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EM SÃO SALVADOR DA BAHIA




Pela primeira vez na vida encontrei uma coisa que não quero compreender. Isto é um progresso e uma maneira de começar a falar do Brasil.

Quis um falso acaso que ocupasse algumas das oito horas do meu voo entre Lisboa e Salvador – porque é só de Salvador, da Bahia, que, por hoje, vou falar – com a leitura da jovial colectânea de textos escritos por Agustina Bessa-Luís entre 1970 e 1974: “Alegria do Mundo – II”. A página 155, Agustina caracteriza um certo tipo de homens que crescem tristes e macambúzios porque na infância não habituaram o “paladar à sensibilidade do vinho, ao gosto da erva de cozinha, ao perfume do cravo, ao hálito da canela quente, ao dormido tempero do alecrim na caça”. Pois bem, feitas as adaptações gastronómicas impostas pela geografia, eu diria que com a gente de Salvador acontece exactamente o contrário. Sabor e saber.

Sentam-se num degrau do passeio como numa poltrona porque todos são proprietários da completa extensão dos seus próprios corpos.

Deitam-se na calçada como em colchão de pena de palácio porque todos são príncipes da completa extensão dos seus próprios corpos.

Estão de pé sobre precaríssimos telhados como estátuas de carne quente em pedestal.

Descansam refastelados num monumento de pneus à porta de uma borracharia.

Três rapazes exemplares, calção de banho a rigor, jogam bilhar à volta de uma luzida mesa de pano verde, bem como no meio de uma rua do Bairro da Liberdade.

“Capoeira”: os exercícios na praia, o espectáculo. Será que se deve considerar uma forma de dança? Ou uma modalidade de performance, pelo menos? Geralmente chamam-lhe arte marcial, mas não tem importância. Há coisas que, sendo o que são, não precisam de ser arte.

Assisti a uma aula de swing baiano – swing moleque – numa Academia junto à Praia do Porto da Barra. Vi a noite inteira cheia de gente a dançar no Pelourinho, nas discotecas. É portanto possível dançar assim, indefinidamente, e sorrir. Não, não é sorrir. É rir.

(Isto vai contra princípios básicos que estipulam que o acesso às pistas de dança esteja reservado a zombies, andróides e tolos ou ingénuos que se ignoram.)

Mas porque é que eles riem? Será que são felizes? Pergunta inquietante.

Há tantos tipos de música que o meu sólido ouvido ainda não consegue distingui-los. É música permamente. Tanto me basta.

Vou tentar acrescentar ainda mais alguns lugares comuns. É provável que isto também seja um progrsso. Aqui entra uma lista de palavras que designam comidas ou conceitos demasiado subtis para que os consiga entender ou definir: moqueca, problema de atraque, caruru, abafe, bóbó, vatapá, poderosa casquinha de siri.
Eu sei: a miséria massiva, a catástrofe das crianças, o caos do sesemprego, tudo ao mesmo tempo. Mas isso já seria abrir uma nova prateleira na estante da sociologia. E eu nem sequer quero falar das igrejas e dos museus.

Perdoem-me, por hoje, ter-me dedicado apenas à vida artística.

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Alexandre Melo, “Em São Salvador da Bahia”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº24,  Lisboa, Maio 1999

FORMOSOS E NÃO SEGUROS


Still from They died with their boots on, Raoul Walsh, 1941


Soldados, Soldadinhos de chumbo, de carne, de sangue. Quando era criança, quando ouvia as vozes de comando, corria para a janela para ver passar os soldados: as fardas, as marchas, as ladainhas, os gritos, os rostos pequenos.

O que são os soldados e o fascínio dos soldados?

São os rapazes, os filhos já homens dos homens, os anos mais vivos dos corpos dos homens, olhos infinitos. Tudo isso organizado em função do ponto de vista mais oposto e mais extremo: o ponto de vista da morte. Isso mesmo, a morte, brutal, metálica, sangrenta, final: o fim, a morte.

Num soldado olhamos para o princípio, a plenitude da presença – a beleza – de um princípio. Visto a partir do ponto de vista do fim.

Ou então podemos inverter a formulação e dizer:
Num soldado olhamos lá para o fundo do fim, a morte e o extermínio, com os olhos joviais da causa da vitória do ideal.

E depois? Ou seja, agora?

Depois da esperança e do extermínio, depois da esperança exterminada e do extermínio da esperança, o que é que os soldados nos oferecem ainda?

Não falo dos soldados reais, os novos soldados americanos, que apenas nos dão a segurança e o futuro, porque eles, eles “tordos morreram calçados” (They died with their boots on, Raoul Walsh, 1941). Falo dos soldados desenhados por Alexandre Conefrey na sua série de trabalhos O fim do Sacro Império / Descalça vai para a fonte (1998).

Os soldados das fardas, das estampas e dos aromas. Os soldados da velha Europa, velhíssimos, europeus e imperiais, os que marcharam durante um século inteiro, um século que levou quase cem anos a chegar ao fim. Os que marcharam descalços, os pés à flor do sangue, sobre os estafados campo da Europa. Iam formosos e não seguros. Fizeram o fim sem saber o que faziam. Deixaram uma nostalgia inviável. Cheia de crimes e de nada.

Nestes soldados perdidos encontramos hoje a coincidência da juventude com a morte, do princípio com o fim, da utopia com o terror. O contorno de uma fascinante história podre fixado num olhar eternamente espantado.
Sobram as fardas, as estampas e as posturas.

No grande cemitério europeu floresceram jarros podres e listas, intermináveis listas, de vítimas.

Nous sommes tous de juifs allemands”. A paisagem da história. O jardim do ideal, lá onde a ordem se transformou em crime.

O olhar tem de ganhar altura, voar sobre os campos massacrados. Temos de ir mais para trás. Restaurar monumentos e consagrá-los ao amor de uma ordem e de uma paz anterior aos crimes da razão absoluta, totalitária. Desenhar uma aliança.

Onde é que se pode procurar? O que é que se consegue encontrar?

Encontramos as páginas dos velhos livros, as coroas de glórias de heróis mais sábios, os ornamentos da civilidades, os desenhos das letras de alfabetos mais nobres.

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Alexandre Melo, “Formosos e não seguros”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº23,  Lisboa, Abril 1999

EM MUNIQUE



Akademie der Bildenden Künste, München


Na última semana do passado mês de Janeiro, estive em Munique para conhecer e discutir, em regime de seminário, o trabalho de cerca de três dezenas de artistas e estudantes da Academia de Belas Artes.

A minha primeira intenção, quanto ao início desta crónica, era começar por falar do estado do tempo e da arquitectura da cidade. Depois pensei que podia fazer a economia da introdução turística, e que valia mais descrever alguns dos trabalhos, projectos e ideias que os estudantes me apresentaram. Porque é em conversas como estas, em sucessivas horas de discussões a respeito das maneiras e da procura das maneiras de colocar, abordar, inventar ou resolver os mais variados problemas, que é mais fácil perceber qual a especificidade, a vitalidade e razão de ser do trabalho, da atitude e do resultado da produção daqueles a quem continuamos a chamar artistas.

A quase todas as profissões (e respectivos profissionais) com que deparamos na nossa vida quotidiana, pedimos a sociedade pede, que analisem e resolvam determinados problemas – por exemplo, alimentar-nos, construir uma ponte ou proteger-nos os pés – relativamente aos quais nos poderão ser propostas diferentes hipóteses, tão variadas quanto as possibilidades técnicas em causa e a imaginação estética e intelectual disponíveis. No entanto, todas essas hipóteses têm de satisfazer, minimamente que seja, uma expectativa e um conjunto, mínimo que seja, de requisitos específicos pré-determinados. Poderíamos falar de função, mas dizer expectativa minimamente pré-determinada é mais abrangente.

Só ao artista nade se pede, em termos de expectativa pré-determinada e objectivada. Pede-se-lhe apenas que faça o que quiser, para que, com o que ele fizer, e chamando-lhe arte, podermos nós fazer o que quisermos. Ao artista, portanto, pede-se tudo. Tudo ou nada? Tudo e nada, isso sim.

Passo a enumerar algumas coisas que me ofereceram em Munique.

Astrid Giers propõe-se encher de fumo alguns dos imensos corredores e incontáveis salas da Academia, iluminando tudo de um modo especial, e convocando o público para, do exterior, observar o efeito através dos vidros das janelas. Vincent Mitzev quer ocupar uma das salas construindo no seu interior uma réplica exacta invertida – de cabeça para baixo – da arquitectura e recheio da própria sala. Jolene König pegou no conjunto de armários individuais, onde um grupo de estudantes guarda os seus haveres e materiais de trabalho, e construiu com eles um “muro” que, visto de um lado, exibe uma monocórdica sucessão geométrica de portas rectangulares e, visto do outro, revela os multifacetados conteúdos dos armários, tal como os encontrou na sala de aulas.

Cristina Gómez Barrio quer fazer um filme com a história da criatura de Frankenstein, que estaria ainda hoje viva, algures num deserto gelado, especulando a respeito da vida, do tempo e do amor. Para a gravação do monólogo, espera obter a voz de Nick Cave. Brigit Kramer envolveu o corpo em balões e meias insufláveis e enche-os de ar, ao ritmo mecânico de uma respiração ofegante, registando o processo em vídeo. Katharina Duer, convidada a apresentar um projecto de arte pública para Villingen-Shcwenningn, uma cidade composta por duas comunidades, entre as quais são frequentes conflitos, propôs a construção, numa praça central, de um ponto de encontro, uma casa em vidro sobre a qual seriam gravados mapas das diferentes zonas da cidade. Vêem: falámos de arquitectura, do estado do tempo, do espaço e da experiência própria de convívio numa maneira de falar em que os modos rotineiros de problematizar os assuntos, ou analisar problemas, dão lugar a outros modos de inventar problemas e problematizar rotinas. Outras maneiras, desafiadoras e revitalizantes de pensar isto ou aquilo, de falar disto ou daquilo: tudo e nada.

Chamam-lhe arte. 


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Alexandre Melo, “Em Munique”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº22,  Lisboa, Março 1999


EM LOS ANGELES


Ed Ruscha, A Particular Kind of Heaven, 1983. Oil on canvas


Agora que penso nisso reparo que Los Angeles é exactamente o sítio onde a Beleza tem sido produzida desde há, pelos menos, mais de meio século. Nem Florença nem Milão, não, Los Angeles, L.A., Beleza com B grande. Não a verdadeira beleza, claro, a verdadeira beleza não existe. A Beleza pura e simplesmente: Hollywood, Beverly Hills, Dinheiro, Sexo, essas coisas com que os forasteiros sonham e à volta das quais L.A. vive. Sabemos, evidentemente, que tudo isto é uma ilusão, uma mentira, uma fraude, nada mais do que a matéria com que são feitos os sonhos.

O que eu quero dizer é que quando começamos a pensar em L.A., começamos a lidar com um estereótipo, um clã de estereótipos. É inevitável. Assim sendo, o melhor é fazê-lo de uma modo aberto, directo. É o que eu tenho tentado fazer com L.A. Provavelmente não quero que a minha relação com a cidade seja crítica ou desconstrutiva. Nem estou certo que ela pudesse sê-lo. E porque é que a minha relação com L.A. deveria ser crítica? Ou porque não?

O que eu julgo ser realmente possível é jogar o jogo das distâncias, pôr em cena um processo de distanciação.

Poderia dizer que este é o tipo de jogo que, pelo menos desde a pop art, tem sido jogado entre a arte – as artes plásticas, a arte contemporânea – e a cultura popular de massas, em geral.

Na sequência de um convite para organizar a exposição anual estudantes de artes plásticas da UCLA – Universidade de Los Angeles – pude apreciar o modo aberto e directo como muitos estudantes lidam com noções de beleza, medo, angústia, glamour, tal como elas se manifestam incorporadas em imagens de rostos, corpos, edifícios, ruas, objectos do quotidiano, heróis cinematográficos. Alguns estarão mais próximos dos estereótipos e dos lugares comuns. Alguns outros são mais elaborados e sofisticados. Alguns enfáticos. Mas, provavelmente, todos nós estamos condenados a parecer demasiado qualquer coisa na nossa relação com os estereótipos que formam o nosso incontornável horizonte cultural. Isto faz parte dos riscos que corremos quando aceitamos jogar o jogo das distâncias.

A maioria dos estudantes com que falei encara o seu trabalho de um modo conceptualmente lúcidos mas descomplexado, pessoal mas comprometido com as imagens do mundo em redor, intenso mas descontraído. Creio que tudo isto faz parte da atmosfera aberta característica da UCLA.

Na minha conversa com os estudantes e as suas obras, no processo de trabalho conducente à organização da exposição, procurei não impor antecipadamente os meus pontos de vista, nem o meu universo pessoal de referências, mas estou certo que não pude evitar as implicações da minha particular relação com a cidade e os seus – meus – estereótipos.

No paragrafo anterior, a palavra mais importante é a palavra “conversa”. Provavelmente, é uma das melhores designações possíveis para o real conteúdo do trabalho de um organizador de exposições ou de um crítico de arte. Por conversa entendo um interminável work in progress. A exposição que inaugurou a 20 de Novembro 1998 na New Wight Gallery da UCLA ou este texto – que é uma tradução parcial adaptada do texto que escrevi para acompanhar a exposição – são momentos de um processo em curso, uma conversa interminável. O jogo continua. Com quantos destes artistas voltarei eu a falar? E em que situações?

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Alexandre Melo, “Em Los Angeles”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº21,  Lisboa, Fevereiro 1999

PAPÉIS



Robert Wilson. Drawings from The White Raven. ©Paula Cooper Gallery



Chega a ser irritante. Há pessoas que pegam numa folha de papel e...pronto, diriam alguns, fazem milagres. Fazem o que querem. Já está. Chega a ser irritante. Robert Wilson é um exemplo.

Olhem para os desenhos da série White Raven, relacionados com a ópera com o mesmo título, e expostos na Galeria Luís Serpa, em Lisboa. Quem já viu Robert Wilson desenhar sabe a certeza, a segurança, a energia. Não, não é uma inspiração. É método, mas é o método de um génio. Se quisermos continuar a utilizar a palavra génio.

A folha de papel é branca, bidimensional. Robert Wilson traças as linhas que quer. Elas serão os eixos que ordenam o espaço – a arquitectura. Robert Wilson distribui os cinzentos, os brancos, os negros, define os pólos que ordenam a visão – a luz. Tudo o resto vem, por acréscimo, povoar o espaço, ocupar o seu lugar, num mundo previamente definido pela arquitectura e a luz.

É mais que um método, é um sistema. As figuras, as coreografias, os sons, os detalhes, depois, podem ser cronometradas até ao milímetro, ao segundo, meio milímetro, meio segundo, para um gesto, um dedo, um ruído, uma palavra, meia palavra. Robert Wilson sabe fazer exactamente o que faz e por isso pode fazê-lo perfeitamente.

Há outros casos. Não muitos, confessemos.

É sempre extraordinário ver uma nova série de trabalhos de Paula Rego. Neste caso, refiro-me a um conjunto de trabalhos sobre papel: estudos para os figurinos do bailado Pra Là e Pra Cá, inspirado nas gravuras de Paula Rego sobre canções infantis inglesas, as Nursery Rhymes. Trabalhos vistos na Galeria 111, em Lisboa.
O que é extraordinário? É ver aquilo acontecer outra vez em frente dos nossos olhos. Outra vez a mesma coisa. Como se diz em expressões como: quando ela se põe a olhar com aqueles olhos, quando ela sai da casa com aquele ar, já se sabe, aquilo vai acontecer outra vez.

Mas aquilo o quê?

São desenhos que começam por ser simples. Personagens, figurinos, adereços, confrontos de personagens, pequenos grupos. Começam assim e ,depois, à medida que vamos olhando melhor, vem o mundo inteiro.
Paula Rego leva-nos outra vez para dentro daquilo, daquele mundo. É como quase se cai nos buracos dos sonhos dos filmes de terror que, bem vistas as coisas, não são bem de terror.

Lá estão todas aquelas figuras que ela nos foi ensinando a considerar familiares, famílias muito especiais, como as dos filmes de Tod Browning: os bons, os maus, os bonitos, os feios, os péssimos, os incorrigíveis, a vergonha e a pouca-vergonha, as mãos fechadas, as caras fechadas, as pernas fortes, os braços fortes, os cabelos, a pele, os pêlos e as penas. Desta vez, uma pequena orgia de pelagens: insectos, pássaros, pessoas, coisas de se lhes passar a mão pela pele, como a pintura sobre o papel.

Paula Rego, assim, sem mais nem menos, põe ao nosso dispor um mundo inteiro. Parece fácil, assim como quem passa a mão, a tinta, sobre uma folha de papel. Mas, na realidade, na verdade, é o trabalho de uma vida inteira. É a isso que se chama um mundo. Mundo. Quase ninguém consegue.

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Alexandre Melo, “Papéis”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº20,  Lisboa, Dez / Jan 1999

REGRESSO À BAHIA





A janela do quarto do meu hotel dá para as traseiras de um quartel. Eu sei que os quartéis não têm traseiras. Desvio os olhos do papel em que escrevo isto para assistir à comemoração dos golos. Voam finas camisolas brancas de alças. Algazarra. Ficam calções verde militar, sapatilhas pretas, meias brancas. Records perfeitos de cor.

De manhã acordo com os gritos da formatura, a ginásticas matinal, a aprendizagem da marcha. Ao fim da tarde, futebol até noite escura, gritos, risos, palmas, golos.

Peço desculpa pela credulidade. Não acredito que tenham preparado tudo isto de propósito para mim. Muito grande a gentileza do Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador, que me convidou para jurado do VI Salão da Bahia. O museu, com uma admirável localização à beira-mar, ocupa um sítio histórico do século XVI – o Solar do Unhão – que foi desempenhando as mais variadas funções até encontrar, em 1996, a sua actual vocação.
Um belíssimo jardim e esculturas completam o panorama.

Enorme a hospitalidade do seu director, Heitor Reis, do seu adjunto, Edgar, e de todo o staff. Apesar de tudo, não teria sido possível escolher os detalhes da inclinação da janela, da posição do quarto, da exacta implantação do hotel. A Praça 2 de Julho, com todo o calor do fim de tarde e o cheiro do acarajé. E um mercado de flores e os delirantes cânticos dominicais de uma arrebatada seita religiosa. Não foi preparado. Isto é mesmo assim.

Tal e qual como se vê nas fotografias reunidas por Mário Cravo Neto no seu livro Salvador (Aries Editora, 1999). Na introdução, Caetano Veloso escreve assim: “Mestre da suavização das superfícies, Mário Cravo Neto faz a dureza física da luz de Salvador passar pelo filtro da doçura espiritual que anima a cidade. O horizonte contundente do mar, as alvenarias ásperas, as pedras brilhantes e as personalidades espalhafatosas – todas essas maravilhas exageradas da Bahia – são como que cobertas por uma bruma invisível que as domestica para que melhor possamos nos aproximar de sua verdade estridente".

Talvez este discurso pareça um pouco estereotipado. Mas o que há-de dizer-se quando se encontra uma coisa que corresponde aos nossos melhores estereótipos, os de beleza, de bem. Por que é que não havemos de nos render à encarnação dos estereótipos daquilo que queremos? Para que quero eu os restos do pensamento crítico europeu, da sua imensa estupidez?

Euforia do Código. O encontro com uma realidade que corresponde a um estereótipo de felicidade. A um dos meus estereótipos de felicidade. São a minha prioridade: os realmente verdadeiros estereótipos de felicidade. Os encontros são o amor pelo mundo.

São cerca de 200 fotografias. Textos de Pedro António Vieira, Jorge Amado e Wilson Rocha completam o volume.

No catamarã que me leva de Salvador até ao Morto de São Paulo, na Ilha Tinharé, reparo que a maior parte das pessoas estão descalças. Eu, não sei porquê, tenho calçados uns sapatos Patrick Cox, pretos, de camurça e pêlo sedoso, e meias pretas. Reparo que durante alguns anos, antes de decidir pô-los a uso, quase só usei estes sapatos para levar à ópera. Eram os meus sapatos de São Carlos. Agora parecem-me perfeitamente apropriados para estar aqui. Num autocolante colocado por cima do meu lugar, leio: “Não sou dono do mundo mas sou filho do dono”. Em frente, à volta, é o mar.

As coisas são assim. São e não são.


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Alexandre Melo, “Regresso à Bahia”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº30,  Lisboa, Dezembro 1999


WARSZAWA




Miroslaw Balka. ©SusanaPomba


Vi o Papa. Ao vivo. Passou por mim no Papamóvel e não se mexia. Não acenou com a mão nem mesmo muito devagar. Não se lhe viam as mãos. Não abanou a cabeça nem mesmo muito devagar. O rosto extenuado na máscara do esforço que fazia provavelmente para se manter em pé.

Foi numa das avenidas centrais de Warszawa na tarde do dia 11 de Junho de 1999. Ao longo de todas as largas avenidas centrais de Warszawa, cordões plásticos de brilhante azul, pontuados duzentos em duzentos metros por jovens soldados polacos vestidos de camuflado, louro cabelo rente à cabeça, boina azul mar. Só a presença de Sua Santidade saberia inspirar parada de tão comovente pureza.

A mesma presença poupou-me os excessos alcoólicos que a fama da tradição polaca quase me fizera recear. Em atenção à visita do Papa foi proibida a venda de bebidas alcoólicas com mais de muito poucos degraus. Só cerveja. No restaurante onde jantei com Miroslaw Balka pedimos uma cerveja. Depois pedimos outra. Já teve de ser sem álcool porque já não era o primeiro dia de visita do Papa e a cerveja tinha-se esgotado. Na Galeria Foksal, a galeria histórica das vanguardas plásticas contemporâneas na Polónia, fundada em 1966, ofereceram-me vodka. A tradição foi respeitada. Elogiei a beleza sóbria das caixas que guardam os arquivos da galeria. Fiquei a saber que tinham sido feitas por Krzytof Wodiczko quando ali era jovem artista (ver “October”, 38, fall 1986).

Passei o dia a conversas com Balka com vista à escolha das obras destinadas à exposição “Lost Paradise” (Miroslaw Balka e Zhang Huan, Galeria Presença, Porto, Semtembro/Outubro 1999).

Uma das obras propostas por Balka foi uma pequena escultura da parede em que um suporte de aço sustém um círculo de cera no meio do qual está colada uma pastilha elástica mastigada.

A escultura deve ser colocada na parede à altura da boca. Chama-se “28x12x15” e traz-nos, pela via mais inesperada, o registo da máxima intimidade. A proximidade absoluta da boca que mastigou uma pastilha elástica. O mais pessoal e o mais abandonado dos restos. Que os adolescentes às vezes guardam em pequenas caixas. Um resto humilde, que no entanto transporta e preserva as marcas de uma boca.

Um pólo de tensão nervosa: cerrar os dentes, morder a língua, cigarros. Mas também de escape gratificante, indulgência com os prazeres sensuais.

A boca. Lugar de três paraísos:
O paraíso religioso da comunhão com o corpo de Deus, através da hóstia consagrada;
O paraíso infantil da comunhão com o corpo da Mãe, através da amamentação;
O paraíso sexual da comunhão com o corpo de alguém, através do beijo, para dar só um exemplo.

Portanto: coincidência física e espiritual com o corpo, um corpo, mas que corpo de quem?

No dia da inauguração choveu muito no Porto. A escultura ficou húmida e um pouco viscosa. Na base formou-se um gota: de água?

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Alexandre Melo, “Campbell”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº29,  Lisboa, Novembro 1999

CAMPBELL



Andy Warhol. Campbell's Soup Cans. 1962

Li a notícia no “Herald Tribune” de 27 de Agosto de 1999. A Campbell Soup Co. está a braços com um declínio no volume de vendas que se vem acentuando desde há já bastante tempo e obrigou os responsáveis da empresa a encararem medidas de fundo como forma de tentar inverter esta tendência. Entre o pacote de medidas anunciadas está a substituição do rótulo tradicional criado em 1898 e que, entretanto, se tornou um clássico sobretudo depois de Andy Warhol nos anos 60 o ter tomado como motivo de uma das suas mais famosas séries de pinturas.

Recuemos até essa época. “Comprem as autênticas por 29 c.”, anunciava em Julho de 1962 um comerciante com loja aberta alguns quarteirões abaixo da Ferus Gallery, em Los Angeles, onde uma das primeiras exposições de Andy Warhol exibia uma série das suas pinturas de latas de sopa Campbell.

São ou não são autênticas? Qual é o seu Valor? Questões que preocuparam os críticos e inspiraram abundantes meditações sobre os infortúnios de alienação e do consumo. Também ao lojista, ali perto, custava aceitar que uma coisa tivesse possibilidades de valer mais, precisamente por não ser o que ele chamava “autêntica”.

O trabalho e a carreira de Andy Warhol comportam o desenvolvimento de dois processos decisivos para a instauração de um curto-circuito, por ele tornado explícito e evidente, entre a lógica da produção artística e as lógicas da circulação mercantil e mediévica, em sentido amplo.

Refirimo-nos ao processo que torna possível a transformação de uma banal imagem extraída dos meios de comunicação social numa obra de arte, e ao processo que conduz à substituição do suposto talento inerente à mão do artista pela simples referência a uma assinatura – reprovável ao nome e à marca de um autor – que garante a ligação a uma determinada personalidade e ao respectivo carisma. À intensidade da circulação mediática do nome correspondente a intensidade de circulação económica dos seus produtos, assim se desenvolvendo uma dinâmica tendencialmente indiferente em relação ao que poderiam ser as características formais únicas atribuíveis à prática do autor e às respectivas obras.

Warhol representaria a assumpção pelo mundo da arte, através de uma interiorização em termos da própria atitude do artista, do actual estatuto económico e mediático não só das obras de arte contemporâneas. A obra de Warhol surge como elemento revelador e, nessa medida, eventualmente desmistificador dos mecanismos mais gerais de funcionamento da sociedade, constituindo assim não já, é certo, uma denuncia critica no sentido tradicional, mas um testemunho privilegiado de uma determinada realidade.
Os novos rótulos incluirão fotos de pratos das correspondentes sopas e pequenas bandeiras especificando: “classic”, “fun favorites”, “special selections”, “great for cooking” e “98 percent fat free”. A última lata com rótulo tradicional da Campbell’s Condensed Tomato Soup será oferecida pela empresa ao Museu Andy Warhol, em Pittsburgh.

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Alexandre Melo, “Campbell”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº28,  Lisboa, Outubro 1999


PAULA REGO



ARTFORUM
Novembro/November, 1999



The Company of Women, 1997


The evocation of tension – social, sexual, emotional, and fictional – is the thread that runs through Paula Rego’s work. These tensions unite figures who appear to be rooted in the intimacy of domestic life, yet Rego’s visual narratives often eschew realism in favour of allegory and dream, giving her art an archetypal quality.
Born in Portugal, Rego has been living in London since the 60’s, where she gradually emerged as significant voice in contemporary European painting. Throughout her career, she has embraced a wide range of styles, beginning with the art brut of Dubuffet in the 50’s. She is especially known for her imaginative post-Pop collages of the 60’s, and she continued to work in this medium in the following decade. It was in the 80’s that she began making classical, one might even say restrained, paintings characterized by their psychological tension, heavy atmosphere, and classical figuration.
Here she executes traditional Western forms of representing the figure (above all the female figure) in a vigorous and lively manner that gives her vision of the body a palpable contemporaneity.
This show unites two of her most recent series of paintings. The first, “O crime do Padre Amaro” (The crime of Father Amaro), 1997-98, takes as its inspirations the eponymous novel by José Maria Eça de Queirós, a nineteenth-century Portuguese writer who was a critic of the hypocrisy of his society.
In this book he denounces the Catholic Church through the figure of an adulterous priest. The paintings are not, however, straight illustrations. In some works, Rego captures individual characters in particularly intense moments, in which psychological tension, or its momentary abatement, is conveyed. Four works from the series depict a man surrounded by women in a domestic scene. In two of these, the man occupies the centre, the conventional position of power, but his involvement in an eminently feminine domain seems to infantilize him (as an adult assuming the pose of a child, in The Company of Women, 1997) or feminize him (as in Mother, 1997, In which the man is wearing a skirt). Rego destabilizes the distribution of authority, and the play of gazes, the unexpected choreography of poses, the highly worked fabrics, and the improbable decorative elements further contribute to the work’s narrative density and air of suspense.

The other series, “Untitled”, 1998-99, directly addresses abortion, a subject that is frequently alluded to in Rego’s work. Here it is treated openly, which has rarely been done in painting. Rego’s title underlines the unspeakable nature of the subject, especially in the context of a conservative and Catholic culture. Rego’s rendering of the physical density of bodies, the determined gazes, the robust poses – visible in the tautness of hands and feet – lends her work an obvious dramatic tension, out of which emerges a sense of affirmation and resistance that is, perhaps, the mark of a specially feminine authority and vision.

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Texto traduzido para inglês por Sheila Glaser e publicado na revista mensal Artforum, na edição de Novembro de 1999, por ocasião da exposição 'O Crime do Padre Amaro', de Paula Rego, na Fundação Calouste Gulbenkian (CAM), Lisboa, 1999.