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EM SÃO SALVADOR DA BAHIA




Pela primeira vez na vida encontrei uma coisa que não quero compreender. Isto é um progresso e uma maneira de começar a falar do Brasil.

Quis um falso acaso que ocupasse algumas das oito horas do meu voo entre Lisboa e Salvador – porque é só de Salvador, da Bahia, que, por hoje, vou falar – com a leitura da jovial colectânea de textos escritos por Agustina Bessa-Luís entre 1970 e 1974: “Alegria do Mundo – II”. A página 155, Agustina caracteriza um certo tipo de homens que crescem tristes e macambúzios porque na infância não habituaram o “paladar à sensibilidade do vinho, ao gosto da erva de cozinha, ao perfume do cravo, ao hálito da canela quente, ao dormido tempero do alecrim na caça”. Pois bem, feitas as adaptações gastronómicas impostas pela geografia, eu diria que com a gente de Salvador acontece exactamente o contrário. Sabor e saber.

Sentam-se num degrau do passeio como numa poltrona porque todos são proprietários da completa extensão dos seus próprios corpos.

Deitam-se na calçada como em colchão de pena de palácio porque todos são príncipes da completa extensão dos seus próprios corpos.

Estão de pé sobre precaríssimos telhados como estátuas de carne quente em pedestal.

Descansam refastelados num monumento de pneus à porta de uma borracharia.

Três rapazes exemplares, calção de banho a rigor, jogam bilhar à volta de uma luzida mesa de pano verde, bem como no meio de uma rua do Bairro da Liberdade.

“Capoeira”: os exercícios na praia, o espectáculo. Será que se deve considerar uma forma de dança? Ou uma modalidade de performance, pelo menos? Geralmente chamam-lhe arte marcial, mas não tem importância. Há coisas que, sendo o que são, não precisam de ser arte.

Assisti a uma aula de swing baiano – swing moleque – numa Academia junto à Praia do Porto da Barra. Vi a noite inteira cheia de gente a dançar no Pelourinho, nas discotecas. É portanto possível dançar assim, indefinidamente, e sorrir. Não, não é sorrir. É rir.

(Isto vai contra princípios básicos que estipulam que o acesso às pistas de dança esteja reservado a zombies, andróides e tolos ou ingénuos que se ignoram.)

Mas porque é que eles riem? Será que são felizes? Pergunta inquietante.

Há tantos tipos de música que o meu sólido ouvido ainda não consegue distingui-los. É música permamente. Tanto me basta.

Vou tentar acrescentar ainda mais alguns lugares comuns. É provável que isto também seja um progrsso. Aqui entra uma lista de palavras que designam comidas ou conceitos demasiado subtis para que os consiga entender ou definir: moqueca, problema de atraque, caruru, abafe, bóbó, vatapá, poderosa casquinha de siri.
Eu sei: a miséria massiva, a catástrofe das crianças, o caos do sesemprego, tudo ao mesmo tempo. Mas isso já seria abrir uma nova prateleira na estante da sociologia. E eu nem sequer quero falar das igrejas e dos museus.

Perdoem-me, por hoje, ter-me dedicado apenas à vida artística.

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Alexandre Melo, “Em São Salvador da Bahia”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº24,  Lisboa, Maio 1999

MARCANTONIO



Retrato de Marcantonio Vilaça


Num curto período de tempo, Marcantonio, à frente da Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo, tornou-se um dos maiores embaixadores da arte contemporânea brasileira. Em Portugal, na Europa, dos Estados Unidos, em todo o mundo da arte, a sua galeria, o seu trabalho, as suas palavras e os seus gestos, deram um contributo decisivo para colocar os nomes dos artistas brasileiros de hoje no lugar de destaque que a vitalidade e originalidade dos seus trabalhos reclamam e merecem, e que, feliz e finalmente, começam agora a ocupar. Em Veneza ou em Nova Iorque, em Lisboa ou em Paris, onde quer que se falasse da América Latina, o nome de Marcantonio tornou-se rapidamente um dos primeiros nomes nas agendas e nas conversas da gente da arte.

A partir do ponto de vista de quem trabalha num país pobre da periferia europeia, como é Portugal, é possível avaliar devidamente a dimensão ciclópica do trabalho de divulgação e promoção que é necessário desenvolver para, num curto espaço de tempo, ultrapassar uma enorme acumulada distância geográfica, histórica e cultural, e os correspondentes complexos de inferioridade, e afirmar o trabalho dos criadores dos nossos países, de uma forma ambiciosa e desassombrada, como parte plenamente integrante da dinâmica da criação artística contemporânea, à escala mundial. Para que um tal trabalho produza resultados rápidos e visíveis, são necessários um empenhamento e uma entrega sem limites.

De Marcantonio conhecemos o profissionalismo exemplar, a assombrosa energia, a absoluta dedicação ao trabalho, a obstinação sem quebra na defesa dos seus artistas, dos seus princípios, dos seus valores. Os valores de uma cultura contemporânea viva, aberta, dinâmica, cosmopolita. Uma cultura brasileira e cosmopolita, porque quando se trabalha no plano da verdade, não há contradição entre culturas locais, culturas nacionais e culturas globais. E este é o verdadeiro espírito do cosmopolitismo, o espírito de Marcantonio, príncipe brasileiro de uma arte sem fronteiras.

Falei de profissionalismo, de sucesso, de capacidade de trabalho de afirmação. De tudo isso vive o mundo da arte contemporânea e vivemos todos nós. Os que não conhecem o mundo da arte, os que nunca o viveram por dentro, e dentro de si próprios, pensam mesmo que é só disso que vive o mundo da arte: fama e sucesso. Mas não é verdade.

O que é que faz correr, então, essa coisa louca que é o mundo da arte? É a vontade de viver das pessoas que querem viver uma vida mais rica, mais intensa, mais veloz. Uma vida excepcional, que faz apelo a tudo aquilo que não tem lugar nas rotinhas burocráticas e tecnocráticas das vidas quotidianas mais banais.

Estou a falar de desejos de pessoas que querem encontrar pessoas extraordinárias, que querem gastar noites inteiras em discussões extravagantes, que querem sentir emoções fora do comum, que querem ser confrontadas com objectos incompreensíveis, que querem lidar com desafios intelectuais nos limites do absurdo. Não poupam horas, nem a energia, nem as palavras, nem os sentimentos.

É isto que faz bater o coração do mundo da arte. A vontade de sentir mais. A obstinação na exigência de mais. Mais de tudo, de outra maneira. sempre mais e sempre de outra maneira.

Todos os momentos que passei com Marcantonio foram momentos de entusiasmo, exaltação, bem estar, alegria. A alegria da comunhão, da fraternidade, da cumplicidade.

Esta é a maior riqueza do mundo da arte. E não há maior riqueza que o coração de um nos possa revelar. A alegria dos entusiasmos e dos sentimentos partilhados é imortal. Porque um dia a sentimos e, porque a sentimos, jamais a poderemos esquecer.

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Alexandre Melo, “Marcantonio”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº36,  Lisboa, Junho 2000


REGRESSO À BAHIA





A janela do quarto do meu hotel dá para as traseiras de um quartel. Eu sei que os quartéis não têm traseiras. Desvio os olhos do papel em que escrevo isto para assistir à comemoração dos golos. Voam finas camisolas brancas de alças. Algazarra. Ficam calções verde militar, sapatilhas pretas, meias brancas. Records perfeitos de cor.

De manhã acordo com os gritos da formatura, a ginásticas matinal, a aprendizagem da marcha. Ao fim da tarde, futebol até noite escura, gritos, risos, palmas, golos.

Peço desculpa pela credulidade. Não acredito que tenham preparado tudo isto de propósito para mim. Muito grande a gentileza do Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador, que me convidou para jurado do VI Salão da Bahia. O museu, com uma admirável localização à beira-mar, ocupa um sítio histórico do século XVI – o Solar do Unhão – que foi desempenhando as mais variadas funções até encontrar, em 1996, a sua actual vocação.
Um belíssimo jardim e esculturas completam o panorama.

Enorme a hospitalidade do seu director, Heitor Reis, do seu adjunto, Edgar, e de todo o staff. Apesar de tudo, não teria sido possível escolher os detalhes da inclinação da janela, da posição do quarto, da exacta implantação do hotel. A Praça 2 de Julho, com todo o calor do fim de tarde e o cheiro do acarajé. E um mercado de flores e os delirantes cânticos dominicais de uma arrebatada seita religiosa. Não foi preparado. Isto é mesmo assim.

Tal e qual como se vê nas fotografias reunidas por Mário Cravo Neto no seu livro Salvador (Aries Editora, 1999). Na introdução, Caetano Veloso escreve assim: “Mestre da suavização das superfícies, Mário Cravo Neto faz a dureza física da luz de Salvador passar pelo filtro da doçura espiritual que anima a cidade. O horizonte contundente do mar, as alvenarias ásperas, as pedras brilhantes e as personalidades espalhafatosas – todas essas maravilhas exageradas da Bahia – são como que cobertas por uma bruma invisível que as domestica para que melhor possamos nos aproximar de sua verdade estridente".

Talvez este discurso pareça um pouco estereotipado. Mas o que há-de dizer-se quando se encontra uma coisa que corresponde aos nossos melhores estereótipos, os de beleza, de bem. Por que é que não havemos de nos render à encarnação dos estereótipos daquilo que queremos? Para que quero eu os restos do pensamento crítico europeu, da sua imensa estupidez?

Euforia do Código. O encontro com uma realidade que corresponde a um estereótipo de felicidade. A um dos meus estereótipos de felicidade. São a minha prioridade: os realmente verdadeiros estereótipos de felicidade. Os encontros são o amor pelo mundo.

São cerca de 200 fotografias. Textos de Pedro António Vieira, Jorge Amado e Wilson Rocha completam o volume.

No catamarã que me leva de Salvador até ao Morto de São Paulo, na Ilha Tinharé, reparo que a maior parte das pessoas estão descalças. Eu, não sei porquê, tenho calçados uns sapatos Patrick Cox, pretos, de camurça e pêlo sedoso, e meias pretas. Reparo que durante alguns anos, antes de decidir pô-los a uso, quase só usei estes sapatos para levar à ópera. Eram os meus sapatos de São Carlos. Agora parecem-me perfeitamente apropriados para estar aqui. Num autocolante colocado por cima do meu lugar, leio: “Não sou dono do mundo mas sou filho do dono”. Em frente, à volta, é o mar.

As coisas são assim. São e não são.


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Alexandre Melo, “Regresso à Bahia”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº30,  Lisboa, Dezembro 1999


QUEM SOU EU?



Matthew Barney. De Lama Lamina. Carnaval de Salvador, Bahia, 2004.


Já uma vez expliquei, neste jornal, que no Brasil, e na Bahia em particular, me permitia uma suspensão da distancia analítica e prescindia mesmo dos devaneios intelectuais inerentes à observação sociológica. E, no entanto, na noite do sábado de Carnaval, estando sentado e ensonado no Campo Grande, em Salvador, a fazer horas para apanhar o primeiro «ferry» para Itaparica, senti o súbito impacto de uma questão que, como se costuma dizer, não deixa ninguém indiferente.

«Quem sou eu? Quem sou eu?»

Encaminhei-me para a fonte da voz e constatei que era acompanhado por alguns milhares de pessoas que se moviam na mesma direcção, embora, é certo, de uma forma bem mais ritmada e colorida do que eu.

A resposta à mãe de todas as perguntas estava perto, mas, para o efeito deste texto, vou deixá-la para o final.

A principal razão que me levou este ano ao Carnaval de Salvador foi a anunciada presença dos desfiles, a convite do Projecto Afro, de um cortejo dirigido pelo artista plástico Mathew Barney e o músico Arto Lindsay, duas figuras famosas da cena artística americana. 

Aguardei com expectativa a ocasião de avaliar se o pequeno mundo da arte contemporânea com sede nova-iorquina teria capacidade de deixar uma marca no contexto daquela que é, provavelmente, uma das maiores manifestações culturais populares de massas à face da Terra.

Barney é um dos artistas mais indicados para a tentativa. A sua obra, em que se destaca o ciclo de cinco filmes Cremaster (1994/2003), pode ser vista como uma exploração dos limites do exercício da actividade performativa dos corpos, considerados como objecto de um processo de metamorfose infinita. O ser vivo funde-se com o artefacto, o corpo acopla-se ao objecto, a acção transmuta-se em escultura.

O trabalho de Barney é também uma deriva em busca de elementos rituais, com os quais dá forma artística a uma mitologia individual megalómana.

O trabalho de Barney dissolve as noções tradicionais de escultura e cinema em favor de uma abordagem transdisciplinar em que a performance e o seu registo têm um peso cada vez maior. O Carnaval parece vir a propósito.

Como tema geral, perceptível no título «De Lama Lamina» foi escolhido o tópico politicamente correcto mais previsível: a ecologia, a desflorestação. Os habituais carros carnavalescos foram substituídos por tractores e veículos de mineração, um deles dotado de uma perfuradora. O tom geral era lamacento, com ausência das cores e brilhos que o Carnaval costuma inspirar. O traje desenhado para os participantes no desfile consistia num véu franjado, um «top» e uma pequena saia, brancos e esfarrapados, de inspiração tribal ou tarzanesca.

O principal elemento do desfile era um fragmento de árvore amputada do qual sobressaíam uns cotos brancos, ao estilo habitual de Barney, no meio dos quais fazia acrobacias uma mulher que sugeria uma mistura de Jane e Caliban.

Muitos esperavam uma exibição da espectacularidade neobarroca característica de algumas obras de Barney. Mas a opção foi a oposta. Não sei se o objectivo visado, ao trazer uma pequena lição artística americana de ecologia ao Carnaval de Salvador, era gerar um anticlímax, mas foi esse o efeito obtido. A coreografia era quase inexistente, e a música de Arto Lindsay soou anémica no meio da imensa energia do farol da Barra. O público reagiu com indiferença, como se fosse um intervalo, e assim foi. No ar continuaram a vibrar os ecos da timbalada e Carlinhos Brown.

Espero que o génio de Barney, que passou vários dias a fazer filmagens em volta do carro, lhe permita transformar numa obra-prima (um filme?) aquilo que não aconteceu nas ruas de Salvador.

Pequena caricatura nova-iorquina, Barbara Gladstone, galerista de Barney, faz-se fotografar com Björk, mulher de Barney, no espaço VIP do camarote da «Vogue».

Está na altura de voltar à questão inicial:
«Quem sou eu?»

A resposta é dada pelo cantor do cortejo africano Ilê Oyá e é qualquer coisa como isto:
«Um crioulo bonito que nem eu.»

Uma resposta que, na sua simplicidade aparentemente tautológica, resolve vários problemas relacionados com as noções de identidade e comunidade.

Todos somos crioulos, todos somos iguais, porque somos igualmente diferentes. A reivindicação de uma combinação particular no âmbito de uma infinita variedade de tons é o fundamento de uma auto-estima de natureza estética («bonito») que faz desaparecer a contradição entre a pertença a uma comunidade global e a singularidade individual («que nem eu»). Ou seja: eu ou você no meio da multidão do llê.

Esperemos que Matthew Barney tenha aprendido a lição da Bahia.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 17 de Abril 2004, p. 30-31

GENTIS CARIOCAS



Galeria A Gentil Carioca

Na tarde do passado dia 22 de Setembro passei pela Gentil Carioca para a abertura da mostra de Marssares. Um jovem artista que compõe peças musicais com base em percussões electrónicas e depois constrói caixas de som, algumas de grandes dimensões que se transformam em esculturas autónomas. Um grande objecto, como um cilindro irregular deitado, convida-nos a nele entrarmos e, dentro dele, sentados, seguirmos os ritmos do autor. Um pequeno objecto, em forma de binóculos, é-nos proposto como caixa de som para ser usado em ligação com o computador pessoal. Um ambiente festivo, a meio caminho entre a festa de rua e a sala de estar, entre a discoteca e a sala de exposição, é exemplo certo da maneira de ser da galeria da Gentil Carioca.

«Carioca» é a designação popular para os habitantes do Rio de Janeiro e um adjectivo frequentemente associado a manifestações consagradas da cultura popular brasileira, designadamente o Carnaval e formas musicais específicas, como o samba. Mas a palavra «carioca», sobretudo se lhe associamos a palavra «gentil», assinala também uma maneira de estar que se caracteriza por uma forma de convívio aberto, sensual e prazenteiro. A beleza do Rio de Janeiro, uma combinação única entre a sensação de férias eternas proporcionada pela omnipresença da praia e a forte intensidade da vida urbana, é por vezes reduzida a um estereótipo quase caricatural mas não deixa por isso de corresponder a uma forma específica de interacção social que todos os visitantes podem experimentar.

É este tipo de experiência social e cultural aberta e integradora que preside ao projecto desta galeria inaugurada em Setembro de 2003 numa das zonas mais típicas e populares da cidade. Uma zona de pequeno comércio tradicional, originalmente árabe e hoje com forte presença chinesa. Comerciantes e compradores misturam-se à porta de uma infinidade de pequenas lojas e bares distribuídos por 10 ruas paralelas e 5 transversais em que se encontram toda a espécie de artigos, incluindo muitos materiais utilizados por artistas como, por exemplo, Ernesto Neto que tem o seu ateliê nesta zona e, com Laura Lima e Márcio Botner, constitui o grupo fundador da galeria.

O espaço físico da galeria ajuda a cumprir os seus desígnios de abertura ao exterior e ao ambiente das ruas a envolvem. Às duas salas mais convencionais junta-se uma sala para a qual se desce através de uma pequena escada como a das piscinas e que tem dois grandes janelões abertos para receber os cheiros e os ruídos da rua.

A exposição de Jarbas Lopes que visitei em Março deste ano, e é o tema central desta crónica, é um exemplo perfeito do espírito da galeria. Sob o título «Pintura em Família, com desenhos e ciranda da Tia Judith», o artista juntou aos seus próprios desenhos, um conjunto de desenhos da sua Tia Judith, de 82 anos, realizados ao longo de inúmeros serões em família e aqui apresentados, pendurados num varal, na sala das traseiras com o chão coberto por esteiras para reforçar a atmosfera familiar. Por sua vez, o já referido espaço da «piscina» foi deixado livre para os visitantes poderem fazer desenhos na parede, que acabam por completar o significado da exposição, transformando-a numa real expressão de um trabalho de convivência e colaboração que se alarga do espaço da família para o espaço da galeria e do bairro circundante.

Na festa de inauguração que, de acordo com o que é hábito na galeria, se transformou numa festa popular que se prolongou pela noite fora, toda a família do artista se reuniu para receber os visitantes e cantar Cirandas numa roda alimentada por caldo de mocotó e cachaça, bebidas e comidas populares tradicionais.

Os desenhos da Tia Judith, na melhor tradição «naïf», representam flores e motivos vegetais com um assinalável grau de estilização. Os desenhos de Jarbas Lopes, um artista nascido no Rio de Janeiro, em 1964, começam por nos seduzir pela sua simplicidade. São pequenos formatos (30x20cm), desenhados a esferográfica sobre papel, em que a marca persistente do riscar deixar sentir a intimidade da presença física da própria mão. Não estamos, no entanto, perante esboços elementares, frutos de uma mera intuição espontânea. O trabalho de composição, dividindo o espaço da folha em diferentes espaços de diferentes dimensões e procurando os ritmos adequados ao confronto desses espaços são a prova de uma afinada consciência plástica. O mesmo se pode dizer do uso das cores, apesar do leque limitado permitido pelo uso da esferográfica, e da forma como algumas matrizes abstractas se conjugam com referências figurativas e com a inclusão de palavras. Em cada desenho, a procura de um padrão de equilíbrio harmonioso é perturbada e animada pela intrusão das marcas escritas ou figuradas do mundo animal e urbano que sempre nos espreita, sobretudo numa cidade tão viva e luxuriante como o Rio de Janeiro.

Uma composição abstracta confunde-se com as formas dos olhos de um animal. Uma bicicleta recorta-se contra as árvores e o Sol ao fundo, com um gira-discos no rodapé. Nos três rectângulos de uma composição «à maneira de Rothko» lemos as mais singelas saudações: «Bom Dia», «Boa Tarde», «Boa Noite».

A vocação comunitária de A Gentil Carioca aparece-nos assim justamente servida por uma exposição com uma sensibilidade humilde e «familiar» quase comovente.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 2 de Outubro 2004, p. 46

"... E O RITMO É DE BOI!"




Festival de Parintins na Amazónia Bruno Domingos/Reuters
A propósito dos modos como passamos o tempo ou o tempo passa (marcar o ritmo) resolvi falar da mais apaixonante experiência cultural que vivi no último ano: o Festival Folclórico de Parintins, uma ilha com 100.000 habitantes (recebe cerca de 50.000 visitantes durante o festival) no grande estado do Amazonas, no Brasil.

Iniciado (com formato que se foi alterando) em 1965, o festival realiza-se agora todos os anos no último fim-de-semana de Junho. Numa arena desenhada em forma de cabeça de boi, chamada Bumbódromo, em três noites consecutivas, as agremiações representativas do Boi Caprichoso e do Boi Garantido apresentam, cada uma, três espectáculos inéditos, cada um com duas horas de duração. A exibição reúne música (“Boi” também é uma forma musical), dança, canções, declamações e uma sofisticada cenografia composta por dezenas de “alegorias” — engenhosas construções cénicas animadas por uma multiplicidade de “efeitos especiais”. O espectáculo não envolve nenhum boi, animal vivo. No final das três noites um júri (sempre acusado, por certo justamente, de corrupção) atribui a vitória a um dos bois.

A origem da celebração é descrita de várias formas : festividade de origem religiosa oriunda do Nordeste; fábula mágica sobre a morte e ressurreição de um boi e a salvação de uma comunidade; criação, no início do século XX,  de dois pequenos bois, brinquedos artesanais, por duas crianças que se tornaram figuras de referência local. As descrições disponíveis são intermináveis e contraditórias. Hoje em dia, o elemento mais forte é a  valorização das especificidades culturais da Amazónia, “aldeia mística”.  

Importa o que permanece: a alegria de “brincar de Boi” e a rivalidade entre os Bois.  

O espectáculo oferecido pelos Bois-Bumbá reúne, de forma original, as características de três empolgantes experiências culturais: a ópera, o futebol e o Carnaval.

Ao falar de ópera recordo aproximações a encenações barrocas e, sobretudo, a experiência do “Ring” de Wagner, em particular quando se assiste às quatro óperas em sequência num curto período de tempo. Retenho, em comum, o império do ritmo, o arrebatamento da voz e o poder de atracção visual das cenografias. Sem sequer especular sobre convergências nos modos de combinação entre figuras reais e sobrenaturais, psicologias humanas e destinos transcendentais, deuses, heróis, feiticeiros, gigantes, mártires e meros humanos. Não sei quase nada sobre ópera mas ouso dizer que gosto de ver e ouvir Bryn Terfel (o meu Wotan). Já no caso do Boi, não hesito em enaltecer a voz de David Assayag, actual “levantador de toadas” (cantor) do Boi Caprichoso e, por certo, uma das mais belas vozes vivas no mundo.

Enfim, paixão. Com a vantagem de a música ser, por definição, uma coisa incompreensível, o que significa que pode (não) ser compreendida por todos.  

O tópico da rivalidade conduz-nos ao futebol. A rivalidade entre os dois bois é tal que a pequena ilha de Parintins está, para quase todos os efeitos práticos, dividida em duas partes, em que imperam de um lado a cor azul e do outro a cor vermelha. É o único local do mundo onde a Coca-Cola é vendida em latas não apenas vermelhas mas também azuis. O Bumbódromo está dividido ao meio, ficando de um lado a “galera” do Caprichoso e do outro a “galera” do Garantido. Não se pode (mesmo) estar no meio de uma “galera” vestido com a cor do “Boi contrário”. Durante a exibição do seu Boi o respectivo público (também sujeito a pontuação, pois faz parte da apresentação) actua, acompanhando o espectáculo (de forma ainda mais intensa que o público do futebol, mesmo se considerarmos o público do Liverpool nas suas melhores tardes), enquanto a outra metade da bancada permanece em silêncio e sem iluminação. Contam-se histórias de prefeitos que mandaram alterar as cores nos semáforos e nas passadeiras para peões de acordo com as cores dos seus bois. A natureza lúdica do espectáculo não exclui uma radical rivalidade com elaboradas implicações políticas e financeiras.   

Para ilustrar a dimensão dramática (“operática”) do futebol em geral bastará recordar a saga do Brasil na Copa 2014: desde o atentado colombiano (talvez encomendado pelos argentinos) contra Neymar até ao desfecho “trágico”(1-7).

Enfim, paixão. Com a vantagem de o prazer do jogo (combate) e o desejo de vitória serem sentimentos tão pouco nobres quanto partilháveis por toda a espécie humana.

Aqui chegados, a evocação do Carnaval já deve parecer óbvia, mas importa esclarecer que a principal referência, apesar das semelhanças formais, não é o Carnaval do Rio (que de resto contrata em Parintins muitos dos seus melhores colaboradores cenográficos), um espectáculo relativamente convencional.

Invoco o Carnaval de rua, tomando como exemplo o Carnaval de Salvador, que permite uma participação intensa e abrangente e uma interpenetração fluida entre performers, participantes e espectadores. Carlinhos Brown é famoso (entre outras coisas, por exemplo, o cabelo) por “puxar” o “trio” no chão, no “arrastão” da manhã de Quarta-feira de Cinzas.

 Há diferenças entre ir em cima do “trio eléctrico”, assistir “de” camarote,  ir “dentro” da “corda” (que delimita o espaço de quem pagou para estar junto ao “trio”) ou ir na “pipoca” (fora da “corda”), mas não há como excluir quem quer que seja. Não pode ser proibido estar na rua. As ruas ficam fisicamente cheias.

Enfim, paixão. Com a vantagem de toda a população estar, por definição, convidada e convocada.

Há outra nuance.

No Carnaval do Rio existe um júri que, este ano (obra-prima de ironia e verdadeiro hino à corrupção), resolveu distinguir uma escola que homenageou (a troco de dinheiro, segundo alguns rumores) a Guiné Equatorial, prestigiado bastião da “lusofonia”.

Em Salvador não há um júri mas um método difuso de sondagem que faz emergir, como que por consenso, a música do Carnaval. Não se sabe bem porquê mas toda a gente vai percebendo, ao longo do Carnaval, qual vai ser a música do Carnaval, que acaba por ir sendo cantada por múltiplos intérpretes. Este ano, Márcio Victor (líder da banda Psirico) ganhou com Tem Xenhenhem. Já tinha ganho o ano passado com o inesquecível Lepo Lepo e, em 2008, com Mulher Brasileira (Toda Boa). O ritmo é mais ou menos sempre o mesmo (o melhor do “Pagode”), tal como o assunto (de inspiração, por assim dizer, “neo-pós-feminista” ou “neo-queer”), mas também não há assim muitos assuntos susceptíveis de interessar (quase) todas as pessoas.

Mais aliciante, do ponto de vista sociológico, o segundo lugar alcançado este ano por Igor Kannario, que só à última hora foi autorizado a desfilar, devido à sua alegada relação com pessoas envolvidas em práticas ilegais (e que não são nem políticos nem líderes de grandes empresas ). Os refrões dos seus maiores sucessos são lapidares : “Eu não sou de baixar a cabeça para ninguém” e “Tudo nosso nada deles”, que até o prefeito ACM Neto acabou por ter de trautear em cima de um “trio” em directo para a televisão.

Igor Kannario, o “Príncipe do Gueto”, foi seguido, sem “corda”, pela maior multidão do Carnaval de Salvador 2015: a maioria, como não poderia deixar de ser, veio do Bairro, como não poderia deixar de ser, da Liberdade.

“É nois !”.

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Alexandre Melo, "...E o Ritmo é de Boi!", in Jornal Público, edição especial "25 Dar Tempo ao Tempo", 5 de Março de 2015.