se confirma, mesmo sem ir ao Bronx, observando namorados a passear ao pôr do Sol no Hudson entre West Village e Tribeca.
Harrell sublinhou que lhe interessa sobretudo explorar as possíveis histórias alternativas, o trabalho da “imaginação histórica”. No programa, André Lepecki escreve: “O que é necessário não é apenas olhar (repetidamente, pelo menos vinte vezes...) para Judson e Harlem mas ligá-los através das mais improváveis conjunções, nas mais diversas instâncias, de modo a produzir tantas contramemórias quantas as ocasiões em que a obra for dançada, em tantos presentes quantas as versões que da obra se proponham”.
Imaginar o  pagode baiano dançado em pontas é uma das minhas fantasias favoritas.
Duas coisas aconteceram ao mesmo tempo mas não se cruzaram. Se hoje as cruzarmos, quantas coisas estão a acontecer? A história muda? E se forem coisas que não aconteceram ao mesmo tempo? E se as cruzarmos com coisas que nunca aconteceram ou não chegarão a existir apesar de estarem a acontecer?
É um pouco confuso porque se trata não já da condição pós-moderna mas da era que se lhe seguiu. Todos os tempos e todos os lugares, ficção e realidade.

(Hipótese 3)
É mais uma questão decisiva: os cruzamentos dos espaços e tempos socioculturais; a indissociabilidade de uma infinita diversidade de tempos e espaços passados, presentes e futuros, reais, imaginários ou ficcionais.
Tudo o que existe é um produto contingente da dinâmica do processo de confronto e negociação entre estes espaços e tempos. É por isso que não há identidades, a própria palavra identidade é um abuso ideológico. Não se devia utilizar. Só há cruzamentos, contradições, confrontos e negociações sempre em processo de metamorfose. A extrema complexidade dos mundos da arte, hoje, e a generalizada implantação de dinâmicas de contaminação transdisciplinar é uma consequência deste fenómeno social e cultural mais geral, global.
A propósito do seu trabalho sobre o último filme (inacabado) de River Phoenix falei com Slater Bradley sobre a impossibilidade da nostalgia: o que já foi continua a ser ao mesmo tempo que o que é. Os fantasmas estão entre nós e são mais ou menos como nós. Isso provoca melancolia (título da exposição deste artista que irá inaugurar a 20 de Setembro na Galeria Filomena Soares).
Esta conversa foi à volta de uma piscina no telhado de um clube-hotel chamado Soho House que parece estar em voga (é preciso dar o nome e mais o nome de um membro anfitrião) para a gente das artes. Estava muito Sol mas é estranho porque a cena pertence a Los Angeles ou Miami e no entanto estamos em Manhattan e sem praia e também pode ser assim.
Uns dias depois, Slater mandou um SMS a dizer que estava a pensar mudar o título da exposição para Le Diable, Probablement. Dennis Lim (crítico de cinema no New York Times e Artforum) tinha-me dito que a não perder em Nova Iorque, nos cinemas, só as novas prints dos filmes de Robert Bresson.
Vi Le Diable, Probablement, talvez em estreia mundial, no Grande Auditório da Gulbenkian. Lembro-me da emoção com que João Bénard da Costa o apresentou    e sei que não dormi e passei a primeira aula da universidade do dia seguinte a escrever não sei o quê (não encontro o papel) a propósito do filme. Voltou a funcionar. Não é fácil ser mais eloquente nem mais atual. Os tempos estão a ficar todos ao mesmo tempo. “Qui nous manoeuvre en douce? Le diable, probablement”. O filme passou na BAM (Brooklyn Academy of Music) e já que estava  daquele lado fui comer um steak ao Peter Luger porque há quem diga que  é o melhor steak do mundo.
Gostei muito. 

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Primeira das três crónicas nova-iorquinas publicadas no Jornal 'Público', a 16/17/18 Agosto de 2012, na secção de Cultura. (pp: 26-27)