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RUI SANCHES - RETIRAR A MATERIALIDADE DAS PERSONAGENS



Rui Sanches. Orfeu. 1989.

O traçado de um perfil é um bom pretexto para sortir informações biográficas que normalmente não caem bem no contexto dos escritos mais pretensiosos.

Nasceu em Lisboa há quase trinta e seis anos, sob o signo de Touro, ascendente Gémeos. Os dados astrológicos funcionam sempre pela leveza e humores para leitores mais fúteis ou como indícios reveladores para crentes e especialistas.

O artista cultiva pela astrologia um interesse relativo. Nunca o aprofundou.

Confessa que da infância e adolescência não se lembra de nenhum segredo ou revelação que tenha sido determinante no encaminhar da sua carreira, ou que seja decisivo para a compreensão actual do seu trabalho. Mas lembra-se mesmo assim de algumas coisas. “A primeira exposição que me lembro de ter visto e de me ter provocado uma impressão forte foi ‘Um século de pintura francesa 1850/1950’ em 1965. Tinha 11 anos. Lembro-me perfeitamente dos trabalhos de Soulages. E de Cézanne. Quanto a influências, na minha família não havia ninguém especialmente dados às artes. Apenas alguns professores, no Pedro Nunes, me encorajaram a ir para Belas-Artes mas nada de realmente decisivo.”

Foi e depois deixou de ir estudar medicina entre 1971 e 1974.

Primeiro porque queria ser psiquiatra com a boa intenção humanista de entender o seu semelhante – e a si próprio, como era próprio da idade. Mas como nunca se interessou pelos aspectos clínicos, tinha até aversão a doentes, rapidamente chegou à conclusão de que a psiquiatria não era a sua vocação. Saiu de Medicina para o Ar.Co para obter uma “formação básica” em matéria de artes. No ano seguinte trabalhou em Bragança, no Gabinete de Apoio Técnico às Autarquias, dirigido por Pedro Vieira de Almeida; maquetas, desenhos, trabalhos de apoio. A seguir, mais um ano no Ar.Co, em pintura, a preparar o concurso ao Goldsmith’s College em Londres – onde foi aceite em 1977 e ficou até 1980.

“Antes de ir para Inglaterra houve uma coisa importante que foi o contacto com o trabalho e as ideias à volta do trabalho de Jasper Johns – através dos livros bem entendido – que teve nessa altura uma influência significativa. Enquanto estive em Portugal só trabalhei em pintura cada vez mais minimal, quase monocromática. Quando fui para Inglaterra tive um grande choque cultural. Faziam-se coisas que eu nunca tinha visto. Trabalhos como textos, fotografias, performance. Durante um ano experimentei tudo e mais alguma coisa e quase deixei de fazer pintura. Comecei a produzir coisas cada vez mais tridimensionais usando materiais do quotidiano: espelhos, bocados de vidro, painéis forrados ou pintados. O meu trabalho centrou-se numa investigação sobre a perspectiva. Comecei a interessar-me pela pintura clássica do séc. XVII, tratados de perspectiva, escritos e experiências de Duchamp em torno da óptica”

Depois de Londres foi para os Estados Unidos. Yale University, New Haven, entre 1980 e 1982.

“Depois do habitual período de choque e adaptação, trabalhei numa espécie de instalações, coisas muito abstractas, jogos de composição, com placas e riscos no chão e nas paredes. Utilizei caixas que serviam como módulos, organizados de uma maneira que remetia para os pontos de vista dentro da sala. A seguir comecei a fazer coisas baseadas em Poussin.”

Este é o momento de colocar a questão de saber até que ponto é que o trabalho de Rui Sanches denota marcas efectivas de uma formação anglo-saxónica, e que significado é que a referência anglo-saxónica pode efectivamente ter, quer em termos absolutos quer em termos relativos a um meio artístico como o português, tradicionalmente suposto muito influenciado pelas tradições culturais francesa, literária e psicológica.

“Nessa altura, foi muito importante o contacto com a Arte americana, sobretudo a arte minimal, que só conhecia de reproduções. Igualmente importante foi o conhecimento da maneira de estar e da atitude americana em relação ao trabalho do artista. A continuidade do trabalho, como se fosse outro trabalho qualquer, a presença regular e diária no estúdio, em vez de ficar em casa à espera da inspiração. A ideia de que é no estúdio que o trabalho se resolve. Fez-me ver, ainda quando por oposição, a diferença entre a ‘maneira europeia’ e a ‘maneira americana’, mais puritana”.

Voltou a Lisboa em 1982 e voltou ao Ar.Co, agora como professor de desenho e escultura. “Em 1983 não fiz nada de escultura porque não tinha local para trabalhar. Só desenhos. Os desenhos vieram um bocado a partir da escultura. Li coisas sobre Poussin e a mitologia clássica. Precisei de copiar alguns diagramas de escavações arqueológicas em cidades gregas, que começaram a ganhar uma importância autónoma enquanto desenhos. A partir daí apareceram mapas, vistas aéreas, sempre representações do espaço”.


A primeira exposição de desenhos foi em 1984 na SNBA. Voltou a expor desenhos em 1987 na Diferença (“Preto e Branco”) e em 1989 na Loja de Desenho (“A Marat”). “Hoje em dia, o desenho continua a funcionar para mim como uma actividade paralela à escultura. Por vezes, os desenhos são totalmente independentes das esculturas. Outras vezes tratam os mesmos temas utilizando os meios próprios do trabalho em duas dimensões; foi o caso ‘Marat’, escultura e desenhos. Outras vezes, ainda, os desenhos são feitos a partir de uma escultura, como a exposição ‘Preto e branco’ a partir da escultura ‘Natal’ (1986). O desenho serve para equacionar o problema de relação entre as duas e as três dimensões, problema que também surge na minha escultura. É uma outra maneira de trabalhar sobre a mesma questão.”

Em 1984 fez a decoração do Bar Frágil. Segundo a lógica de um movimento pendular, depois do excesso romântico da decoração assinada por Cabrita Reis, Rui Sanches joga na eficácia discreta de um sistema frio de pontuação do espaço. Rigor geométrico, sobriedade formal, cores e linhas puras. Desocupação do espaço e vectorização do olhar.

É altura de não esquecer que Rui Sanches é um escultor. Por uma vez, aliás, a aplicação do qualificativo de escultor nem sequer se afigura polémica. A sua primeira exposição individual de escultura foi em 1984 na Diferença: “Et in Arcadia ego”.

Desde então e embora, por estranho que pareça, não tem realizado nenhuma ou outra individual de escultura, tem mostrado regularmente as suas obras em sucessivas significativas colectivas. “Arquipélagos”, em 1985 na SNBA, e “Cumplicidades” em 1986 na EMI-Valentim de Carvalho, marcam a inclusão num “grupo de afinidades” em que também se incluem Pedro Calapez, José Pedro Croft e Cabrita Reis. A III Exposição Gulbenkian em 1986 e a V Bienal de Cerveira em 1986, a Bienal de São Paulo em 1987, o Primeiro Prémio Unicer em Serralves, 1988, prémios e aquisições, marcam o começo de um reconhecimento generalizado à escala nacional. Já em 1989 expôs com António Campos Rosado e Pedro Campos Rosado.


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Alexandre Melo, “Rui Sanches – Retirar a materialidade das personagens”, in Artes&Leilões, Ano 1, Nº2,  Lisboa, Dezembro - Janeiro de 1989-1990.

EDUARDO BATARDA



Artes&Leilões
Junho-Setembro 1990

Eduardo Batarda, O Sr Professor C. J. P. Na Hora do Maior Movimento, 1965

29 de Outubro de 1943. Escorpião. Segundo o nada científico livro dedicado a este signo por Michéle Cursio «o escorpião, um dos mais antigos habitantes do planeta, tem mantido, ao longo de milhares de anos, a mesma forma, como se a natureza o tivesse considerado perfeito desde a sua apreciação. Apresenta ainda uma particularidade surpreendente: não está imunizado contra o seu próprio veneno e, perante uma situação que considera sem saída, chega a picar-se a si próprio. Ora, entre os animais o suicídio (ou antes, a autodestruição) é raríssimo; no escorpião é normal. Este animal, triste mas perfeito, parece, portanto, possuir um destino absolutamente excepcional». (Publicação Europa-América, Colecção Zodíaco, p.12/14.)

Horóscopo e biografia

Segundo Eduardo Batarda «não sei bem quais são as características psicológicas que as pessoas me costumam atribuir. As reacções directas são raríssimas. Às vezes as pessoas não fazem outra coisa senão confirmar na base de ‘ah, és mesmo um escorpião’. De resto as características marcadas que os escorpiões são supostos ter também não sei bem quais é que são...Sei que passam pela autodestruição, pela análise e mania da desmontagem, e em casos mais complicados por coisas como a autorecriminação, a culpa, a dúvida, relações tipo sadomasoquistas com o resto do mundo, o universo, Deus, etc. Aquilo que eu penso e que estou convencido que é aquilo que maior parte das pessoas que pensa alguma coisa de mim diz, acha ou escreve não tem tanto a ver com o escorpião, porque é mais na base de “ah, esse, pois...”. É qualquer coisa de não muito negativo, mas também nada de positivo. E não tem nada a ver com certos sentimentos de agressão, agressividades, maldade, ataque.»

Ainda ao nível da caracterização psicológica da personagem, mas já também a propósito do trabalho, vale a pena insistir no carácter obsessivo. « Se eu concordar parece que me estou a gabar de qualquer coisa. Mas tenho que dizer que o meu trabalho é obsessivo porque é meu, porque é o que eu faço e tenho tendência a fazê-lo muito, tanto como as coisas que posso facilmente referir como obsessões, que são os ‘hobbies’. Por comparação com as minhas colecções e as manias, percebo que o meu trabalho é qualquer coisa que tem características de manias ou desse tipo de obsessão. Por ser o meu trabalho, por ser supostamente arte, tem outro peso descrevê-lo como obsessão...teria a ver com vários níveis de gabarolice. Teria que estar a dizer que trabalhava muito, e quem diz que trabalha muito em princípio funciona com o preconceito que diz que trabalhar muito é bom, coisa com a qual eu não concordo. Por aí talvez o meu trabalho seja qualquer coisa de obsessivo, porque é que eu faço tanto uma coisa com a qual não concordo...por obsessão, por mania? Em tempos talvez fosse possível dizer que tinha a teima de descascar as coisas, simplesmente parece que depois de várias décadas de desconstrução foram encontrados métodos que aliás não desmerecem, métodos por exemplo reconhecidamente admitidos como boas maneiras de comunicar visualmente, como ter uma ideia de cada vez, não complicar as coisas, ser explicado, breve. Se havia qualquer intenção obsessiva de fazer essa leitura da leitura, essa análise das possibilidades dos sentidos, e eventualmente essa demonstração ou exibição de que estava a fazer essa leitura, se eu sabia isso então eu deveria ser explicado e breve, e há-de ser por qualquer coisa que já é uma obsessão a outro nível que eu não sou nem explicado nem breve ».

Apesar da entrada directa nos temas mais profundos, um perfil não dispensa algumas convenções biográficas. Do género: nasceu em Coimbra, no meio de Portugal e da 2ª Guerra Mundial. Foi estudar Medicina para não fazer a desfeita à família. Andou por lá três anos sem fazer progressos a não ser em matéria de cultura geral – embora suponha que esta referência é irónica, é quase um erudito e tem tendências hipermnésicas -, consciencialização política – suficientemente profunda para nunca o levar a militância e animação urbana tanto quanto o adjectivo se pudesse aplicar à cidade de Coimbra.

Em 63 passou de Coimbra para Lisboa para fazer o que numa biografia à antiga se diria «abraçar a sua verdadeira vocação». Começou a abraçá-la na ESBAL onde ficou até 68. Ano da primeira exposição individual na Galeria Quadrante, em Lisboa. Era uma figuração a que podiam servir referências: a arte e as outras coisas pop; o design gráfico (procure-se descobrir alguns dos livros excelentemente ilustrados por Batarda); a banda desenhada. Quer isto dizer que as cores eram vivas e bem contrastadas -  «as cores da swinging London», para onde Batarda partiria depois de três anos de tropa que lhe pareceram bastante suficientes.


Eduardo Batarda, Eat That Chicken, 1973

As figuras e as suas supostas situações eram truculentas, ou insólitas, às vezes maldosas, ou satíricas. A composição era por compartimentação, às vezes com painéis compostos de vários quadros, como na banda desenhada.

Royal College of Art, Londres 71/74. Na sequência da publicação, em 70, de um livro de que Manuel de Brito guarda ainda alguns exemplares, Batarda trabalha com aguarelas. O que lhe vale, a troco de originalidades, a sugestão, por alguns professores, de passar da área de pintura para a de artes gráficas. Mas não houve maneira de lhe explicar que o que fazia não era pintar, e acabaram por lhe dar prémios. Também lhe criticaram as sobreposições de sentidos, os cortes de caminhos e de leituras. Prefeririam imagens unívocas. Mas, ainda aí, não houve nada a fazer.

Os trabalhos de Londres seriam expostos em 75, na Gulbenkian. Na apresentação dos trabalhos de Londres, Batarda esclarece o sentido global da sua trajectória: «(...) é deste cultivo das ambiguidades, e deste trabalho em que o elemento satirizador assume – na quase total aparência – as formas de satirizado que (...) nasce aquilo que considero relevante no meu trabalho. Mais ou menos aperfeiçoado com o correr do tempo, aquele tornou-se mais óbvio e declaradamente um comentário permanente ao estado actual das artes visuais (...) É porventura da aversão às evidências, gerada pelos hábitos atrás descritos, que tem a sua origem à pista fundamental – a minha, pelo menos – para a leitura destes quadros: nenhum deles se mostra como a própria coisa. Trata-se de citações, de citações de citações, e, indo por aí fora, de autocitações».

Aguarelas: a gestão das cores e complexidade da composição

De 75 a 77, a mudança de Lisboa para o Porto, e a correspondente crise de habitação, afastam-no da prática da pintura. No final da década volta às aguarelas. São agora menos figurativas, levando à fragmentação do espaço, à complexidade da composição e detalhe do desenho, à gestão das cores, a extremos de minúcia e perfeccionismo.

Os anos 80 vão corresponder a uma viragem na pintura de Batarda mas essa viragem vai, no seu caso, num sentido oposto ao da evolução geral.
Pelo contrário, nos anos 80, quando se recupera a figura, a cor, a referência gráfica, a espontânea idade, a legibilidade, Batarda adopta um leque cromático radicalmente mais austero, adensa e encobre a sua rede de citações e remissões (alargada a toda a história da pintura), complexifica um jogo formal tendencialmente abstracto (embora partindo de formas referenciáveis), multiplica a espessura da eventual descodificação dos seus quadros.

A perfeição do fazer

A partir de 82 vem expondo com regularidade quase anual nas Galeria 111, Lisboa e Zen, Porto. Uma série de exposições que foram demonstração da consistência de uma linha de trabalho e de perfeito domínio dos meios – a que se costuma chamar maestria. A consagração da autoridade de um autor. Mesmo que a braços com as contemporâneas desventuras da noção de autoria.

A perfeição do fazer entendida como perícia técnica é muitas vezes enaltecida no trabalho de Eduardo Batarda. Que adverte contra uma valorização exagerada deste tópico. «Cada coisa que é feita é produto de uma determinada intenção, e a maneira de atingir essa coisa é a técnica que é preciso ter. Como tal, é evidente que eu reajo e fico magoado na minha vaidade quando alguém põe em destaque o tempo que aquilo demorou a fazer, ou que bem feito que está etc., porque em princípio aquilo não deveria estar suficientemente bem feito senão para ser o que é. Agora se eu estou a fazer uma paródia ou uma caricatura de uma coisa bem feita, uma troça ligeira e até semi-nostálgica aos estilos, isso é talvez um segundo assunto. Mas a técnica como técnica seria só isso, o bastante para que uma coisa pareça o que parece e seja o que é. Como professor eu lido todos os dias com isso, e peço constantemente situações e soluções completamente diferentes umas das outras. Não há necessariamente uma técnica, há técnicas de fazer isto e de fazer aquilo. E o que é péssima técnica num contexto pode ser excelente noutro».

Mais fundamental que o apuro técnico poderá ser no trabalho de Eduardo Batarda a inteligência das referências, agrupando nisto três coisas: a erudição de um controlo minucioso da história das formas e dos modos; a hipersensibilidade às marcas tipificadoras da actualidade de cada conjuntura plástica e aos ritmos e variantes das suas oscilações; a omnipresente consciência da própria história artística e pessoal do autor. Qualquer pintura de Eduardo Batarda pode ser transformada num jogo de advinhas, numa decifração de indícios, em que se trataria de recensear as referências à história de arte, à actualidade plástica e à criação, subversão, composição, contraposição. Por fim, poderiam distribuir-se-lhes qualificativos psicológicos desde a homenagem até à denúncia passando pelo comentário e a ironia. Mas à medida que o formos sistematicamente realizando veremos que se trata de um processo interminável. Todas a referências sucessivamente se desdobram e com elas se desdobram também sucessivamente as possibilidades de as valorizar e qualificar segundo esta ou aquela categoria.

  
Eduardo Batarda. Reserva, 1988

O que se sabe e o que não se sabe

A inteligência das referências começa por aparecer como construção de uma gigantesco jogo de indícios proposto em desafio à capacidade de decifração do observador. Mas, uma vez que esta decifração não se encerra num sentido final ou leitura fechada, somos uma vez mais levados a reconhecer um valor profundo de atitude.

Uma peculiar vontade de omnisciência. Mostrar que se sabe aquilo que se sabe e que não se sabe aquilo que não se sabe, que se sabem as formas sob as quais se deve ou não se deve mostrá-lo, que se é capaz de antecipar sabedorias e as capacidades de leituras dos observadores, de as cumular um pouco e decepcionar um pouco. «A única coisa que eu não tenho obrigação de fazer mas talvez devesse ter, é a antecipação, previsão do futuro....A outra coisa que eu não posso fazer é a citação gratuita, pelo menos de há onze anos para cá. Tenho um entendimento, suponho que cada vez mais distante, à força da preguiça, falta de tempo, da chamada contemporaneidade. Mas ‘mantenho as minhas ligações’ e sigo atentamente a minha época e ‘a sua carreira’ com o maior interesse. Não posso posar como artista despretensioso que observa o mundo da sua tebaide ou do seu pequeno local de província, nem como o gajo de Santa Fé, Novo México, que diz adeus mundo, rivalidade, selva das artes, cá estou eu virado para o eterno nada, que é a eterna natureza...A questão é que por hobby, de certo modo como coleccionar coisas, deu-me há muitos anos a mania de olhar para as artes e para a história de arte de uma maneira que é cada vez menos a maneira do ‘art-world’.  E de passagem aproveito para lamentar o fosso que se cava entre os académicos e os artísticos. Não sendo estudioso nem investigador nem conhecedor (connaisseur) de nada, confesso que o peso das coisas do passado tem para mim outro interesse. Talvez seja por isso inevitável que eu apresente pistas ou restos que possam ter a ver com uma coisa que episodicamente cruzou a trajectória de alguma arte contemporânea, aqui há alguns anos, e que agora já não está outra vez a dar, ou seja, a história da pintura e das tradições. Alguém tem de estar a fazer isso, neste impasse e neste equívoco. Há centenas de milhar de pessoas que estão convencidas que estão a fazer o novo quando estão a fazer o velho, mas têm que o fazer, porque é sempre possível que aconteça que o equívoco seja ao contrário, que estejam a fazer alguma coisa nova, certamente num contexto diferente em que o conceito de novo também fosse diferente, mas que o contributo individual fora de expressionismos e romantismos seja o pouco que se diz e o pouco que se acrescenta.»


Um pouco mais de abuso e Eduardo Batarda ficava com o perfil de um pintor romântico, não apesar de si mesmo mas apesar de tudo. Um estilo apesar de tudo. «Coisa que se calhar é uma vez do antigamente a dizer que apesar de tudo ninguém se safa disto. Apesar de todos os didactismos, apesar de todos os basismos, explicações, facilitações, às tantas é possível que se repare em alguém e se defina toda a sua obra pelo seu estilo. »  As ideias são de factos o estilo.

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Alexandre Melo, “Eduardo Batarda”, in Artes&Leilões, Lisboa, Junho-Setembro 1990, p.28-33.

TÓPICOS DA INTERNACIONALIZAÇÃO




Artes&Leilões
Fevereiro - Março, 1990



Julião Sarmento, Mehr Licht, 1985, ©Tate

O regime ditatorial em Portugal correspondeu a uma época de isolamento em relação às correntes que a nível internacional faziam a história da modernidade. Os casos excepcionais de alguns artistas emigrados – por exemplo Vieira da Silva em Paris ou, mais recentemente, Paula Rego em Londres – ou de alguns momentos de ligeira abertura, não alteravam um contexto global retrógrado.

A revolução de 1974 vem provocar, neste panorama, uma ruptura que dará lugar a uma nova conjuntura cultural que possibilitará, nos anos 80, a emergência de uma nova geração de artistas cuja afirmação é, hoje em dia, um facto consumado.

O processo de abertura e internacionalização da situação artística portuguesa é ainda limitado e embrionário. Não se pode comparar por exemplo com a explosão internacionalista que se deu em Espanha nos últimos anos. O relativo fechamento da situação portuguesa é consequência de múltiplo factores: uma rotina de isolamento cultural herdada da ditadura; o conservadorismo e a falta de informação das instituições culturais e da opinião pública; a reduzida dimensão do mercado de arte; a falta de interesse dos poderes públicos pela política cultural; as dificuldades económicas do país e as suas consequências ao nível do orçamento em que a cultura nunca foi considerada prioritária.

Todos estes factores constituem, por um lado, limitações à difusão dos artistas portugueses no estrangeiro e dos artistas estrangeiros em Portugal. Nesta medida poderiam constituir um elemento de atraso para a situação portuguesa. Mas, por outro lado, este mesmo atraso comporta também aspectos positivos. Desencoraja o exibicionismo espectacular e a precipitação demagógica. Neste sentido, o referido atraso joga de uma maneira ambivalente e pode servir para preservar uma duração e um ritmo mais adequados e uma maior consistência na relação quer do público quer dos próprios artistas com as obras.

Embora admitindo o carácter embrionário quer do mercado quer do processo de internacionalização da arte portuguesa contemporânea, importa reconhecer que ao longo da última década, e sobretudo nos últimos anos, se tem registado um crescente dinamismo.

Uma primeira componente deste dinamismo foi o estabelecimento de relações com a Espanha e designadamente a presença portuguesa na ARCO, Feira de Arte Contemporânea de Madrid. A mútua ignorância cultural entre Portugal e Espanha, herança histórica alimentada por nacionalismos anacrónicos e reactivos, foi ultrapassada, no campo da arte contemporânea, através do estabelecimento de relações pessoais e de trabalho entre artistas, galerias, publicações e críticos portugueses e espanhóis. Miquel Barceló, José Maria Sicília, Cristina Iglesias, Juan Muñoz, trabalharam e expuseram em Portugal em momentos iniciais ou ainda ascensionais das suas carreiras. Julião Sarmento expõe regularmente em Espanha desde há anos e mais recentemente há a registar individuais de Pedro Proença e Leonel Moura, para além de múltiplas presenças em colectivas e da próxima realização, em Barcelona e Sevilha, já este ano, das primeiras exposições significativas dedicadas por instituições espanholas à arte portuguesa contemporânea. 

O hábito e a regularidade da presença de galerias portuguesas na ARCO, para além dos contactos e negócios que terá permitido, tem também um importante significado psicológico e pedagógico enquanto factor de abertura, ainda que limitada, dos horizontes culturais e do terreno de confronto. Aliás, a presença de artistas portugueses em feiras de arte contemporânea alargou-se de Madrid a Basileia, Los Angeles, Londres, Zurique, sendo que a continuidade e a consolidação deste movimento pode constituir um factor dinâmico essencial.

Uma segunda componente da embrionária internacionalização da situação portuguesa diz respeito ao trabalho desenvolvido por artistas e galerias no sentido de estabelecerem relações consistentes de trabalho a nível internacional. A Cómicos teve, a este nível, um papel preponderante trazendo a Portugal, para trabalhar e expor, artistas como Joseph Kosuth, Gilberto Zorio ou Gerhard Merz. A Módulo, com Daniel Buren ou David Tremlett, também participou deste movimento. E novas galerias começaram a trabalhar no mesmo sentido. A Atlântica (Porto), expondo Juan Carlos Savater ou Rita McBride, a Galeria Pedro Oliveira (ex-Roma e Pavia, Porto) com uma colectiva internacional ou a Galeria Graça Fonseca com uma instalação de Eugénio Cano.

No sentido inverso, importa referir que também artistas portugueses vão adquirindo ou reforçando o reconhecimento internacional. Julião Sarmento, com exposições em Madrid (Marga Paz), Munique (Bernd Kluser), Bruxelas (Xavier Hufkens) ou Turim (Giorgio Persano), para só referir as mais recentes. Leonel Moura em Madrid (Montenegro) ou Los Angeles (Meyers/Bloom). Ou ainda Cabrita Reis em Nova Iorque (Bess Cutler).

Um outro pólo de relacionamento internacional tem sido a MADE-IN, empresa de trabalho em pedra, que vem desenvolvendo um trabalho de cooperação com escultores americanos interessados em aproveitar a boa qualidade e disponibilidade da pedra portuguesa. No contexto deste programa, apoiado pela Fundação Luso-Americana – com muitas outras actuações positivas em matéria de abertura internacional – já se deslocaram a Portugal, entre outros, Amy Yoes, Joel Fisher, Jean Highstein e Matt Mullican.

Um último tópico de internacionalização diz respeito às acções institucionais que deveriam servir de apoio e suporte às iniciativas privadas. Produção, importação ou exportação de grandes exposições de arte contemporânea; realização de colóquios, conferências ou congéneres sobre o tema; criação de fundos de documentação acessíveis ao público.

Já se conhece a incapacidade financeira da Secretaria de Estado da Cultura, a incapacidade cultural da Gulbenkian neste sector, a prolongada indefinição da Casa de Serralves. Toda a gente já se perguntou porque é que as instituições portuguesas fazem como se desconhecessem, e desconhecem, a arte dos últimos vinte anos, porque é que nem sequer importaram exposições que nos últimos anos desfilaram por Espanha, porque é que ainda não há um sítio público que receba catálogos e revistas de arte contemporânea.


Há alguns anos atrás estas lamentações e acusações tendiam a tomar forma dramática e panfletária. Hoje em dia o dinamismo das iniciativas pessoais e de grupo prefere reconhecer e apoiar esforços de reciclagem cultural – os Encontros Luso Americanos, o Van Abbe ou a Exposição-Diálogo na Gulbenkian, por exemplo, alguns colóquios na Gulbenkian ou em Serralves, ou as intenções da Lei do Mecenato e da criação da Fundação de Serralves – e conviver civilizadamente com a irreprimível tendência das instituições para a incompetência e a degenerescência burocrática.

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Alexandre Melo, “Tópicos da internacionalização”, In Artes & leilões, Lisboa, Fevereiro - Março 1990, p.29-31.

GERARDO BURMESTER




Maio/Junho, 1990
May/June, 1990




Poison, 1989. Madeira e couro/Wood and leather.


Os trabalhos mais recentes de Gerardo Burmester podem ser abordados por descrição formal. A execução escrupulosa e o controlo exclusivo dos efeitos visuais faz com que seja possível realçar as características mais proeminentes. A acção combinada de texturas (madeira e couro) dão uma ressonância sensual a materiais que não têm habitualmente uso artístico. As cores quentes e fortes – vermelhos, preto, castanho – provocam sentimentos a partir do que poderia ser apenas um simples jogo abstracto de formas e construção.
Contudo, ao colocar a análise sob o ponto de vista da atitude em vez do da descrição formal, vem-nos à ideia o que se poderia chamar um romantismo ilusório.
Por romantismo ilusório entende-se aqui uma atitude em que a necessidade interior e a obstinação que estimulam o trabalho se conjugam com um tipo de indiferença e frieza relativas a cada um dos trabalhos. É como se os resultados sucessivos do processo do trabalho fossem auto-sabotados e condenados a reprimir e sufocar o impulso emocional que os desenvolve, como se fossem obrigados a distanciar-se das suas raízes afectivas, das suas origens, para surgirem destinados a um objectivo de perfeccionismo formal puro e frio em que o próprio estilo seria indiferente ou substituível, visto que não deve justamente revelar o estilo do artista.
No entanto, o processo de repressão não é nunca exaustivo. Nas peças mais recentes, por exemplo, é verdade que os materiais e a forma como são empregues sugere um lógica fria que pode ser conotada com a produção industria de objectos. Por outro lado, as sugestões sensitivas e, por assim dizer, os sentidos reprimidos são expressos em articulações afectivas subtis, por vezes reforçadas pelos títulos, em cada peça ou entre várias peças.

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Gerardo Burmester’s most recent works can be approached from formal description. The scrupulous execution and exclusive control of visual effects makes it possible to highlight the most outstanding characteristics. The interplay of textures (wood and hide) gives sensual resonance to materials conjuring up non-artistic uses. The hot, strong colors – red, black, brown - provoke feelings in what could be a simple abstract game of shapes and construction. However, in locating the analysis from point of view of attitude rather than formal description, what might be called a deceptive romanticism springs to mind.
By deceptive romanticism is here meant an attitude in which the interior need and obstinacy stimulating the work are conjoined with a type of indifference and coldness relative to each of the works. It is as if the successive results of the working process were self-sabotage and condemned to repress and suffocate the emotional impulsive giving rise to them, as if they were obliged to distance their affective roots, their origins, to arise as if destined for an objective of pure and cold formal perfectionism in which the very style would be indifferent or replaceable, since it is intended precisely not to reveal the style of the artist.
The process of repression, however, is never exhaustive. In the most recent pieces, for example, it is true that the materials and the way they are employed suggest a cold logic that can be connoted with industrial processes for producing objects. On the other hand the sensitive suggestions, and, as it were, repressed sense are expressed in subtle effective articulations, sometimes reinforced by the titles, in each piece or between the various pieces
(Tradução: Maria Madalena Simões Proença)

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Alexandre Melo, Gerardo Burmester, in Flash Art, Milão, n. 152. Maio/Junho 1990