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NEOBARROCO / JOÃO PEDRO VALE




ARTFORUM
Outubro/October 2006


João Pedro Vale. Foi bonita a festa, pá. 2006



Exhibited as part of the group show “Neobarroco” in São Paulo along with works by Camila Sposati and Friederike Feldmann, the most recent large-scale sculpture by the Portuguese artist João Pedro Vale, Foi bonita a festa, pá (The Party Was Beautiful, Yes), 2006, was constructed from a jangada, a balsa raft from the northeast of Brazil. This craft seems particularly appropriate to its situation in this gallery, the work of Paulo Mendes da Rocha (winner of this year’s Pritzker Prize), who has created a long, narrow, very high nave, much like an overturned boat.   

Let us examine the metamorphoses and dislocations that Vale has performed on this raft (instead of the caravel of this colonialist ancestors) with which, as a Portuguese, he arrives today in Brazil. Vale painted the boat red, generating maximum contrast with the browns and golden yellows of its decorations: empty beer bottles and their caps. The red and gold recall, above all else, the Catholic Baroque theatricality that marks the Portuguese heritage in Brazil, and recall as well the red flags that played a major role in Portugal’s democratic revolution of 1974. The so-called Carnation Revolution is further evoked here by an arch of red plastic carnations that extends along the boat like the arches that typically decorate popular celebrations. The evocation of popular conviviality finds its most striking expression in the use of bottle caps from Sagres beer as if they were ornamental jewels.

Sagres is the name of a town in southern Portugal, the site of the school where many fifteenth-century navigators were trained. The play between the “rich” effects of colour and light and “poor” materials, between luxury and kitsch, is part of dialectical play of contradictions that characterize this sculpture and the whole of Vale’s work.

A similar formal and symbolic dislocation using objects related to colonial expansion is evident in a set of thirteen smaller sculptures Vale presented in Vienna. Here the references were to objects in cabinets of curiosities such as that of Emperor Maximilian II, housed today in the Kunsthistorisches Museum in Vienna. A product of the anthropological curiosity and the fantasies associated with colonial exploitation, these objects were intended to illustrate the exoticism of distant lands, supposedly inhabited by strange beings like the unicorn (whose horn turns out to be a narwhal’s) or the “wild man” (an African slave covered in goatskins) – this cruel invention being the reference in one of the most successful pieces in the Vienna exhibition, Ecce Homo, 2006. The shape of a trophy cup transforms itself into an exotic body, made with glue from a glue gun, a wig balanced on the inverted horns of a Viking carnival helmet lined with leather and gilded tacks, and the tip of an umbrella. A necklace of mock-tortoise pendants and a duster made of Chinese rooster feathers complete the assemblage.

Vale appropriated and metamorphoses pre-existing objects, using both ordinary and uncommon materials to sabotage the distinction between beauty and horror, naïveté and sophistication. Popular forms of creativity are placed in the service of an analysis of colonialist fantasies; demystification of the fictions of domination opens the path to a hybrid multiplicity of egalitarian possibilities for a plastic and symbolic interplay. 

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Texto traduzido para inglês por Clifford E. Landers e publicado na revista mensal Artforum, na edição de Outubro de 2006, por ocasião da exposição Novo-Barroco, Galeria Leme, S. Paulo, Brazil.

DEPOIS DA FESTA




João Pedro Vale. Foi Bonita a Festa, pá! 2006.




A mais recentre escultura de grandes dimensões de João Pedro Vale foi elaborada a partir de uma jangada trazida do Noroeste do Brasil para ser transformada e exibida na Galeria Leme em São Paulo. A circunstância torna-se significativa devido à peculiar história das relações entre Portugal e Brasil. A circunstância espacial particular desta apresentação deve ainda ser sublinhada devido à admirável concepção arquitectónica da galeria da autoria de Paulo Mendes da Rocha (Prémio Pritzker deste ano) que criou uma nave longa, estreita e muito alta que parece fazer apelo à passagem de um barco.

A obra de Vale põe me jogo a relação entre Portugal e Brasil, no quadro da revisão multiculturalista do colonialismo e de uma problematização da relação entre práticas culturais populares e eruditas. Esta escultura surge na sequência de outras obras do autor alusivas às viagens marítimas tendo como referência barcos (Bonfim e Barco Negro, 2004) e um farol (Heróis do Mar, 2004).

Vejamos quais as metamorfoses e deslocações a que Vale submete esta jangada (em vez de uma caravela) com a qual, como português, «chega» hoje ao Brasil. Em primeiro lugar a cor. Todo o barco é pintado de vermelho gerando o máximo contraste com os castanhos e amarelos dourados dos adornos: garrafas vazias de cerveja e respectivas tampas. O vermelho e dourado remetem, antes de mais, para uma teatralidade católica e barroca que é marca do legado português no Brasil. A inspiração mais directa vem do Coche dos Oceanos que fez para da embaixada, custeada pelo ouro do Brasil, enviada em 1716 pelo Rei D. João V ao Papa Clemente XI: um coche todo em talha dourada e veludo vermelho do qual, ao passar, eram distribuídas moedas de ouro pelo povo. As mesmas cores remetem para as bandeiras vermelhas que, em Portugal, tiveram grande protagonismo durante a revolução de 1974, que gerou uma grande empatia entre artistas portugueses e brasileiros, ambos submetidos a longos períodos de ditadura.

A peça chama-se Foi Bonita a Festa, Pá, verso de uma canção então censurada no Brasil, do cantor brasileiro Chico Buarque, dedicada à revolução portuguesa. A «Revolução dos Cravos» é ainda assinalada por um arco de cravos vermelhos que se estende ao longo do barco, ao jeito dos arcos que decoram os terreiros de festas populares. A marca das formas de convívio e diversão popular tem a sua expressão mais conseguida no uso, como se fossem decorativas jóias douradas (as moedas de ouro dos pobres), das tampas das garrafas de cerveja Sagres, tradicionalmente usadas também nas brincadeiras de crianças. Garrafas vazias são usadas em cachos distribuídos pelo barco, sugerindo bóias ou a sensação de flutuação inerente ao tempo «depois da festa». Não devemos esquecer que Sagres é o lugar onde terá existido uma escola de navegação que esteve na origem da viagens marítimas e o nome do navio-escola da armada portuguesa.

O jogo entre os materiais «pobres» e os efeitos «ricos» de cor e luz, fazendo eco ao jogo entre luxo e o kitsch, é outra das formas tomadas pelo jogo dialéctico de contradições que estruturam esta escultura e, de resto, o conjunto da obra do autor.

O mesmo tipo de deslocações formais e simbólicas realizadas a partir de objectos relacionados com a expansão colonial está patente num conjunto de 13 esculturas de menores dimensões apresentadas na galeria Layr: Wuestenhagen, em Viena. As referências são objectos da colecção do Imperador Maximiliano II, hoje guardados no Kunstkammer do Kunsthistorisches Museum de Viena. Produto da curiosidade antropológica e das fantasias associadas à exploração colonial, estes objectos pretendiam ilustrar o exotismo de paragens distantes. Portugal foi um dos principais fornecedores devido à presença em Lisboa da Rainha Catarina de Áustria e à acção de um «dealer»/«advisor» que funcionava como espião do Imperador. Para alimentar uma procura crescente os fornecedores inventaram seres estranhos como o unicórnio (cujo adorno era afinal um bico de Narval) ou o «homem silvestre» (escravos africanos cobertos de pêlos de cabra para serem exibidos como raridades).

Esta invenção cruel serve de referência a uma das peças mais conseguidas da exposição: Ecce Homo. A forma de uma taça transforma-se num corpo exótico, metade tronco de cola termofusível, metade peruca afro-disco de Carnaval, que se equilibra sobre os cornos invertidos de um capacete viking de Carnaval, forrado de cabedal e tachas douradas, e uma ponta de chapéu de chuva. Um colar de pingentes de imitação de tartaruga e um penacho com penas de galo chinês completam o conjunto. Nesta exposição, a multiplicação das invenções formais e a combinação dos mais improváveis materiais geram uma irrisão do exotismo que é acompanhada de uma paródia às fantasias sexuais colonialistas com acentuado valor desmistificador.

No conjunto das suas peças mais recentes, Vale aprofunda um trabalho de citação e metamorfose de objectos pré-existentes através do recurso a materiais pobres e inusitados que sabotam a distinção entre o belo e o horrível, a humildade e a sofisticação. A valorização das formas populares de criatividade é posta ao serviço de uma análise das fantasias colonialistas em que desmitificação das ficções de dominação abre o caminho a uma pluralidade de possibilidades igualitárias de invenção híbrida de novos jogos plásticos e simbólicos.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa.



VOCÊS SABEM LÁ



Ang Lee. O Segredo de Brokeback Mountain. 2005.



Há pouco tempo vi na televisão um documentário realizado durante o Festival de Cinema de San Sebastian de 1972 em que se incluía uma rara entrevista com Howard Hawks. A entrevista tinha um lugar a bordo de um pequeno barco, as perguntas tinham a saudosa candura do cinema amador, e as respostas, como seria de esperar, tinham a grandiosa inocência do grande cinema.

Quando perguntaram a Hawks quais os filmes que mais tinha gostado de fazer, ele respondeu qualquer coisa como isto: «Os filmes que mais gostei de fazer: os ‘westerns’ com John Wayne. Eu só tinha de lhe explicar o que queria que ele fizesse. Ele fazia, e eu filmava».

Há alguns anos, uma perversa distância horária entre a aula da tarde e a aula da noite do meu horário de professor deixou-me o tempo exacto para, ao longo do semestre, ver – sempre na companhia de pipocas – uma série de filmes de uma hora de Lone Star Productions em que pude apreender a mais elementar gramática do «western» e apreciar o nascimento de John Wayne antes de ele se tornar o John Wayne histórico.

Nesses filmes preciosos, com títulos como Neath the Arizona Skies, Blue Steel ou Riders of Destiny, o jovem John Wayne dá o corpo a uma figuração masculina que veicula, dir-se-ia que com uma absoluta naturalidade, a imagem da pureza e inocência original do novo homem do novo Oeste, que é também, para o efeito, o novo Ocidente, ou, se quiserem, a nova Europa, isto é, a América. Claro que a naturalidade de que falo não é a da Natureza, que é tudo menos natural, mas sim a do cinema, que é a única natureza que nos foi dado produzir e, portanto, conhecer.

O corpo de John Wayne foi o portador de um olhar, um sorriso, uma pose que tinham ao mesmo tempo a evidência de uma encarnação do bem e de uma plena presença masculina («How many times do I gotta tell you, I don’t acta t all, I re-act»). A celebração desse John Wayne é feita de modo magistral pela escritora americana Joan Didion num texto comovente, intitulado «John Wayne: A Love Song» (1965), incluído no livro Slouching Towards Bethlehem, uma das obras máximas da autora. Didion conta como ficou para sempre à espera que um homem prometesse construir-lhe uma casa «at the bend in the river where the cottonwoods grow» e cita Raoul Walsh com a sintética eloquência que o caracteriza: «Dammit. The son of a bitch looked like a man».

Estavam criadas as bases para a construção da figura mítica que o cinema de Walsh, Ford e Hawks celebraram e consagraram: o «cowboy», uma das figuras mais fortes do imaginário cultural do século XX. Um estereótipo é antes de mais uma ideia de bem e um ideal de beleza modelados sob uma forma que permite gerar processos de identificação de massas. Um exemplo privilegiado da eficácia genérica da imagem do «cowboy» é a famosa campanha publicitária da Marlboro centrada na figura do «Marlboro Man». Através de anúncios cada vez mais depurados, em que foram deixando de existir quaisquer palavras ou mensagens explicitas, a Marlboro limitou-se a fazer deslizar o seu nome da marca para dentro de um universo que, através das mais simples imagens de paisagens e homens a cavalo, continha a vastidão de um mundo inteiro, o mundo do «cowboy».

São estas imagens da publicação da Marlboro que, nos anos 80, vão ser apropriadas por Richard Prince, um dos mais importantes artistas plásticos americanos do nosso tempo. O apropriacionismo é uma tendência da prática artística contemporânea que consiste em usar algo já existente, com alterações mínimas, mas apresentando-o de um modo diferente, num contexto diferente, abrindo assim um espaço de multiplicação, subversão ou inversão de sentidos.

«A imagem do ‘cowboy’ é tão familiar na iconologia americana que se tornou quase invisível devido à sua banalização. Ao mesmo tempo, o ‘cowboy’ é uma das mais sagradas e teatrais (‘masklike’) figuras culturais. No sentido cultural e geográfico, o ‘cowboy’ é uma imagem de ‘endurance’ e um símbolo, um estereótipo do cinema americano. É ao mesmo tempo o vagabundo (‘wanderer’) e o símbolo mítico da mobilidade social» (Rosetta Brooks, in Catálogo Richard Prince, Whitney Museum). Quando Prince reenquadra e refotografa as imagens dos anúncios da Marlboro e as apresenta no contexto do mundo da arte contemporânea, recria uma distância suplementar que permite um novo olhar. As imagens do mundo do «cowboy» são depois despidas de todas as suas especificações mais particulares, mais fechadas ou mais vinculadas e deslocadas para um terreno de indeterminação dos sentidos que abre, por um lado, para a nostalgia dos desejos de pureza original e, por outro, para todas as possibilidades de novas conexões e conotações.

Pensa-se por vezes que um estereótipo é uma entidade fechada. Foi talvez essa crença que tornou o «cowboy», num dado momento, um alvo preferencial das caricaturas típicas da propaganda antiamericana. Mas um estereótipo é o representante de um mundo inteiro, e, por isso, a dinâmica de liberação dos sentidos não se pode fazer contra o estereótipo, mas sim abrindo no coração do estereótipo um espaço liso que lhe devolve a tensão originária e o horizonte infinito do que nos habituámos a chamar liberdade. Se falamos de horizontes de liberdade não pode haver evocação mais feliz do que a do «cowboy».

Brokeback Mountain é, por certo, o filme do ano, uma majestosa história de amor e uma obra-prima do melodrama. É também uma lição de moral e uma demonstração do anacronismo cultural dos grandes inquisidores e falsos liberais, que continuam a promover a homofobia e a discriminação com base nas preferências sexuais. Mas Brokeback Mountain é, sobretudo, a demonstração da capacidade do grande cinema para transportar toda a carga mítica da sua tradição e, ao mesmo tempo, abrir espaços infinitos para a imaginação das histórias que hão-de dar novos destinos aos nossos heróis eternos. É a celebração do cinema como triunfo da liberdade que pode unir num mesmo abraço Jake Gyllenhaal, Heath Ledger, John Wayne, Dean Martin e todos os «cowboys» do mundo.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 25 de Março 2006

UM HOMEM E UMA MULHER



João Pedro Rodrigues. Odete. 2005.



É muito desagradável deixar cair coisas no chão. Em determinadas circunstâncias, a queda de uma chávena de chá meio cheia sobre o soalho de uma sala pode ter consequências susceptíveis de comprometer de forma definitiva uma carreira mundana.

Imaginem agora que, não sabemos por quantos momentos, sustentamos entre as nossas mãos um coração. O coração de alguém. O perigo é imenso. Um coração é um objecto vivo e muito sensível. Deixar cair um coração, partir um coração, é por certo o maior crime que contra a humanidade se pode cometer, e não é nada fácil encontrar quem o sabia redimir.

Numa das sequências mais belas e mais terríveis de toda a história do cinema (não sei se devo acrescentar português), Diogo Dória atira violentamente para o chão o vaso de vidro que contém o coração de Francisca. Falo de Francisca, de Manoel de Oliveira, inventada a partir de Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís, e de um trágica história de amor do final do século XIX.

Francisca é o século XIX ou a pré-história do cinema: o cinema que havia, sempre houve, na pintura e no romance, antes de haver cinema. Entre Francisca e Odete está o século XX, ou seja, a histórica do cinema. É esta a matéria-prima, a paixão e a sabedoria de João Pedro Rodrigues: o conhecimento apaixonado da história do cinema. É esta a matéria-prima, a paixão e a sabedoria de João Pedro Rodrigues: o conhecimento apaixonado da história do cinema. Histórias de vida, sexo, luz, morte e amor. É por isso que João Pedro Rodrigues é um dos mais fortes e originais autores emergentes no panorama do cinema contemporâneo. Odete é a Francisca do século XXI.

Esta é a história de um coração partido e de um coração posto em estado de desassossego. Dois incidentes iniciais. Pedro, o namorado de Rui, morre, ou parece morrer, num acidente de automóvel. O namorado de Odete mostra desagrado em relação à hipótese de ter um filho. A obsessão de Odete com a ideia de ser mãe atira a protagonista para uma errância que servirá de fio condutor à narrativa.

A deriva de Odete é movia pela ideia de maternidade. Um tema recorrente sob formas que valeria a pena comparar em vários filmes portugueses recentes, como Glória, de Manuela Viegas, ou A Mulher Policia, de Joaquim Sapinho.

Veja-se a relação de Odete com a mãe (Teresa Madruga) de Pedro, cuja evolução nos dá a chave dos pontos de viragem da narrativas. As mães acabam sempre por se entender.

A deriva de Rui não é uma deriva e não é motivada por nenhuma ideia. Porque um coração partido não tem ideias. Não sabe bem tem para onde ir e só pode ficar onde está, no chão, à espera que alguma coisa lhe aconteça.

A morte de Pedro é apenas um pretexto ficcional. No cinema, como na vida, a morte não existe, só existe a vida. O problema é que a vida não existe por si só. Só existe antes e depois da morte de alguém.

O coração de Nuno Gil (Rui) é o centro, o campo de batalha e objectivo deste filme, ou, pelo menos, deste texto. Ana Cristina de Oliveira (Odete) vai fazer com que aconteçam coisas, que é a sua grande especialidade pessoal, mesmo quando não está num filme. Escrevo aqui os nomes dos actores antes do nome das personagens porque no cinema de João Pedro Rodrigues os actores, para além de intérpretes de personagens, são, antes de mais, os portadores dos seus próprios corpos. Reveja-se o caso exemplar de Ricardo Meneses em O Fantasma.

O objectivo de Odete é o mesmo de qualquer pessoa saudável e ambiciosa. Encontrar um corpo, ter um corpo, que seja ao mesmo tempo o seu corpo, um filho e um amante. Deixo ao vosso critério discernir se quando falo do seu corpo me refiro aqui ao corpo próprio, ao corpo de alguém que se tem, se é que se pode ter alguém (ter um filho, possuir um corpo), ou a ambos.

É um programa óbvio, embora não seja fácil de concretizar. Não é executável, mas é praticável. Não é um programa na acepção de plano susceptível de ser executado, mas no sentido de um dispositivo de referência susceptível de gerar práticas, exercícios, acontecimentos (à maneira de Deleuze). Um campo de acção, como seja por exemplo um corpo, é, neste sentido, infinito.

Odete, sendo um filme e revelando o entendimento das possibilidades da vida que só o cinema proporciona, vai demonstrar de um modo implacável que por causa do desejo e do amor todas as impossibilidades se tornam plausíveis. As cores do arco-íris são apenas a expressão do triunfo da luz sobre um céu carregado de nuvens. A expressão de uma eterna aliança. Em volta de duas alianças circulam as metamorfoses dos sentimentos desta história, que se desequilibra entre a assustadora efemeridade e a potencial eternidade de qualquer aliança amorosa.

Voltamos à diferença entre o século XIX e o século XXI. Conjugando um romantismo radical e pós-humano com a clareza do nihilismo optimista do jovem século. Odete não é uma tragédia. Também não é um Breakfast at Tiffany’s. É um «Later Dinner at Starbucks». Uma comédia dramática a que João Pedro Rodrigues teve a generosidade de oferecer um «happy end»: ou seja, um final tão feliz quanto possível.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 11 de Fevereiro 2006


VASCO ARAÚJO



ARTFORUM
Maio/May, 2006



L'inceste, 2004


Let’s begin with a question: What might one have done to induce an apt mood for viewing Vasco Araújo’s recent show “L’inceste”? My recommendation: Listen to Mozart and read the Marquis de Sade. For “L’inceste” was a contest between reason and perversion, elegance and corruption, good and evil. And the only rules of the game are those that determine the theatrical power of staging and interpretation. The show was composed of ten works spread over three rooms in Lisbon’s Museu Nacional do Azulejo (National Tile Museum). The dialogue between the traditional pieces on permanent exhibition and Araújo’s intervention was an additional element of complexity or, if you prefer, perversity in reading the show. Araújo’s works were (each title L’inceste, 2004) were standard museum vitrines, inside which were porcelain pieces installed in a gray moiré fabric base with embroidered texts. The objects chosen, obtained at a secondhand markert in Brussels, were replicas of German, French, and Portuguese originals from the eighteenth century, representing domestic court scenes, bucolic settings, and animals (birds, frogs, toads, and lizards). The texts were quotations from Sade’s Eugénie de Franval (1800), a novella recounting an incestuous affair between father and daughter and one of the author’s most concentrated works.
One showcase contained the declaration of mutual love between father and daughter, accompanied by a depiction of a rural couple in which the woman offers a glass to the man, whose amputated arm lies in front of the cited texts. In another vitrine a lizard approached two chicks. The legend described the incestuous couple in flagrant before the offended mother/wife and included, in an accusation made by her, the sole use of the word “sadistic” in the show. One case containing a procession of frogs and toads illustrated in a more distant and allusive form the most generic moral maxim of this series: “No, sir, there is nothing in the world, nothing that deserves praise or censure, nothing worthy of reward or punishment, nothing that, being unjust here, is not legitimate five hundred leagues away; there is, in sum, no true evil, no eternal good.”

In another recent work, Jardim (Garden), 2005, not in this show, the same type of (essentially political) concern with the general reversibility of social and moral judgements is evinced through a video made in the Jardim Tropical in Lisbon, a garden created in 1906 and known then as Jardim Colonial. The film offers the contrast between a bucolic atmosphere and the garden’s strange sculptural representations of African peoples by European sculptors. These mute figures are transformed by the film’s sound track into characters in a narration in which passages from Homer come to function as subversive commentary on the relationship between us and others, between citizens and foreigners, in a context of invasion, war, and confrontation. In the war of interpretations and narratives on a global scale, who are we and who are the foreigners? Who will relate the next story – Sade or Fragonard?


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Texto traduzido para inglês por Clifford E. Landers e publicado na revista mensal Artforum, na edição de Maio de 2006, por ocasião da exposição “L'inceste”, de Vasco Araújo, no Museu Nacional Azulejo, Lisboa, 2005.