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NEM PÚBLICO NEM PRIVADO



Considerações sobre colecionismo a propósito da Coleção Millennium bcp


Capa | Catálogo Júlio Pomar, Obras da Colecção Millenium bcp

O convite para escrever um texto para o catálogo de uma exposição de obras de Júlio Pomar na Coleção Millennium bcp constitui uma oportunidade para, nas circunstâncias atuais da sociedade portuguesa, proceder a uma tentativa de contextualização do tema no quadro mais geral da situação institucional das artes e da cultura.
A conjuntura em que vivemos sugere a necessidade de uma reflexão sobre políticas culturais e, em particular, sobre a questão das relações entre público e privado que, ao longo das últimas décadas, lhe tem estado associada de uma forma muitas vezes determinante.
Ao longo de quarenta anos de atenção ou intervenção na área cultural, pude conviver de forma direta, e por vezes polémica, com posições antagónicas em relação a este tópico.
Se quisermos formular esta oposição de uma forma simplista, encontraremos, de um lado, os defensores da intervenção voluntarista do Estado e de abrangentes políticas culturais públicas e, do outro lado, os defensores da lei do mercado e da livre iniciativa e concorrência dos produtores artísticos e das indústrias culturais. Nas suas versões extremas, poderiam corresponder a estas posições,  por um lado, o direito à arte e à cultura, na plena diversidade das suas expressões, como um direito constitucional que o Estado teria obrigação de assegurar, e, pelo outro lado, a pura e simples supressão da política cultural. Claro que nenhuma destas posições extremas é fácil de defender dentro dos limites de uma razoabilidade esclarecida. As razões são fáceis de explicar.
O Estado, independentemente de se poder ou não considerar que essa deveria ser uma das suas funções, não tem dinheiro para assegurar a todos os cidadãos o direito à produção e ao consumo artístico e cultural. No caso de Portugal, aliás, o Estado, estando falido, não tem dinheiro para nada (veremos o que se irá ou não conseguindo continuar a arranjar, por exemplo, para a saúde ou a educação). Mas mesmo em estados mais prósperos há limites, nomeadamente políticos, para a magnanimidade da ação cultural do Estado. Quanto é que os eleitores aceitam, mesmo tendo o cuidado de não se lhes perguntar, gastar na política cultural?
No que diz respeito à defesa da aplicação às artes e à cultura das regras do mercado puro (e portanto selvagem, como tudo o que é puro), ela significaria, em Portugal, o puro e simples desaparecimento de atividades como o cinema, o teatro, a dança ou a ópera. Uma situação que traria satisfação a algumas mentes mais perversas e/ou sofisticadas, mas que não parece defensável no âmbito das conveniências do bom senso.
Resta a conclusão óbvia. Em matéria de política cultural, tudo o que é possível fazer é uma gestão de compromissos e negociações que articule recursos públicos e privados (muitíssimo escassos) ao serviço de uma diversidade e pluralidade (tendencialmente infinitas, por definição) de ações suscetíveis de equilibrar os interesses e ambições da multiplicidade de agentes envolvidos nestas práticas. Nem público nem privado, portanto, mas antes pelo contrário. As histórias da Fundação de Serralves ou do Centro Cultural de Belém são disso exemplos. Uma espécie de assim-assim.

A área das coleções de arte é uma das áreas em que a articulação entre público e privado é mais necessária, mais consensual e mais fácil de pôr em prática.
Centrando a nossa atenção no último século, observamos que Portugal conseguiu  chegar ao fim do século XX sem ter qualquer instituição ou coleção públicas relevantes dedicadas à arte moderna ou contemporânea. Mesmo depois da abertura (Serralves, CCB, Culturgest) ou reabertura (Museu do Chiado) de instituições vocacionadas para este período, os contributos mais significativos para mostrar ao público a arte dos séculos XX e XXI (seja nacional ou internacional) continuam a ser dados por coleções privadas, como sejam as coleções Gulbenkian, Berardo ou Ellipse. Importa ainda considerar as coleções de entidades como, entre outras, a Caixa Geral de Depósitos, a EDP ou a Portugal Telecom. Pesquisando a situação de algumas destas coleções (e mesmo sem falar dos casos do Banco Português de Negócios, do Banco Privado Português e dos velho e novo Banco Espírito Santo) encontraríamos, hoje mesmo, um interessante leque de modalidades assim-assim, de nem público nem privado. É no quadro deste panorama de fundo que a Coleção Millennium bcp desenha os contornos do seu lugar próprio.

A Coleção Millennium bcp é, numa primeira caraterização no âmbito de uma tipologia das coleções, uma coleção privada institucional com a particularidade de a instituição em causa ser um dos mais importantes e mais recentes (embora herdeiro de longas e diversas linhagens e, também, de várias e muito diferenciadas coleções de arte) bancos privados portugueses. Um banco de referência e, por inerência e/ou opção, portador de um sentido de responsabilidade social e cultural que, em nome do seu interesse próprio e/ou do interesse comum, se projetou numa coerente estratégia de mecenato e também numa estratégia de partilha com o público da sua coleção de arte.
O que nos leva de novo à questão mais geral das relações entre privado e público, no quadro genérico da questionação das formas de intervenção cultural nas sociedades atuais. Trata-se de pensar as formas de articulação entre intervenções privadas (mecenato, patrocínio, ação cultural autónoma) e políticas culturais públicas.
Como referimos acima, esta é já por si uma questão controversa, quer na sua conceptualização teórica quer nas diferentes formas do seu possível exercício pragmático. Uma questão que em Portugal, dada a sua multisecular situação de subdesenvolvimento cultural e económico, ganha cambiantes particularmente sombrios. Uma questão que, hoje em dia, ganha renovada pertinência, devido à crise financeira global revelada em 2008 (com efeitos que estão longe de se terem extinguido no sistema bancário, designadamente português), devido à específica crise das políticas económicas na União Europeia (cujas consequências estão ainda em pleno desenvolvimento sem que sejam previsíveis nem o prazo nem a natureza do seu desfecho) e, com particular acuidade, devido ao colapso das políticas orçamentais de vários países europeus, entre os quais Portugal.
No caso de Portugal, assistimos a uma conjugação de circunstâncias particularmente perversa, em que a miséria do Estado (por vezes potenciada pela miséria de discursos anticultura e antipolítica cultural) se combina com uma proliferação de dificuldades em grandes instituições privadas (designadamente bancos), algumas delas responsáveis por recentes atuações significativas na área das artes.
Perante este quadro, talvez valha a pena citar a máxima segundo a qual onde alguns vêem problemas outros vêem possibilidades. O atual contexto da sociedade portuguesa torna ainda mais necessária do que difícil a articulação entre o que possam os poderes públicos e o que ainda podem algumas instituições privadas.
Nesta perspetiva, é já muito o que pode a Coleção Millennium bcp, e mais ainda o que esperamos que a sua valorização social e cultural venha a tornar evidente, na medida em que se vá alargando o entendimento das suas potencialidades em termos de um relacionamento aberto com a sociedade.
Neste sentido, é importante assegurar a continuidade da coleção, quer numa perspetiva patrimonial, quer numa perspetiva sociocultural. A consolidação da estrutura de financiamento e a definição de uma estratégia de enriquecimento da coleção (com o indispensável enquadramento especializado) através de aquisições e outras formas de integração de obras em função das oportunidades e circunstâncias cobre o primeiro aspeto. A ponderada continuidade do trabalho curatorial (diversificado e especializado) de organização de exposições e uma estratégia de comunicação apontada à abertura a públicos cada vez mais alargados e diversificados (através de publicações e outras iniciativas) são a base da prossecução do segundo aspeto.
Em todas estas componentes nunca será de mais sublinhar a importância da criação, desenvolvimento e aprofundamento de colaborações e complementaridades com outras instituições e coleções afins, públicas ou privadas, institucionais ou particulares. A cooperação e as parcerias entre público e privado e a maximização do potencial das sinergias disponíveis ou imagináveis são uma componente indispensável para viabilizar um mínimo de sustentabilidade para a dinâmica da ação cultural na área artística em Portugal, sobretudo num momento de profunda crise financeira, económica e social.

Neste quadro, e para dar um exemplo concreto, seria muito importante que o Estado (ou alguma entidade com as necessárias ambição, clarividência e capacidade financeira) fosse capaz de formular uma solução estratégica para a valorização social e cultural (e nessa medida, a prazo, também económica) das coleções privadas que vão ficando sem rumo, sem razão de ser ou sem viabilidade, na sequência da falência ou crise de entidades empresariais privadas. Em termos práticos, a proliferação de coleções privadas mais ou menos suscetíveis de virem a ser«abandonadas» pelos seus proprietários poderia constituir, a existir uma estratégia pensada e concertada a este respeito, uma oportunidade ideal para colmatar ancestrais lacunas do colecionismo em Portugal.

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NOTA – As citações iniciais são, por ordem, de Carlos Santos Ferreira, Júlio Pomar e Álvaro Cunhal.

Texto publicado em catálogo por ocasião da exposição 'Obras da Colecção BCP - Júlio Pomar', de 04/10/2014 a 06/01/2015, comissariada por Sara Antónia Matos.

RELAÇÕES ENTRE SETOR PÚBLICO E SETOR PRIVADO NO COLECCIONISMO DE ARTE CONTEMPORÂNEA




CONTEXTO GENÉRICO

A relação entre os papeis respetivos do setor público e do setor privado na esfera cultural sempre foi um dos temas mais complexos e controversos no âmbito dos debates sobre política cultural. Ao longo da segunda metade do século XX, sobretudo na Europa,  manifestou-se, em termos ideológicos, uma tendência para pressupor uma oposição  de princípio entre arte e mercado.  As formas extremas das formulações políticas decorrentes da aceitação desta oposição seriam  a defesa de uma estatização integral da política cultural ou, do lado oposto, a defesa da extinção das políticas culturais públicas e o abandono da cultura à pura lógica do mercado, no quadro do economicismo liberal mais radical.  Em termos de realidades sociais concretas ambas as opções extremas são absurdas ou mesmo inviáveis. (Para uma análise mais desenvolvida veja-se “Políticas Culturais”, in Alexandre Melo, “Globalização Cultural”, Quimera, Lisboa, 2002, pp 145/152).

Não é possível – muito menos no contexto das crises orçamentais que hoje se vivem em tantos países, sobretudo europeus – pretender que o Estado possa assegurar o financiamento ou sequer o funcionamento de todas as instituições e práticas culturais e artísticas mais relevantes. Mas também não é possível supor que o mercado possa  garantir,   nas práticas artísticas e culturais, os níveis de dinamismo, diversidade, criatividade e  inovação necessários à formação de cidadãos com o grau de informação cultural e a capacidade de imaginação criativa necessários à vivência plena da democracia e habilitados, do ponto de vista intelectual, para participar numa dinâmica global de intensa competição nas áreas da criatividade ou mesmo do empreendedorismo. Daqui decorrem duas consequências.
Em primeiro lugar importa assumir o seguinte : “A política cultural deverá ser uma política central de qualquer governo. Essa noção ganha mais relevância sobretudo em estados que têm que lutar contra problemas sociais que implicam défices culturais muito elevados. Qualquer país que queira ‘energizar’ a sua sociedade, no sentido de fazê-la participar da dinâmica global, tem que fazer uma aposta forte na política cultural. É fundamental que comece a existir essa consciência em países como os nossos. Dessa forma, a cultura terá de ser vista como um projeto governamental geral e transversal, envolvendo os vários ministérios”  (Alexandre Melo,“Mecenato Privado”, in “Anais do II Congresso de Cultura Ibero-Americana : Cultura e Transformação Social”, 2009, SESC, São Paulo, p.192).
Em segundo lugar, é necessária uma estreita e produtiva articulação entre atores públicos e atores privados, com vista a potenciar os recursos e valias disponíveis em cada contexto social concreto.
A necessidade desta articulação tornou-se particularmente evidente, ao longo da última década, por exemplo na área da arte contemporânea, onde muitas das principais coleções entretanto constituídas foram coleções privadas, ao mesmo tempo que as instituições públicas se deparavam com crescentes limitações financeiras, burocráticas e políticas. Vamos a seguir exemplificar  algumas possibilidades proporcionadas por este tipo de articulações recorrendo a casos relativos às realidades portuguesa e europeia.
O momento histórico que atravessamos, marcado pelo impacto – diferenciado em função da situação concreta de cada país ou região – da crise financeira internacional e das crises orçamentais que, em muitos países, lhe estão associadas, afigura-se particularmente estimulante para testar e pensar o futuro possível do setor público (os orçamentos estatais para a cultura), do setor privado (a disponibilidade financeira dos agentes económicos privados) e das relações entre eles no  âmbito do colecionismo de arte contemporânea, quer em termos gerais, quer nalguns casos concretos aqui apresentados.

ALGUNS EXEMPLOS

Em Portugal, no que diz respeito à arte do último século, o setor privado sempre teve um papel fundamental. A mais importante coleção de arte portuguesa do século XX é a coleção da Fundação Gulbenkian, uma fundação privada que muitas vezes se diz ter funcionado, em Portugal, no período final da ditadura (1926 /1974) , como o “substituto” do que deveria ter sido um ministério da cultura moderno. A mais importante, em Portugal, coleção de arte internacional do século XX, é a Coleção Berardo, também uma coleção privada atualmente instalada num espaço público, o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, no âmbito de um protocolo assinado com o Estado. Um dos mais prestigiados espaços de exposição de arte contemporânea, em Portugal, é o Museu de Serralves, no Porto, gerido por uma fundação “mista” criada com base num acordo, com contornos específicos, entre o Estado e os fundadores privados. A mais importante coleção de arte contemporânea (entendida no sentido de arte dos últimos 30 anos)  internacional, em Portugal, é a coleção da Fundação Elipse, também ela uma coleção privada. Esta coleção faz parte da FACE, um exemplo de cooperação internacional entre instituições culturais privadas europeias.

O projeto FACE (Foundations of Arts for a Contemporary Europe) foi apresentado pela primeira vez no Parlamento Europeu, em Bruxelas, em 2008, congregando um conjunto de fundações de arte contemporânea, localizadas em diferentes países, que se propõem trabalhar em conjunto numa série de iniciativas comuns. A sua exemplaridade, dentro da lógica de análise que temos vindo a propor, resulta do facto de estarmos perante instituições privadas que se associam para desenvolver uma função – que poderíamos qualificar como pública - de promoção de arte contemporânea.

Comecemos por estabelecer uma caracterização das diversas fundações intervenientes no projeto: Deste Foundation (Grécia), Ellipse Foundation (Portugal), Fondazione Sandretto Re Rebaudengo (Itália), La Maison Rouge – Fondation Antoine de Galbert (França), e Magasin 3 Estocolmo Konsthall (Suécia).

A fundação Deste, com base em Atenas, surgiu em 1983, por iniciativa do colecionador Dakis Joannou, assessorado pelos curadores Adelina von Fürstenberg e Efi Strousa, tendo um espaço próprio permanente desde 1998. A instituição tem organizado diversas exposições e apoiado projetos e publicações internacionais, promovendo tanto artistas consagrados como jovens artistas, nomeadamente através da atribuição de um prémio  para artistas gregos emergentes. A programação estende-se a projetos curatoriais e eventos especiais que exploram a conexão entre  arte,  moda,  música,  cinema,  arquitetura ou  design.

A Ellipse Foundation, surgiu em 2004, por iniciativa de João Oliveira Rendeiro, instalando-se posteriormente num espaço próprio de exposição, em Cascais, com o  propósito de apoiar os artistas contemporâneos através de um conjunto de iniciativas que incluem a aquisição e a produção de obras, exposições, projetos especiais e programas educativos. Ao longo do tempo a instituição apostou principalmente na constituição de uma coleção de referência no âmbito da arte contemporânea internacional e num programa expositivo desenvolvido em colaboração com importantes curadores internacionais como Andrew Renton ou Lisa Phillips..

A Fundação Sandretto Re Rebaudengo, com sede em Turim, foi fundada em 1995 pela colecionadora Patrizia Sandretto Re Rebaudengo, sendo seu diretor artístico Francesco
Bonami. Desde o início apresenta um programa expositivo atento a temáticas políticas, sociais e filosóficas, reunindo artistas nacionais e internacionais. Paralelamente tem desenvolvido projetos em  colaboração com instituições internacionais como o Hara Museum, de Tóquio, a Serpentine Gallery de Londres, ou o Walker Art Centre de Minneapolis. As exposições são acompanhadas por eventos cinematográficos, teatrais e performativos. As suas atividades complementam-se com um programa anual de residência para jovens curadores e um prémio dedicado às mulheres.

La Maison Rouge surgiu em Paris, em 2004, por iniciativa do colecionador Antoine de Galbert. Através de um programa de exposições temporárias – individuais, coletivas e exposições especiais focadas em coleções privadas – a instituição procura desenvolver diferentes facetas da criação contemporânea, incluindo múltiplas formas de expressão como a arte “outsider”, a performance, a arte primitiva e a arte popular. A atividade da fundação completa-se na encomenda de obras de arte e na publicação de monografias, catálogos de exposição e livros de referência no âmbito da história da arte.

A Magasin 3 Stockholm Konsthall, impulsionada por Robert Weil e dirigida por David Neuman, desde 1987, aposta na apresentação de artistas internacionais de renome através de um intenso programa de exposições. A atividade expositiva processa-se numa relação dialética com a coleção, nomeadamente através da encomenda e produção de novos trabalhos. Paralelamente, a instituição desenvolve uma atividade editorial através da publicação de catálogos que documentam as exposições e a produção dos artistas, bem como um programa de palestras e conferencias.

Esta apresentação sucinta dos diversos intervenientes no projeto FACE serve para compreender melhor a origem do projeto mas também para estabelecer, através das similitudes entre as diversas fundações, um retrato genérico das fundações privadas de arte contemporânea e do papel que desempenham. Antes de mais temos uma forte associação à figura do fundador – geralmente um colecionador privado – e o desenvolvimento de coleções de referência, em termos internacionais, que servem de base a extensos programas expositivos, habitualmente com uma vocação internacional quer ao nível de artistas e curadores, quer de eventuais parcerias.
As coleções e as exposições, por sua vez, requerem o estabelecimento de espaços expositivos, adaptados arquitetonicamente à arte contemporânea e que se traduzem, em muitos casos, na requalificação de edifícios pré-existentes, frequentemente com um passado industrial.
Igualmente importantes, enquanto expressão dos objetivos das fundações privadas, são as diversas iniciativas paralelas às exposições e que reforçam o sentido “público” das suas funções. Estes eventos incluem atividades que procuram cruzar a arte com outras manifestações da cultura contemporânea, programas educativos e de formação de púbicos, ciclos de conferências e palestras, atividade editorial ou apoio a artistas emergentes com bolsas, prémios, residências e encomendas. 

Devemos contudo salientar que a associação das diversas fundações num mesmo projeto não implica a redução a um denominador comum. Antes funciona de acordo com um modelo de expansão de possibilidades e de concentração de recursos.
Embora as fundações privadas contemporâneas funcionem, em grande medida, fora dos enquadramentos nacionais, tal não implica que, de diversos modos, a realidade local de cada instituição não esteja presente, influenciando, por exemplo, a escolha dos artistas representados em cada coleção. A pluralidade de geografias abrangidas pela FACE – Grécia, Portugal, Itália, França, Suécia – implica  uma diversidade de pontos de vistas locais sobre uma realidade europeia e global, com uma amplitude que não seria facilmente igualada por instituições associadas ao setor estatal.
À multiplicidade geográfica acrescentam-se as idiossincrasias dos espaços expositivos – permitindo que a mesma exposição seja confrontada, na sua itinerância, com modelos espaciais heterógenos –, as experiencias diversificadas das equipas de cada instituição e, obviamente, uma ampliação quantitativa e qualitativa dos públicos.
A expansão das possibilidades completa-se, como referimos, numa concentração de recursos, tanto financeiros como culturais, os quais por sua vez se materializam na realização de eventos expositivos e outras atividades.
Até ao momento a FACE realizou uma exposição, assinada pelos curadores das várias coleções, que apresentou trabalhos das diversas fundações associadas ao projeto, sob o título Investigations of a Dog, a partir de um conto de Franz Kafka. Teoricamente, a exposição baseou-se na noção de “literatura menor”, utilizada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Felix Guatari, na análise ao trabalho de Kafka, para descrever a ligação entre escrita e política, ou seja, a possibilidade de a criação artística conter mensagens revolucionárias, a partir, precisamente, do uso subversivo da linguagem. Os artistas reunidos na exposição partilham a prática de uma arte que pode ser lida à luz desta categoria de “menor”, na medida em que desenvolvem um discurso artístico que não  reproduz as categorias estéticas consagradas e subverte o uso convencional dos meios expressivos que adota.  Como o cão, protagonista do conto de Kafka, estes artistas colocam a si mesmos questões sobre o sentido do fazer artístico, estimulados por um envolvimento emocional apaixonado com a sociedade dos seres humanos.
A exibição itinerou durante dois anos pelos espaços expositivos das várias fundações e deu origem a um conjunto de publicações, escritas na língua de cada pais e  incluindo contos inéditos, encomendados para este efeito, de jovens escritores de cada país, baseados no texto de Kafka e nas obras expostas.

De um modo genérico podemos concluir que o projeto FACE constitui um exemplo paradigmático da necessidade de repensar os modelos institucionais ao nível da arte contemporânea e que, de certa forma, espelha as possibilidades mas também as incertezas da uma realidade europeia atual marcada pela crise.
Reunindo cinco fundações privadas sem fins lucrativos a FACE pertence, obviamente ao universo do setor privado, principalmente ao nível dos recursos que mobiliza. Porém, as atividades que se propõe desenvolver – exposições, co-produção de obras, projetos editoriais – bem como os objetivos que assume – promover a arte contemporânea e alargar o seu público – tem uma matriz eminentemente pública.
O projeto FACE espelha uma característica fundamental do seu próprio objeto : o facto de a arte ser, por excelência, o lugar do público e do comum e, portanto, um espaço privilegiado para repensar as categorias de público e privado.   

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Texto realizado por ocasião de uma Conferência em Brasília, a 19 de Outubro de 2012