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HELENA ALMEIDA – RETRATO DE ARTISTA EM PLENO VOO




Helena Almeida. Dentro de mim. 2000



São talvez os momentos mais felizes das memórias dos meus sonos e sonhos. Aqueles momentos em que, no balanço de um voluptuoso salto lançado ao alto, as pernas se multiplicam por milagre em infinitos movimentos de propulsão que permitem ganhar cada vez mais altura, cada vez mais ar e mais ao largo, até nunca mais precisar de voltar a tocar no chão. Momentos que nos vão da lei da gravidade libertando. Lá estou eu, lá vou eu, desenhado no ar, sobre o fundo azul do céu, e o desenho é o meu próprio corpo, por uma vez sereno e ágil, ao mesmo tempo, humilde e triunfante. Apenas um corpo em pleno voo. Tudo e nada, vivo no meio do horizonte infinito.

Não é, no entanto, possível ignorar por muito tempo que isto só pode ter acontecido desta maneira porque eu estava a dormir, a sonhar. Depois, é sempre preciso acordar e tudo se torna muito mais difícil.

O chão agarra-nos. O chão é imenso, cobre toda a superfície da terra. É uma espécie de pesadelo horizontal do qual não conseguimos escapar. O corpo também não ajuda. O corpo pesa e é bastante desajeitado. O corpo custa a erguer e, por vezes, tem de ser arrastado com muito esforço só para ir de um sítio para outro. Como é que poderíamos assim ousar usá-lo para nos transportar no movimento de um qualquer sonho?

É aqui que entra o trabalho dos artistas e esta é uma das muitas possíveis maneiras de o definir. O trabalho dos artistas serve para tratar, quando estamos acordados, alguns dos assuntos que se nos deparam, de uma outra maneira, quando estamos a sonhar. É o caso do voo.

Quando saltamos do céu do sonho para o espaço do atelier as condições de colocação da questão alteram-se radicalmente. Temos um chão entre paredes, alguns utensílios e elementos de mobiliário (um banco, por exemplo), luz e ar à nossa volta. Mas há mais uma coisa: também temos um corpo. Ou melhor: a artista, e é de Helena Almeida que falamos, tem o seu corpo, o seu corpo de artista, e isso é fundamental.

Seria difícil imaginar um lugar mais apropriado para receber esta série de trabalhos de Helena Almeida do que o vasto e magnífico espaço de exposição da novíssima Galeria Filomena Soares.

“Dramatis persona: variações e fuga sobre um corpo” foi o título da exposição antológica de Helena Almeida realizada em Serralves, no Porto (1995/6). Um título que dá justa e adequada conta da unidade e consistência de uma obra em que tudo passa pelo corpo ou, se quisermos, tudo se passa através do corpo de Helena Almeida.

Numa fase inicial da sua actividade, no final dos anos 60, a autora praticou uma pintura que problematizava os elementos materiais e conceptuais constituintes da própria definição de pintura. Manchas que descoincidiam da plana superfície bidimensional do seu suporte, gestos que revelavam, desconstruíam (no sentido literal da palavra) e devassavam esse mesmo suporte. A pintura fugia da tela. A tela fugia da grade. A grade fugia da parede. A parede fugia do chão. O corpo fugia de casa, sendo a casa a herdada tradição da pintura. Helena Almeida fugia, para não mais voltar, das concepções e práticas tradicionais da pintura e levantava voo, que é como quem diz que levantava o corpo. O começo de tudo, o ponto de partida, é dentro do corpo: “Dentro de mim”, diria a artista...”Dentro de mim”, não na acepção psicológica de uma subjectividade que se exprime, mas na acepção performática de uma matéria física (o corpo) que se apresenta: isto é, que se revela presente.

O trabalho de Helena Almeida, depois de uma fase inicial de trabalho em pintura, prescindiu da pintura, desenho, escultura ou outras formas artísticas consideradas nas suas versões mais convencionais – em contrapartida utilizando sobretudo, e de um modo peculiar, a fotografia – para poder levar por diante uma investigação de fundo a respeito da relação entre o artista e o desenho, a pintura, a criação artística em geral.

O trabalho de Helena Almeida trabalha com questões como estas:

Como é que o corpo e o movimento de um corpo – o da artista – faz pintura ou faz desenho? Como é que durante esse processo de fazer é o próprio corpo que se faz – isto é, se torna – pintura ou desenho? E depois de o corpo e o desenho terem atravessado as suas fronteiras em múltiplas direcções e terem experimentado variadíssimas formas de interacção – absorção, penetração, ocultação, habitação – o que é que fica para a arte que não seja só já a marca da travessia de um corpo? E em que posição ficamos nós, os observadores, que afinal também temos o nosso próprio corpo?

O trabalho de Helena Almeida põe em jogo, simultaneamente, alguns dos mais importantes dados de uma contemporaneidade balizada pelas experiências vanguardistas dos anos 60 e 70 e pela sua recente revisitação.

Um primeiro dado é a dinâmica transdisciplinar que leva não só ao abandono das práticas tradicionais das disciplinas consagradas como a uma progressiva tomada de consciência da necessidade de passar de umas para as outras – como forma de compreender e ultrapassar os respectivos limites – até chegar a um ponto de indissociabilidade entre diferentes técnicas e processos que situa a dinâmica da obra num nível mais vasto de generalidade.

Poderíamos dizer, por exemplo, que a necessidade de interrogar os limites da pintura ou do desenho, implica uma dimensão performativa que, sendo inicialmente servida pela fotografia, acaba por acarretar uma valorização das relações com o espaço, a qual, por sua vez, impondo o confronto com problemas específicos da escultura, acaba por se resolver no domínio da chamada instalação.

Um outro dado decisivo para compreender o sentido destas deslocações, e que é, por assim dizer, o seu princípio motor, é o recurso sistemático à inscrição do próprio corpo na prática artística enquanto origem, produtor e garante do sentido. Na nova série de trabalhos intitulados “Dentro de Mim”, apresentados nesta exposição, é o próprio corpo que se abre, rasgado de cima a baixo, para deixar entrar ou para deixar sair – a especificidade do procedimento fotográfico autoriza a ambiguidade – o espaço, a luz e tufo o que o rodeia. O movimento do corpo, no atelier de trabalho da artista, refaz o espaço que o rodeia, ao mesmo tempo que se refaz a si próprio, enquanto corpo, através da absorção desse mesmo espaço. O que nós somos convidados a ver é, portanto, o movimento de um corpo que faz mundo ao mesmo tempo que deixa que o mundo se lhe faça corpo. Isto é a arte, a sua definição e o seu sentido, quando a artista é Helena Almeida.

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Alexandre Melo, “Helena Almeida – Retrato de Artista em Pleno Voo”, no âmbito da exposição patente na Galeria Filomena Soares, Lisboa, 2001

EU SOU ARTE



Helena Almeida. Pintura Habitada. 1975.

Helena Almeida. Seduzir. 2002.


«Pés no Chão, Cabeça no Céu» é o título da exposição antológica que abrange 35 anos de carreira de Helena Almeida no Centro Cultural de Belém. Um título que exprime bem a unidade de uma obra em que, entre o chão do atelier e o azul do céu, tudo passa pelo corpo de Helena Almeida. O trabalho mais antigo, Tela Rosa para Vestir (1969), uma foto da autora vestida com uma pintura, funciona como antecipação de uma trajectória.

No final dos anos 60, Helena Almeida praticou uma pintura que problematizava os elementos materiais e conceptuais constituintes da definição de pintura. Manchas que se desviavam dos limites da tela. Telas que se soltavam da grade que deveria agarrá-las. No início dos anos 70, abandona as concepções tradicionais de pintura e inicia um original conjunto de práticas que ainda hoje continua a desenvolver e que têm como ponto de partida o seu próprio corpo. Tudo começa «Dentro de mim», como diz o título de uma série de trabalhos de 2001. «Dentro de mim» não na acepção psicológica de uma subjectividade que se exprime, mas na acepção performática de uma matéria física (o corpo) que se apresenta.

Helena Almeida, elegendo como «media» a fotografia, cria sucessivas séries de fotografias, a preto e branco, de si própria. As fotos registam momentos de acções, que são as de se deslocar, pintar ou desenhar no espaço do atelier. Não se trata de pintar ou desenhar no sentido tradicional, mas de realizar acções em que o movimento do corpo (a performance) transforma o corpo em pintura ou desenho.

Em vários trabalhos (por exemplo, das séries «Pintura Habitada» e «Desenho Habitado», de 1975) vemos a artista fazendo o gesto de pintar ou desenhar tendo na mão um pincel ou um lápis dos quais saem manchas de tinta azul ou um fio negro que têm uma presença física, real, sobre ou saindo da superfície da fotografia. A apresentação de um vídeo e de uma gravação sonora realizados em paralelo à criação da série «Sente-me, Ouve-me, Vê-me» (1978/79) ajuda-nos a compreender a dimensão performática do trabalho que dá origem às fotos.

A dinâmica transdisciplinar que anima estas obras leva não só ao abandono das práticas tradicionais das disciplinas consagradas como a uma progressiva tomada de consciência da necessidade de passar de umas para as outras como forma de compreender e ultrapassar os respectivos limites. A necessidade de interrogar os limites da pintura ou do desenho implica uma dimensão performativa que, sendo inicialmente servida pela fotografia, acaba por acarretar uma valorização das relações com o espaço, a qual, por sua vez, impondo o confronto com problema específicos da escultura, se resolve no domínio da chamada «instalação».

Na série «Dentro de mim», através da acoplagem de espelhos a diferentes parte do corpo, este abre-se para deixar entrar o espaço, a luz e tudo o que o rodeia. O movimento do corpo no atelier refaz o espaço que o rodeia, e refaz-se a si próprio, enquanto corpo, através da absorção desse mesmo espaço. O modo como a autora «instala» o seu corpo no atelier modifica o que seria a nossa percepção normal do espaço, gerando um efeito de «instalação».

Ao longo de mais de 30 anos de trabalho, Helena Almeida vem explorando questões como estas: como é que o corpo e o movimento de um corpo – o da artista – faz pintura ou faz desenho?, como é que durante o processo é o próprio corpo que se torna pintura e desenho?, e, depois de experimentadas várias formas de interacção (absorção, penetração, ocultação, habitação) entre o corpo e as obras de arte que dele decorrem, o que é que fica para a arte que não seja já apenas a marca da travessia de um corpo? A resposta a esta última pergunta talvez esteja no título de uma série recente: «Seduzir» (2000/2002). Nesta série, composta por fotografias e um vídeo, assistimos a uma encenação peculiar de algumas poses, que podemos interpretar como um comentário aos estereótipos da noção de «sedução feminina». Mas o efeito mais perturbante resulta de a artista nos confrontar com a presença do seu corpo de um modo que nos obriga a tomar consciência do lugar e dos limites da acção e do poder do nosso próprio corpo, enquanto observadores.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 29 de Maio 2004, p. 40.



HELENA ALMEIDA



ARTFORUM
Setembro/September 2004


Seduzir, 2002

Pés no Chão, Cabeça no Céu” (Feet on the Ground, Head in the Clouds) encompasses thirty-five years of work in which, between the studio floor and the blue sky, everything passed through the body of Helena Almeida. In the 60’s the artist began questioning the material and conceptual elements that constitute the definition of painting. In the 70’s she abandoned traditional modes of depiction to undertake an array of practices whose point of departure is her own body. It all begins “inside me” – “Dentro de Mim”, as the title of a series of photographs from 2000-2001 says – not in the psychological sense of subjectivity that expresses itself, but in the performative sense of material (the body) presenting itself.
Almeida creates successive series of black-and-white photographs of herself. The photos register moments of the action of moving about, painting, or drawing in the studio – not painting or drawing by traditional means, perhaps, but through actions that transform movements into a work of art. In the series “Pintura Habitada” (Inhabited Painting), 1975-77, and “Desenho Habitado” (Inhabited Drawing), 1975, we see the artist in the act of painting or drawing, holding in her hand the brush or pencil from which flow streams of blue paint or black thread that, above or emerging from the surface of the photograph, possesses a real physical presence. The video Sente-me, Ouve-me, Vê-me (Feel me, Hear me, See Me), 1978-80, reveals the performance dimension of the work that precedes the photos.
Almeida’s transdisciplinary dynamic leads not only to an abandonment of the traditional artistic practices but to the progressive awareness of the necessity of making the passage from oneself to others. In the “Inside Me” series, made by attaching mirrors to different parts of herself, the body opens itself to reflect space, light, and everything that surrounds it. In these images the movement of the body remakes the surrounding space, and remakes itself, as body, through the absorption of that same space. The way the author “installs” her body in the studio modifies what would otherwise be our normal perception of space by generating an installation effect.
Almeida’s work explores questions such as: How is it that the body and the movement of a body – that of the author – makes art? How is it that during this process the body itself is what becomes art? And after various forms of interaction (absorption, penetration, occultation, habitation) between the body and the works of art that arise from it, what remains for art besides the mark of a body’s passage? The answer to this last question lies perhaps in the title of a recent series: “Seduzir” (Seduce), 2002. In these photographs, we witness the peculiar staging of certain poses that we can interpret as commentary on the stereotypes of feminine seduction. But the most unsettling effect results from the artist’s confronting us with the presence of her body in a manner that forces us, as observes, to take cognizance of the place and limits of the action and power of our own bodies.

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Texto traduzido para inglês por Clifford E. Landers e publicado na revista mensal Artforum, na edição de Setembro de 2004, por ocasião da exposição “Pés no Chão, Cabeça no Céu”, de Helena Almeida, no Centro Cultural de Belém, Lisboa, de 19 de Março a 6 de Maio, 2004.