Mostrar mensagens com a etiqueta Rui Chafes. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Rui Chafes. Mostrar todas as mensagens

PARA RUI CHAFES, EM 1988



Rui Chafes. “Vertigem V”. 1988/89. © Fotografia: Blue Photography Studio (Cepeda)


A palavra arte deve ser associada a intransigência. As coisas que faça o que se chama artista têm de ser a prova de uma inteligência, sentimento, vontade, paixão, obsessão. As coisas que faça o que se chama artista servem para dar mais perplexidade e expectativa a uma presença, mais riqueza e complexidade a um problema, mais inteligência e densidade a uma cumplicidade, mais intensidade e necessidade a um sentimento. Em linguagem muito simples: servem para tornar excepcional a relação com as coisas, as imagens das coisas, isso a que se chama mundo ou os outros. Ou ainda, em linguagem menos singela: demonstrar a coincidência do belo, do bem, do útil e do verdadeiro.

A consciência ou o sentimento de excepção e intransigência estão antes de qualquer produto ou produção.

Inevitável característica das primeiras obras de um artista: serem as primeiras, um mostrar-se a crescer, como mostrar o próprio corpo a crescer. Saber dos perigos, confrontar o medo, defender o segredo sem desistir de o entregar ao mundo.

Um artista novo reconhece-se no impulso generoso para revelar o segredo de ser o portador de um novo segredo. Tem de gerir o medo e a coragem para não ficar aquém da revelação. Tem de guardar pudor e recato diante das circunstâncias para não se estragar. Precisa de uma enorme arrogância para não ser confundido com outro qualquer e precisa de se manter perfeitamente vulnerável, diante de todos, para que os que serão o seu destino o reconheçam e acolham sem suspeita.

O segredo de que o artista novo é portador mantém estreitas relações com a revelação de um corpo que sabe de certeza sentida que está a crescer em amor, mas não sabe como bem porquê nem para quê.

Os objectos do artista não são perguntas, nem respostas, nem comentários. Afastam-se das formas dos objectos comuns não apenas para não poderem ser confundidos com eles mas para não poderem ser vistos segundo os usos de veros objectos comuns. Afastam-se das formas abstractas consagradas para que ninguém pense que uma forma bem acabada pode alguma vez constituir, só por si, um motivo válido de satisfação. Afastam-se da escala razoável e ameaça nas conveniências dos sítios que as acolhem para que seja notório que não são razoáveis e não buscam nem o seu próprio confortável equilíbrio nem uma equilibrada harmonia com as paredes e os olhares que as rodeiam. Têm a escala explodida do que é, tem de ser e não pode ser. Dão conta de uma instância originária puramente abstracta, fonte de uma energia decisiva. Cumprem-se num trabalho expansivo e excessivo de desocultação e construção: do fechado ao aberto, da intimidade à exposição, da unidade à proliferação, da luz e da cor protectoras à claridade sem dó. Uma obra. Um corpo de destemor e amor oferecido e abandonado ao mundo.

In Catálogo exposição “Espaço Poligrupo”, Renascença, Março de 1988


.......................

Alexandre Melo, “Para Rui Chafes, em 1988”, in Arte Ibérica, Ano 5, Nº42,  Lisboa, Dez / Jan 2001


‘E PLURIBUS UNUM’





Vista da exposição ‘E PLURIBUS UNUM’, na Galeria Marília Razuk, São Paulo, Brasil



“E Pluribus Unum” é uma expressão latina que é o lema dos Estados Unidos da América (e também do maior clube de futebol em Portugal, o Benfica).
A expressão pode ser traduzida e interpretada de diversos modos sempre relacionados com a conexão entre o que é individual e o que é geral.
Podemos pensar em expressões como “um por todos e todos por um”, “um é muitos e muitos são um” ou “o individual é múltiplo e a multiplicidade é una”. Para usar uma expressão futebolística podemos evocar o mote do Liverpool: “You’ll never walk alone” (“Tu nunca caminharás sozinho”).

O objectivo da exposição é explorar o tema da unidade versus diversidade. A questão pode ser desenvolvida em torno da noção de identidade, seja a identidade individual, a identidade de grupo ou a identidade da própria espécie humana.

As obras de DOUGLAS GORDON, MIROSLAW BALKA e RUI CHAFES, pela diversidade (europeia?) das suas origens geográficas (Escócia, Polónia, Portugal) e culturais, e pela diversidade das técnicas, recursos e processos que utilizam, permitem exemplificar essa problemática, ao mesmo tempo que ilustram a enorme diversidade do território da arte contemporânea.

Os trabalhos seleccionados de DOUGLAS GORDON incidem sobre a questão da identidade individual (“Auto Retrato de Você e Eu”), mostrando como a definição de nossa identidade é sempre um jogo de projeção de nosso sobre o rosto do outro ou de (re-)construção do nosso rosto sob o olhar do outro. Sendo que nesse processo, alguém pode correr o risco de ficar cego, incapaz de se ver a si próprio ou de ver os outros.

Nesse jogo de imagens, nossos rostos se misturam com os rostos de atores, atrizes, estrelas e vedetas de cinema que, muitas vezes, melhor que as figuras reais, dão conta de nossos desejos, ideais e aspirações. Dos desencontros destes olhares sempre sobra um resto de mistérios e “paixões privadas” que não podem ser retratadas.

A escala humana (em muitos casos, as medidas do corpo humano, designadamente o corpo do próprio autor) é uma das referencias fundamentais da obra de MIROSLAW BALKA. Nesse sentido, embora seja difícil chamar sua escultura de figurativa, ela sempre implica uma figura humana. Ou melhor, duas figuras: uma figura de referencia, cuja pose ou movimento desenha a forma da peça; e a figura do observador, o corpo de cada um de nós que, no confronto com essa forma escultórica, re-define a consciência de sua própria medida. No entanto, a força maior da presença destas esculturas não resulta de um exercício de manipulação formal dos espaços dos corpos. Um espaço vazio de silencio (e drama?) onde se faz sentir o peso de memórias individuais e de memórias de uma história coletiva que, ela sim, foi a primeira a moldar nossos corpos. O que nós somos (também) é o que nossa história (nos) fez.

As esculturas de RUI CHAFES, produzidas propositadamente para esta exposição e para o espaço da Galeria Marilia Razuk, têm, também elas, uma ascendencia orgânica que poderia ser remetida (como é mais evidente em muitas outras séries de trabalhos do autor) para as circunstancias da fisiologia humana. Julgamos no entanto ser mais apropriado evocar aqui uma espécie de matriz orgânica estrutural, inerente a todas as formas vivas (e talvez também mortas) que nos instala num tempo que é, para além do tempo individual e do tempo histórico, um tempo metafísico em que a natureza, a humanidade e a morte são indissociáveis.
Esse é um tempo inacessível e, no entanto, a obra de RUI CHAFES pertence a esse tempo e obedece, portanto, a uma paradoxo. É uma espécie de testemunho ou despojo de tudo o que não pode ser, que é quase tudo.

............................... 
Texto produzido por ocasião da exposição “E PLURIBUS UNUM”, na Galeria Marília Razuk, São Paulo (13/05 – 15/07/2015)


RUI CHAFES - GALERIA ATLÂNTICA


ARTFORUM
Novembro/November 1989


Rui Chafes. Depois de para sempre - VII. 1988. 
Rui Chafes. Depois de para sempre - VIII. 1988.


Nas suas primeiras exposições, Rui Chafes apresentou escultura para um lugar específico. Uma só construção enchia a galeria, deixando apenas o espaço necessário à circulação dos visitantes. Algumas destas construções tinham interiores suficientemente largos para que se pudesse aí entrar.

Materialmente, elas estabeleciam frequentemente o contraste entre elementos “naturais”, tais como o bambu e a madeira, e outros “artificiais”, tais como o plástico. O jogo dos diferentes materiais era determinado pela relação entre forma estrutural e superfície, sendo o efeito final realçado pela escolha de cor, da textura e da iluminação.

As instalações de Chafes correspondem a uma afirmação da impossibilidade, ou dificuldade, do objecto. Isto é sugerido pela escala sobredimensional do trabalho, pela sua presença agressiva, construção precária e natureza efémera. Acima de tudo, a sua escultura releva da tradição romântica, segundo a qual cada objecto apenas existe simultaneamente como testemunha de impossibilidade e portador de esperança.

Nesta sua exposição, Chafes apresentou também este tipo de objecto escultural. Cada objecto foi concebido como parte de um todo e foi exposto numa instalação preparada meticulosamente. “Depois de Para Sempre” (1988) é o título desta última série de esculturas de Chafes. “Sempre” é uma expressão que, no discurso de amor corrente, significa o curto trajecto entre vida e morte. A expressão “depois” introduz o espaço de transcendência romântica – o espaço da alma.

Trata-se de esculturas em metal com um acabamento cromático e textural apurado. Chafes combina várias formas circulares e ogivais. As formas circulares, esféricas, constituem pólos centrípetos de estabilidade e clausura; as formas ogivais representam uma configuração dinâmica de aberturas.

Em geral, esta variedade de estruturas e operações formais e materiais estabelece um sentido ambíguo de contenção e de apelo. As possibilidades de interpretação e de sugestão alusiva são imensas e permanecem abertas: o núcleo materno original, do qual se forma e projecta um corpo, ou uma flor que cresce no cimo de um caule, que se abre e fecha, seca e morre. As esculturas evocam a necessidade do crescimento e a natureza material da morte.


                                                                                   *****


In his early exhibitions, Rui Chafes showed site-specific sculpture. A single construction would fill the gallery, leaving only the necessary space for the circulation of the viewers.

Some of these constructions had interiors that were large enough to be entered. Materially, they often contrasted “natural” elements, such as bamboo and wood, with “artificial” ones, such as plastic. They play of different materials was determined by the relation between structural form and the surface, and the total effect was enhanced by the choice of color, texture, and illumination.

Chafes’ installations correspond to an affirmation of the impossibility, or difficulty, of the object. This is suggested by the works’ superdimensional scale, aggressive presence, precarious construction, and ephemeral nature. Overall, his sculpture relates to the romantic tradition, according to which each object only exists as both witness to impossibility and bearer of hope.

In his exhibition here, Chafes also presented this kind of sculptural object. Each was conceived as a part of a whole, and was exhibited in a meticulously prepared installation.

“Depois de Para Sempre” (After Forever, 1988) is the title of this latest series of Chafes’s sculpture. “Forever” is an expression that, in the current love discourse, signifies the short circuit between life and death. The expression “after” introduces the space of romantic transcendence – the space of the soul. These are metal sculptures with a refined chromatic and textural finish. Chafes combines various circular and pointed forms. The circular, spherical forms constitute centripetal poles of stability and enclosure; the pointed forms represent a dynamic configuration of openings.


As a whole, this range of formal and material structures and operations establishes an ambiguous sense of restraint and invitation. The possibilities of interpretation and allusive suggestion are immense and open: the original material nucleus, from which a body is formed and projected, or a flower that grows on the top of a stalk and that opens and closes, withers and dies. The sculptures evoke the necessity of growth and the material nature of death.


........................
Alexandre Melo, “Rui Chafes – Galeria Atlântica”, in Art Fórum International, vol. XXVIII, nº 3, Novembro de 1989.

O CORPO DA LUA



Rui Chafes. Durante o Sono. 2002.



Abre hoje ao público, no Nikolaj Contemporary Art Center, em Copenhaga, onde ficará até 12 de Abril, uma exposição antológica de Rui Chafes já antes apresentada no Esbjerg Kunstmuseum. Ontem, noite de inauguração, foi noite de Lua Cheia. A paisagem e a luz de Caspar David Friedrich e da Dinamarca, no Inverno, são um dos melhores cenários que poderíamos imaginar para a primeira mostra museológica do autor no estrangeiro.

Rui Chafes é um dos nomes mais importantes da arte portuguesa dos nossos séculos (XX e XXI) e um dos mais originais no panorama geral da escultura, hoje. A selecção de obras para esta exposição permite desenhar um trajecto de leitura em que o corpo é o ponto de partida e o ponto de chegada é, como não poderia deixar de ser, infinito.

Os corpos, tal como as obras de arte, são muito pouco mas são quase tudo o que temos.

Esta história começa ainda antes do movimento do nascimento. Houve um tempo em que não havia ninguém. Tudo o que tivesse que vir a haver estava então ainda dentro. Lá dentro era um sítio «doce e quente» (as expressões a negro são títulos das peças do autor). Rui Chafes tratou este problema nas suas primeiras grandes esculturas/instalações da década de 80.

A escultura Doce e Quente mostra-nos a vontade de não mostrar o que está lá dentro. Mas o artista sempre soube que a abertura, a saída, a queda não podiam ser eternamente adiadas. Mesmo este monstruoso insecto blindado começa a abrir-se, começa a ceder, vencido pelo peso do próprio sentimento que o leva a querer manter-se fechado.

Este é o lugar onde mais tarde teremos de voltar, mas antes de chegar a esse lugar são muitas as passagens e provocações pelas quais teve que passar a representação ou evocação do corpo em queda.

Usando uma linguagem literária é possível definir os seres humanos como anjos caídos que não se conseguem levantar, anjos escangalhados. As nossas cabeças não têm auréolas, os nossos ombros não têm asas, os nossos cabelos não têm luz. O simples facto de conseguirmos existir, tão pobremente despidos de qualquer atributo miraculoso pode ser considerado, em si mesmo, um milagre.

Para nos amparar, uma das melhores coisas que se inventaram foi a ideia do anjo a que muitos artistas justamente dedicaram muito do seu talento. Hoje em dia é raro porque quase nenhum artista se lembra de se ocupar de questões importantes. Rui Chafes é uma excepção e através das suas obras podemos acompanhar as passagens de um corpo.

Os limites da resistência e flexibilidade dos corpos e as possibilidades plásticas das suas acoplagens e correspondentes resultados formais, para além de poderem passar por ser uma definição de escultura, são também uma das principais metodologias utilizadas no trabalho de Rui Chafes.

Diferentes séries de esculturas exploram de maneira sistemática quer a prática da escultura entendida como teste aos limites da capacidade de manipulação dos materiais quer os possíveis exercícios e desenhos relativos à metamorfose, torção e fusão dos corpos.

Se insistimos em explorar os limites do corpo, ou a prática da escultura, acabamos por concluir que os corpos não nos levam suficientemente longe e a todo o momento correm riscos de fractura ou desagregação. Há sempre o perigo de uma escultura falhar, se perder, se partir, apesar de todo o rigor do desenho e todos os cuidados da produção. O mesmo sucede com os corpos. Para evitar que eles se possam esvair é preciso pensar em formas de os segurar, conter, abraçar.

É claro que esta deficiência dos corpos se poderia resolver se fosse possível descobrir o segredo da filigrana de cristal, a metalurgia da luz. Se fosse possível desenhar o paraíso das linhas milagrosas por onde corre o sangue: antes do sangue chegar.

Mas isso não é fácil e não é assunto para a escultura. Talvez para a poesia, dizem, iludidos, os mais crédulos.

É preciso continuar a caminhar. Com Unsaid é possível voltar a estar lá dentro sem deixar de estar cá fora devido a uma engenhosa construção formal e, sobretudo, devido ao desdobramento permitido pelo uso da voz e do texto. Unsaid é um trabalho realizado em colaboração e em que o visitante tem de se colocar dentro de uma estreita construção em ferro para poder ouvir e sentir a intimidade de um texto escrito e lido pela artista irlandesa Orla Barry. A dificuldade, o mal-estar, a inibição funcional que fazem parte da experiência desta peça preparam-nos para o momento seguinte.

Depois de tudo aquilo por que tinha passado o artista voltou a abrir os olhos e sentiu que desta vez era quase a eternidade. Um exemplo daquilo de que estou a falar é a extraordinária escultura Aproxima-te, Ouve-me instalada por Rui Chafes, no Centro de Artes Visuais em Coimbra.

É o momento em que a mais pesada esfera (Durante o Sono) se eleva no ar e se transforma no milagroso espelho negro onde, pela última vez e, depois, pela primeira vez e para sempre se pode ver o rosto da Lua e o rosto de todos os seres amados.

..............................
Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 7 de Fevereiro 2004, p. 38-39.

10 CONTEMPORÂNEOS




Fundação Serralves, Porto, 1992



Gerardo Burmester
Pedro Cabrita Reis
Pedro Calapez
Pedro Casqueiro
Rui Chafes
José Pedro Croft
Pedro Portugal
Pedro Proença           
Rui Sanches
Julião Sarmento


Esta exposição tem por objectivo mostrar o trabalho de dez autores que marcam de forma decisiva o momento actual da arte portuguesa e que são, ou poderiam ser, com o devido enquadramento institucional, parte integrante da situação internacional da arte contemporânea.
No plano mais pragmático, e uma vez estabelecido o âmbito geográfico nacional, a exposição rege-se por parâmetros cronológicos e de dimensão.
Uma escolha assinada só tem vantagem em ser clara e precisa. O resultado é uma selecção de dez artistas e a divisão da exposição em duas partes de modo a permitir mostrar um número minimamente significativo de peças de cada um. Para reforçar a individualização, a partição em dois grupos segue critérios de diversificação e não de homogeneização. Acresce que, em termos de dimensão, foram levados em linha de conta, por um lado, o local de exposição e os seus condicionalismos, e, por outro lado, uma opção de montagem que tenta tomar cada objecto visível sem excessivas interferências negativas, e permitir a cada artista receber uma atenção específica e uma leitura individualizada.
Na escolha das peças, realizada em estreita colaboração com os artistas, procurou-se que correspondessem a diferentes momentos do trabalho dos autores ao longo do período de referência e que, sem quebra de representatividade, fossem, sempre que possível, peças menos conhecidas do público.
A montagem obedece a princípios de prioridade à visibilidade individualizada de casa artista e de tratamento equitativo de todos eles. Daqui decorreu a opção por conceder a cada artista um espaço autónomo mais fechado, que ocupa em exclusivo, e distribuir de forma equilibrada as suas presenças nos espaços mais abertos.
Um outro propósito da montagem foi o de, na medida em que as obras e as condições concretas de trabalho o permitiam, apresentar obras de exterior, chamando assim a devida atenção para o magnífico espaço envolvente da Casa de Serralves e para o muito que a leitura do seu espaço tem a ganhar com uma ampla abertura ao exterior.
Em termos cronológicos, o ponto de vista é o do momento actual, retendo como universo de referência a partir do qual operar as escolhas o trabalho realizado ao longo dos últimos dez anos por artistas cujas carreiras então atravessaram fases de afirmação ou definição de uma imagem pública consolidada. Ficaram assim afastados do universo de referência trabalhos cuja imagem pública consideramos não estar ainda definida ou já o estar desde um período mais recuado.
Retivemos este período não porque ele encerre qualquer unidade estética, programática ou ideológica, mas por julgarmos que, descontada a margem de arbitrariedade que qualquer censura cronológica implica, lhe corresponde um contexto social e cultural especifico a nível nacional. Um contexto caracterizado pela afirmação forte e dinâmica de um amplo conjunto de artistas e outros agentes culturais activos na aérea das artes plásticas, um notável aumento do interesse da opinião pública e dos meios de comunicação e uma assinalável, embora ainda limitada, abertura internacional da situação artística portuguesa.
Este conjunto de circunstâncias permite formular a hipótese, deliberadamente optimista, de que ao longo da última década se terá verificado em Portugal, ao nível das artes plásticas, e apesar de graves bloqueios e limitações institucionais, uma mutação da conjuntura que tornou possível abandonar os traumas da pequenez e os complexos de inferioridade e desenvolver práticas e atitudes ajustadas ao tempo e às dinâmicas mais fortes da criação artística à escala internacional.
O período retido, como resulta da simples consulta das datas das obras, é o da passagem da década de 80 para a década de 90, a viragem 80/90. Estamos perante obras e autores que se definiram depois e a partir de um distanciamento pessoal em relação aos modelos que marcaram os fins dos anos 70 e os princípios dos anos 80 (designadamente os “novos expressionismos” e as “figurações livres”) e que desde então adquiriram uma consistência e uma individualidade que hoje em dia os situam em lugares privilegiados de articulação com problemas e temáticas decisivas na década de 90.
Sem pretender ser exaustivo, sirvam de exemplo questões como sejam o estatuto do corpo humano e sua representação, os arquétipos da ocupação ou da representação do espaço, a história da arte como fundo da análise e recomposição de elementos plásticos, os limites e fronteiras de disciplinas como a pintura ou a escultura, a especificidade do objecto artístico e da sua definição no confronto com outros tipos de objectos, a capacidade de intervenção social da arte. Temas que, na sua diversidade, e abordagem das obras, igualmente diversas, dos artistas aqui reunidos, e que são simultaneamente tópicos insistentes do debate cultural e artístico contemporâneo.
Em termos de método optamos por valorizar a individualidade e diversidade das obras apresentadas recusando os discursos aglutinadores de ocasião, baseados em pretensas identidades nacionais, alegadas conformidades doutrinais ou concertações conjunturais de circunstância. Discursos muito frequentes em exposições colectivas e que também frequentemente se revelam teoricamente abusivos e eticamente menorizadores das obras no que diz respeito à natureza das relações que promovem entre estas e o discurso.
Uma vez enunciados os critérios mais pragmáticos convem não evitar a sempre polémica questão dos critérios mais subjectivos, pessoais.
É sabido que não existem critérios objectivos, técnicos, científicos, de avaliação da qualidade em arte, menos ainda na actualidade em que não funciona sequer o factor da consagração histórica. Qualquer escolha é sempre pessoal e subjectiva. O que não impede que seja norteada por critérios explicitáveis. Neste caso foram aplicados critérios de dinamismo, consistência e contemporaneidade.
Por dinamismo entendemos a riqueza e a intensidade da presença do autor e da sua obra no contexto social e cultural em apreço. Esta aspecto é aferível em função do conjunto do trabalho realizado e mostrado, da atenção, reflexão e debate que tenha suscitado e, bem assim, do conjunto de iniciativas a que tenha estado associado. Os currículos e bibliografias detalhados elaborados para este catálogo constituem a este respeito um testemunho adequado sem naturalmente poderem restituir inteiramente a riqueza da correspondente experiência social vivida.
Por consistência designamos a característica distintiva de uma obra em que é reconhecível um núcleo duro cuja progressiva elaboração, aprofundamento ou transformação serve de fio condutor para o entendimento de uma trajectória. Evitando oscilações gratuitas ou repetições bloqueadoras. Chamamos núcleo duro a um conjunto de temas, problemas, atitudes, questões ou obsessões sucessivamente recolocado e reformulado ao longo de um processo de consolidação e enriquecimento de uma obra e da nossa relação com ela. Um mais sentido, que é simultaneamente um mais saber e uma mais sentir, e que nos vamos habituando a experimentar e reconhecer como especifico “idioma” ou da “maneira” de um autor particular.
Por contemporaneidade designamos capacidade de, sem quebra da consistência que lhe é própria, um trabalho se situar num contexto mais amplo e nos permitir articular questões relevantes da nossa experiência social e cultural global. Demos atrás alguns exemplos de questões a reter, neste âmbito, na década em curso.
A consistência e contemporaneidade não são, evidentemente, atributos que possam ser fixados e demonstrados num discurso que, para cada autor, enunciasse de forma definitiva a verdade da obra.
O processo do discurso é um processo que acompanha o trabalho do artista e se desenvolve a partir do fazer da obra e das formas concretas da sua presença contextual.
A antologia de textos que é componente fundamental deste catálogo visa dar conta deste processo ao mesmo tempo que pretende constituir uma base documental para o estudo destes autores. Nessa medida foi privilegiada a diversificação de pontos de vista e de registos e foi dada prioridade à reprodução dos textos menos acessíveis, designadamente os publicados em jornais ou no estrangeiro em detrimento dos incluídos em livros ou catálogos, mais fáceis de localizar.



The aim of this exhibition is to show the work of ten authors who have had a great and decisive role in current Portuguese art and who are, or may be, with the right institutional acceptance, full component parts of the international situation in contemporary art.
In the most pragmatic field, and once national geographical realities have been established, the exhibition is governed by chronological and dimensional parameters.
A signed choice only has advantages when it is clear and precise. The result is a selection of ten artists and the dividing of the exhibition into two parts in order to allow the showing of a minimally significant number of works by each one. To reinforce individualization, the partitioning into two groups criteria which have to do with diversification and not homogenization. Furthermore, in terms of size, on the one hand the exhibitional space and its conditionalisms were taken into account, and, on the other, there is an option as to mounting the works which tries to make each object visible without excessive negative influences, permitting each artist to receive specific attention and an individual reading of the works.
In the choice of the works – carried out in direct collaboration with the artist – an attempt was made to find one which correspond to different moment of the author’s work throughout the period in question and which, without loss of representativity, were whenever possible less well-known to the public.
The mounting follows principles of individualized visibility for each artist and gives equal treatment to all of them. From this idea came the option to give each artist an autonomous and more closed space, which he or she occupies exclusively, and to distribute their presences in a more balanced manner in the more open spaces.
Another propose in the arrangement was, as far as the works and physical working conditions allow, to show outdoors works, attracting due attention to the magnificent space which surrounds the Casa de Serralves and to the great amount which the reading of the work may gain in the being presented in a great open space.
In chronological terms, the point of view is the present, having a universe of reference from which to operate the choices of work over the last ten years by artists whose careers were then going through phases of affirmation or definition of a public image which is now consolidated. Therefore, works whose public we consider not to be defined or still in a more remote period were left out of this universe of reference.
We kept this period not because it encloses any aesthetical, programmatical, or ideological unity, but because, putting aside the margin of arbitrarity which any chronological caesura implies, it corresponds to a specific social and cultural context on the national level. A context characterized by strong and dynamic affirmation of wide group of artists and other cultural agents in the area of fine arts, a remarkable increase in interest by the general public and the communication media, and a notable, although still limited, international opening to the Portuguese artistic scene.
This set of circumstances allows one to formulate the deliberately optimistic hypothesis that the previous decade in Portugal has seen, in the field of fine arts, and despite serious blocks and institutional limitations, a changing of the situation which has made it possible to abandon the traumas of small-mindedness and inferiority complexes and to develop practices and attitudes which are in step with the times and the stronger dynamisms of artist creation on a international level.
The period chosen, as one can see by simply consulting the dates of the works, is that of the passing of the 80’s to the 90’s, the turning of 80 into 90. We are faced with works and authors who defined themselves after a personal distancing in relation to the models which characterized the end of 70’s and the beginnings of the 80’s (namely the “new expressionisms” and the “free configurations”) and who have since then taken on a consistency and individuality which now places them in privileged positions of articulation with problems and themes which are decisive in the 90’s.
Without trying to be exhaustive, let the following matters serve as examples: matters like the status of the human body and its representation, archetypes of occupation of the representation of space, the history of art as an analytical space and one of recomposition of plastic elements, the limits and frontiers of disciplines like painting and sculpture, the specificness of the artistic object and of its definition when confronting other types of objects, art’s capacity to have a social role. Themes which, in their diversity, and among many others, form some of the possible paths into the works, which are equally diverse, of the artists here represented, and which are also insistent topics in the contemporary cultural and artistic debate.
In terms of method, we opted to give greater importance to the individuality and diversity of the works, fleeing from agglutinating speeches, based on supposed national identities, alleged doctrinal conformities or circumstantial concertations of conjure. Texts which are very frequent in collective exhibitions and which are also theorically abusive and ethically reductive of the works as to the nature of the relationships which they promote between themselves and the works.
Now the more pragmatical criteria have been explained, it is wise not to avoid the always-controversial issue of the personal and subjective criteria.
It is known that there are not objective, technical and scientific criteria of assessing art, even less so modern art, which has not yet been subjected to the factor of historical consecration. Any choice is always personal and subjective. Which doesn’t prevent it being oriented by explicable criteria. In this case we used the criteria of dynamism, consistency, and modernity.
By dynamism we mean the richness and intensity of the presence of the author and his work in the social and cultural context concerned. This aspect can be gauged by the set of the work carried out and exhibited, by the attention, reflection and debate which has provoked and equally by the amount of initiatives it has been involved in. The detailed curricula and bibliographies written for this catalogue form an adequate testimony to this without, naturally, being able to transmit totally the richness of the corresponding social experienced which has been lived through.
By consistency we mean the distinctive characteristic of a work in which a hard nucleus is recognisable, whose progressive elaboration, deepening or transformation provides a central thread for the understanding of a trajectory. Avoiding gratuitious oscillations or blocking repetitions. We call the hard nucleus a group of themes, problems, attitudes, issues or obsessions which are successively restudied and reformulated throughout the working process, which is also a process of consolidation and enriching of a work and of a relationship with it. An extra sense, which is simultaneously an extra knowledge and an extra feeling, and which we get used to feeling and recognising as specific to the “idiom” or the “manner” of a certain author.
By modernity we mean the capacity a work as to, without losing its particular consistency, be located within a wider context and to allow us to articulate questions relative to our overall social and cultural experience. We have given some examples of this above, in relation to this decade.
Consistency and modernity are not, obviously, attributes which may be fixed and demonstrate in a discourse which, for each other, might enunciate the truth of the work in a definitive manner.
The process of the discourse is a process which accompanies the artist’s work and is developed from a doing of the work and the concrete forms of its contextual presence.
The anthology of texts which is a fundamental component of this calatogue aims at showing this process at the same time as intending to form a documental base for the studying of the authors. In this sense the diversity of points of view and registers has been important and priority was given to less accessible texts, namely those published in newspapers or abroad, over those which are included in books and catalogues, being much more easily available. 
(Tradução: David Prescott) 

.............................................................
Texto de introdução do Catálogo '10 Contemporâneos l Fernando Pernes, Alexandre Melo, Porto: Fundação de Serralves, 1992' da Exposição comissariada por Alexandre Melo. (pp. 9-12)