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ESTRELAS NOSSAS DE CADA DIA
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Andy Warhol. Lupe. 1965 |
A exposição
«Into the Light; The Projected Image in América Art 1964-1977», oriunda do
Whitney Museum, em Nova Iorque, e agora apresentada no Centro Cultural de
Belém, em Lisboa, é uma exposição histórica especializada, com uma função
didáctica e contextualizadora em relação a um conjunto de tendências e
experiências que, ao longo da última década, vêm sendo divulgadas, reconhecidas
e vulgarizadas a um ritmo cada vez mais rápido. Quando olhamos para os
trabalhos dos jovens artistas que hoje utilizam o vídeo com a mesma
naturalidade com que noutros tempos se pintava a óleo é importante saber que o
seu trabalho vem na sequência lógica de quase meio século de pesquisas como
aquelas de que aqui se apresentam alguns bem escolhidos exemplos. Por isso esta
é uma exposição indispensável.
Uma das obras
mais inestimáveis incluídas nesta mostra é o filme Lupe, de Andy Warhol, habitualmente integrado no que, no cinema de
Warhol, se chama a «Trilogia de Hollywood», em que se incluem também Hedy e More Milk Yvette. Este conjunto de filmes dão-nos a justa medida da
importância da mitologia de Hollywood para a compreensão da arte pop em geral e
do conjunto da obra e da atitude criativa de Warhol em particular. Nestes
filmes, mais do que em qualquer outro momento da sua obra, Warhol lança as
bases de um trabalho de desconstrução da ideia de «star» que é uma notável
introdução à era do vedetismo de massas em que hoje vivemos.
Se quisermos
compreender as origens e o alcance das implicações sociais e culturais da pop é
indispensável aprofundar a sua relação com a história do cinema e de Hollywood
e do seu triunfo enquanto expressão mais forte de uma nova forma cultural
popular e global. O cinema e os modelos de Hollywood e do cinema clássico
americano, massivamente divulgados através da televisão e do sistema da moda e
da mundanidade, criaram uma nova forma de imaginário e um novo tipo de
processos de construção cultural identitária, em termos colectivos e
individuais.
A pop não
pode ser plenamente compreendida sem um articulação com temáticas oriundas do
cinema, designadamente as questões do «star system» e dos novos regimes de
identidade decorrentes de uma cultura regida pelo império das imagens. «Desde o
pós-guerra, o lugar do cinema na cultura tornou-se preponderante, exemplar,
nomeadamente graças ao sucesso com que fundou uma verdadeira cultura universal,
aliando pela primeira vez uma audiência popular a uma forma artística que não
perdeu por isso a sua alma. É com um cinema que satisfaz ao mesmo tempo as
exigências da arte e do público que a arte pop se vai medir» (Catherine Grenier,
in catálogo Les Années Pop, Centre
Pompidou, Paris, 2001).
A fixação de
Andy Warhol na fama, no «star system» e nas actividades mundanas, que ocupavam
uma parcela substancial do seu tempo, tem um contraponto paradoxal e perverso.
Ao submeter imagens famosas aos seus métodos e processos de pintura, mecânicos
e impessoais, Warhol acaba por, ao mesmo tempo que as glorifica, as banalizar,
ao colocá-las em pé de igualdade com todas as outras imagens que ele trata
exactamente da mesma maneira. Tornar banal o que era excepcional e tornar
excepcional o que era banal são dois movimentos de um processo de distanciação
que define, afinal, o ponto de vista de Andy Warhol sobre a sociedade
contemporânea: crítico segundo uns, apologético segundo outros. Os três filmes
referidos são inspirados, respectivamente, nas vidas de Lupe Velez, Hedy Lamarr
e Lana Turner. Lupe tem a
particularidade de ser o último filme que Edie Sedgwick fez com Warhol, sendo
que Edie foi a encarnação máxima da ideia de «Warhol Superstar» ou «Underground
Superstar». A ideia de uma espécie de «superstar» alternativa consistia, no
essencial, na deslocação da ideia e imagem de «star» do âmbito da estética e
indústria mais convencionais de Hollywood para o âmbito de uma cultura artística
e mundana marginal em que se inseria o conjunto das práticas artísticas de
Warhol e daqueles que então o rodeavam.
A dimensão
desta deslocação torna-se ainda mais decisiva devido à natureza ambígua do
estatuto da representação em todo o cinema de Warhol. De facto, os filmes de
Warhol colocam-se numa situação intermédia entre a ficção e a realidade. As
pessoas são pessoas reais – Edie Sedgwick é real – mais do que personagens e,
no entanto, não estão a agir naturalmente, estão a agir como se estivessem a representar
ou, no caso concreto destes filmes, estão a agir como se fossem «stars».
Poderíamos dizer que os filmes de Warhol são documentários sobre pessoas que
estão realmente a comportar como se estivessem a representar. É isto que
provoca o perturbante e paradoxal efeito de realidade dos filmes de Warhol.
Edie, em Lupe, faz aquilo que qualquer pessoa
poderia fazer num momento em que se quisesse imaginar como uma «star»,
cultivando a banalidade decadente e tangencialmente elegante do quotidiano que
a mitologia hollywoodesca lhes atribuiu, sem excluir a indispensável dimensão
trágica e autodestrutiva.
Hedy e More Milk Yvette, filmes menos
acessíveis que tive oportunidade de ver no Warhol Museum, em Pittsburgh,
sugerem esboços narrativos mais densos. Em ambos os casos encontramos grupos de
figuras que circulam em torno de uma figura feminina obcecada pela ideia de
beleza. A cleptomania e os julgamentos de Hedy e a sucessão dos maridos de
ambas são o pretexto narrativo mínimo para uma série de cena des-compostas em
que os corpos, os olhares e os gestos (comer, beber, vestir, despir, fumar,
beijar) se procuram sem exaltação mas também sem nunca abdicarem da
possibilidade de um sentimento ou de um momento de beleza. A sensação mais
forte e mais inesperada que me acompanhou nessas horas solitárias na escuridão
de uma sala de visionamento foi a impressão de que aquelas pessoas tinham sido
realmente filmadas na desarmada procura da expressão de um sentido superior de
si próprias. Um sentido que, talvez por não existir, só se pode procurar no
lugar de um processo de representação. A procura torna a sua forma mais
exacerbada, ou mais patética, quando se persegue a tarefa de construir uma
imagem de si próprio que seja a imagem de uma «star».
Neste
sentido, as «stars» de Warhol, muito mais que a verdadeiras «stars» de
Hollywood - as irrepetíveis
«stars» do cinema clássico americano -, dão-nos talvez a primeira imagem do
modelo do vedetismo de massas que hoje anima o processo de construção da
identidade de milhões de pessoas guiadas pela ideia de celebridade.
Com a
vantagem, que é o superior exclusivo de Warhol, de uma distância infinitamente
terna que faz com que o que poderia ser um exercício de mimetismo ou paródia se
transforme num quase religioso exercício de respeito pelo sentido de uma
presença humana «sem sentido».
.....................
Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 13 de Novembro 2004,
p. 40.
EU TENHO UM SONHO
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João Pedro Vale. I Have a Dream. 2002 |
No passado
dia 31 de Outubro, abriu no MARCO, Museu de Arte Contemporânea de Vigo, a
exposição «Outras Alternativas», comissariada pelo jovem crítico e curador
espanhol David Barro e reunindo obras de 20 artistas portugueses das mais
recentes gerações, isto é, revelados na última década e alguns mesmo já no novo
século. A exposição tem as virtudes próprias da diversidade e vitalidade da
actual cena nacional e a vantagem de, graças à distância de um ponto de vista
menos ligado às circunstâncias locais, agrupar algumas obras e misturas de
nomes pouco previsíveis e capazes de suscitar debate.
O que importa
aqui sublinhar é a constatação do que a exposição representa: há uma nova
geração, ou várias, consoante a arrumação cronológica que se adoptar, de jovens
e muito jovens artistas portugueses cujas obras têm já a maturidade e
consistência suficientes para participar numa dinâmica internacional de que
esta grande exposição, em museu espanhol é assinalável exemplo, tanto mais que
a Espanha tem uma função fulcral como ponto de passagem dos artistas
portugueses rumo a uma circulação global.
Entretanto,
para quem queria dar a volta ao mundo da
arte de um modo menos rápido do que aquele que parece caracterizar a dinâmica
dos artistas portugueses do século XXI, um dos métodos mais poéticos e
aventurosos é, sem dúvida, a viagem em balão.
Para o efeito
poderão tentar utilizar o balão criado, em 2002, por João Pedro Vale e
apresentado em Lisboa (Lugar Comum, Barcarena), no Porto (Artes em Partes) e
agora em Vigo.
João Pedro
Vale, que nasceu, estudou e trabalha em Lisboa, teve a primeira exposição
individual na Galeria Módulo em 2000. Ali apresentou um conjunto de esculturas
que remetiam para objectos ligados à atmosfera de um ginásio, apostando em
sugestivas referências sexuais e na utilização de matérias pouco convencionais
(sabão, pastilha elástica, «batôn») com uma surpreendente capacidade de apelo
sensorial.
Por exemplo,
a peça Body Sculpture consiste num
complexo de ginástica, daqueles que permitem a realização de uma multiplicidade
de exercícios através de variações da posição do corpo e dos vários elementos
da máquina. Todas as superfícies estofadas da máquina estão cobertas de
pastilha elástica de mentol, devidamente mastigada ou amassada de modo a
produzir efeito equivalente, dando à forma final da escultura um delicado tom
verde e um apetecível aroma a mentol que alastra ao espaço circundante.
Aquilo que
começa por ser um «ready-made», isto é uma apropriação de um objecto
pré-existente, transforma-se num palpitante apelo à intimidade. Um objecto que
costumamos associar a formas mecânicas e frias, ainda que suadas, de
exercitamento do corpo vê-se transformado em eventual propiciador de fantasias
sensuais menos comuns.
João Pedro
Vale realizou depois uma série de peças de grandes dimensões e grande impacto,
entre as quais se destacam as esculturas inspiradas na figura do Pinóquio
(Espaço EDP, 2001), na Dorothy de O
Feiticeiro de Oz (Feira de Arte de Lisboa, 2001). Vedetas multinacionais de
um imaginário cultural global, reinventadas para proveito e gozo dos nossos
imaginários pessoais. Figuras consagradas pela cultura de massas até ao ponto
de se tornarem estereótipos ganham um suplemento de sensualidade, através dos
materiais usados e da forma manual e caseira da sua utilização, e são
reinvestidos de uma vocação sentimental que as reenvia para a sua origem lúdica
e fantasista, em relação com o imaginário e a memória da infância.
O grande
balão voador com o qual começámos esta digressão pelo trabalho de João Pedro Vale
tem uma forma inspirada no castelo da Bela Adormecida do filme do Walt Disney e
é feito de tecidos vários em tons de cor-de-rosa. I Have a Dream é o seu nome inscrito em bandeiras que adornam o
balão e nas bilhas de gás que lhe alimentam o voo. No entanto, como é habitual
neste tipo de balões, sobretudo quando se chamam «I Have a Dream» (eu tenho um
sonho) não nos é possível ver o balão em pleno voo, apenas o podemos observar
em estado de queda com as torres do castelo suspensas de uma varanda ou espalhadas
pelo chão.
Os
pessimistas poderão pensar que o balão falhou na sua missão mas não é verdade.
Nós não sabemos por onde é que o balão já voou nem por quantos sonhos ele já
passou e também não sabemos quantas mais vezes ele irá voltar a levantar voo e
passar por outros tantos novos sonhos.
As obras de
arte não são promessas de políticos nem delírios de poetas. As obras de arte
não fingem transformar os sonhos em realidades. As obras de arte são a
realidade do facto de haver um sonho.
A viagem de
balão à volta ao mundo não tem princípio nem fim, tem apenas momentos de pausa
e repouso que devemos agradecer e entender como convite.
..........................
Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 3 de Janeiro 2004, p. 30-31.
O CORPO DA LUA
EU SOU ARTE
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Helena Almeida. Pintura Habitada. 1975. |
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Helena Almeida. Seduzir. 2002. |
«Pés no Chão,
Cabeça no Céu» é o título da exposição antológica que abrange 35 anos de
carreira de Helena Almeida no Centro Cultural de Belém. Um título que exprime
bem a unidade de uma obra em que, entre o chão do atelier e o azul do céu, tudo
passa pelo corpo de Helena Almeida. O trabalho mais antigo, Tela Rosa para Vestir (1969), uma foto
da autora vestida com uma pintura, funciona como antecipação de uma
trajectória.
No final dos
anos 60, Helena Almeida praticou uma pintura que problematizava os elementos
materiais e conceptuais constituintes da definição de pintura. Manchas que se
desviavam dos limites da tela. Telas que se soltavam da grade que deveria
agarrá-las. No início dos anos 70, abandona as concepções tradicionais de
pintura e inicia um original conjunto de práticas que ainda hoje continua a
desenvolver e que têm como ponto de partida o seu próprio corpo. Tudo começa
«Dentro de mim», como diz o título de uma série de trabalhos de 2001. «Dentro
de mim» não na acepção psicológica de uma subjectividade que se exprime, mas na
acepção performática de uma matéria física (o corpo) que se apresenta.
Helena
Almeida, elegendo como «media» a fotografia, cria sucessivas séries de
fotografias, a preto e branco, de si própria. As fotos registam momentos de
acções, que são as de se deslocar, pintar ou desenhar no espaço do atelier. Não
se trata de pintar ou desenhar no sentido tradicional, mas de realizar acções
em que o movimento do corpo (a performance) transforma o corpo em pintura ou
desenho.
Em vários
trabalhos (por exemplo, das séries «Pintura Habitada» e «Desenho Habitado», de
1975) vemos a artista fazendo o gesto de pintar ou desenhar tendo na mão um
pincel ou um lápis dos quais saem manchas de tinta azul ou um fio negro que têm
uma presença física, real, sobre ou saindo da superfície da fotografia. A
apresentação de um vídeo e de uma gravação sonora realizados em paralelo à
criação da série «Sente-me, Ouve-me, Vê-me» (1978/79) ajuda-nos a compreender a
dimensão performática do trabalho que dá origem às fotos.
A dinâmica
transdisciplinar que anima estas obras leva não só ao abandono das práticas tradicionais
das disciplinas consagradas como a uma progressiva tomada de consciência da
necessidade de passar de umas para as outras como forma de compreender e
ultrapassar os respectivos limites. A necessidade de interrogar os limites da
pintura ou do desenho implica uma dimensão performativa que, sendo inicialmente
servida pela fotografia, acaba por acarretar uma valorização das relações com o
espaço, a qual, por sua vez, impondo o confronto com problema específicos da
escultura, se resolve no domínio da chamada «instalação».
Na série
«Dentro de mim», através da acoplagem de espelhos a diferentes parte do corpo,
este abre-se para deixar entrar o espaço, a luz e tudo o que o rodeia. O
movimento do corpo no atelier refaz o espaço que o rodeia, e refaz-se a si
próprio, enquanto corpo, através da absorção desse mesmo espaço. O modo como a
autora «instala» o seu corpo no atelier modifica o que seria a nossa percepção
normal do espaço, gerando um efeito de «instalação».
Ao longo de
mais de 30 anos de trabalho, Helena Almeida vem explorando questões como estas:
como é que o corpo e o movimento de um corpo – o da artista – faz pintura ou
faz desenho?, como é que durante o processo é o próprio corpo que se torna
pintura e desenho?, e, depois de experimentadas várias formas de interacção
(absorção, penetração, ocultação, habitação) entre o corpo e as obras de arte
que dele decorrem, o que é que fica para a arte que não seja já apenas a marca
da travessia de um corpo? A resposta a esta última pergunta talvez esteja no título
de uma série recente: «Seduzir» (2000/2002). Nesta série, composta por
fotografias e um vídeo, assistimos a uma encenação peculiar de algumas poses,
que podemos interpretar como um comentário aos estereótipos da noção de
«sedução feminina». Mas o efeito mais perturbante resulta de a artista nos
confrontar com a presença do seu corpo de um modo que nos obriga a tomar
consciência do lugar e dos limites da acção e do poder do nosso próprio corpo,
enquanto observadores.
........................................
Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 29 de Maio 2004, p. 40.
QUEM SOU EU?
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Matthew Barney. De Lama Lamina. Carnaval de Salvador, Bahia, 2004. |
Já uma vez
expliquei, neste jornal, que no Brasil, e na Bahia em particular, me permitia
uma suspensão da distancia analítica e prescindia mesmo dos devaneios
intelectuais inerentes à observação sociológica. E, no entanto, na noite do
sábado de Carnaval, estando sentado e ensonado no Campo Grande, em Salvador, a
fazer horas para apanhar o primeiro «ferry» para Itaparica, senti o súbito
impacto de uma questão que, como se costuma dizer, não deixa ninguém
indiferente.
«Quem sou eu?
Quem sou eu?»
Encaminhei-me
para a fonte da voz e constatei que era acompanhado por alguns milhares de
pessoas que se moviam na mesma direcção, embora, é certo, de uma forma bem mais
ritmada e colorida do que eu.
A resposta à
mãe de todas as perguntas estava perto, mas, para o efeito deste texto, vou
deixá-la para o final.
A principal
razão que me levou este ano ao Carnaval de Salvador foi a anunciada presença
dos desfiles, a convite do Projecto Afro, de um cortejo dirigido pelo artista
plástico Mathew Barney e o músico Arto Lindsay, duas figuras famosas da cena
artística americana.
Aguardei com
expectativa a ocasião de avaliar se o pequeno mundo da arte contemporânea com
sede nova-iorquina teria capacidade de deixar uma marca no contexto daquela que
é, provavelmente, uma das maiores manifestações culturais populares de massas à
face da Terra.
Barney é um
dos artistas mais indicados para a tentativa. A sua obra, em que se destaca o
ciclo de cinco filmes Cremaster (1994/2003),
pode ser vista como uma exploração dos limites do exercício da actividade
performativa dos corpos, considerados como objecto de um processo de
metamorfose infinita. O ser vivo funde-se com o artefacto, o corpo acopla-se ao
objecto, a acção transmuta-se em escultura.
O trabalho de
Barney é também uma deriva em busca de elementos rituais, com os quais dá forma
artística a uma mitologia individual megalómana.
O trabalho de
Barney dissolve as noções tradicionais de escultura e cinema em favor de uma
abordagem transdisciplinar em que a performance e o seu registo têm um peso
cada vez maior. O Carnaval parece vir a propósito.
Como tema
geral, perceptível no título «De Lama Lamina» foi escolhido o tópico
politicamente correcto mais previsível: a ecologia, a desflorestação. Os
habituais carros carnavalescos foram substituídos por tractores e veículos de
mineração, um deles dotado de uma perfuradora. O tom geral era lamacento, com
ausência das cores e brilhos que o Carnaval costuma inspirar. O traje desenhado
para os participantes no desfile consistia num véu franjado, um «top» e uma
pequena saia, brancos e esfarrapados, de inspiração tribal ou tarzanesca.
O principal
elemento do desfile era um fragmento de árvore amputada do qual sobressaíam uns
cotos brancos, ao estilo habitual de Barney, no meio dos quais fazia acrobacias
uma mulher que sugeria uma mistura de Jane e Caliban.
Muitos
esperavam uma exibição da espectacularidade neobarroca característica de
algumas obras de Barney. Mas a opção foi a oposta. Não sei se o objectivo
visado, ao trazer uma pequena lição artística americana de ecologia ao Carnaval
de Salvador, era gerar um anticlímax, mas foi esse o efeito obtido. A
coreografia era quase inexistente, e a música de Arto Lindsay soou anémica no
meio da imensa energia do farol da Barra. O público reagiu com indiferença,
como se fosse um intervalo, e assim foi. No ar continuaram a vibrar os ecos da
timbalada e Carlinhos Brown.
Espero que o
génio de Barney, que passou vários dias a fazer filmagens em volta do carro,
lhe permita transformar numa obra-prima (um filme?) aquilo que não aconteceu
nas ruas de Salvador.
Pequena
caricatura nova-iorquina, Barbara Gladstone, galerista de Barney, faz-se
fotografar com Björk, mulher de Barney, no espaço VIP do camarote da «Vogue».
Está na
altura de voltar à questão inicial:
«Quem sou
eu?»
A resposta é
dada pelo cantor do cortejo africano Ilê Oyá e é qualquer coisa como isto:
«Um crioulo
bonito que nem eu.»
Uma resposta
que, na sua simplicidade aparentemente tautológica, resolve vários problemas
relacionados com as noções de identidade e comunidade.
Todos somos
crioulos, todos somos iguais, porque somos igualmente diferentes. A
reivindicação de uma combinação particular no âmbito de uma infinita variedade
de tons é o fundamento de uma auto-estima de natureza estética («bonito») que
faz desaparecer a contradição entre a pertença a uma comunidade global e a
singularidade individual («que nem eu»). Ou seja: eu ou você no meio da
multidão do llê.
Esperemos que
Matthew Barney tenha aprendido a lição da Bahia.
................................
Alexandre
Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso,
Lisboa, 17 de Abril 2004, p. 30-31
GENTIS CARIOCAS
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Galeria A Gentil Carioca |
Na tarde do
passado dia 22 de Setembro passei pela Gentil Carioca para a abertura da mostra
de Marssares. Um jovem artista que compõe peças musicais com base em percussões
electrónicas e depois constrói caixas de som, algumas de grandes dimensões que
se transformam em esculturas autónomas. Um grande objecto, como um cilindro
irregular deitado, convida-nos a nele entrarmos e, dentro dele, sentados,
seguirmos os ritmos do autor. Um pequeno objecto, em forma de binóculos, é-nos
proposto como caixa de som para ser usado em ligação com o computador pessoal.
Um ambiente festivo, a meio caminho entre a festa de rua e a sala de estar,
entre a discoteca e a sala de exposição, é exemplo certo da maneira de ser da galeria
da Gentil Carioca.
«Carioca» é a
designação popular para os habitantes do Rio de Janeiro e um adjectivo
frequentemente associado a manifestações consagradas da cultura popular
brasileira, designadamente o Carnaval e formas musicais específicas, como o
samba. Mas a palavra «carioca», sobretudo se lhe associamos a palavra «gentil»,
assinala também uma maneira de estar que se caracteriza por uma forma de
convívio aberto, sensual e prazenteiro. A beleza do Rio de Janeiro, uma
combinação única entre a sensação de férias eternas proporcionada pela
omnipresença da praia e a forte intensidade da vida urbana, é por vezes
reduzida a um estereótipo quase caricatural mas não deixa por isso de
corresponder a uma forma específica de interacção social que todos os visitantes
podem experimentar.
É este tipo
de experiência social e cultural aberta e integradora que preside ao projecto
desta galeria inaugurada em Setembro de 2003 numa das zonas mais típicas e
populares da cidade. Uma zona de pequeno comércio tradicional, originalmente
árabe e hoje com forte presença chinesa. Comerciantes e compradores misturam-se
à porta de uma infinidade de pequenas lojas e bares distribuídos por 10 ruas
paralelas e 5 transversais em que se encontram toda a espécie de artigos,
incluindo muitos materiais utilizados por artistas como, por exemplo, Ernesto
Neto que tem o seu ateliê nesta zona e, com Laura Lima e Márcio Botner,
constitui o grupo fundador da galeria.
O espaço
físico da galeria ajuda a cumprir os seus desígnios de abertura ao exterior e
ao ambiente das ruas a envolvem. Às duas salas mais convencionais junta-se uma
sala para a qual se desce através de uma pequena escada como a das piscinas e
que tem dois grandes janelões abertos para receber os cheiros e os ruídos da
rua.
A exposição
de Jarbas Lopes que visitei em Março deste ano, e é o tema central desta
crónica, é um exemplo perfeito do espírito da galeria. Sob o título «Pintura em
Família, com desenhos e ciranda da Tia Judith», o artista juntou aos seus
próprios desenhos, um conjunto de desenhos da sua Tia Judith, de 82 anos,
realizados ao longo de inúmeros serões em família e aqui apresentados,
pendurados num varal, na sala das traseiras com o chão coberto por esteiras
para reforçar a atmosfera familiar. Por sua vez, o já referido espaço da
«piscina» foi deixado livre para os visitantes poderem fazer desenhos na
parede, que acabam por completar o significado da exposição, transformando-a
numa real expressão de um trabalho de convivência e colaboração que se alarga
do espaço da família para o espaço da galeria e do bairro circundante.
Na festa de
inauguração que, de acordo com o que é hábito na galeria, se transformou numa
festa popular que se prolongou pela noite fora, toda a família do artista se
reuniu para receber os visitantes e cantar Cirandas numa roda alimentada por
caldo de mocotó e cachaça, bebidas e comidas populares tradicionais.
Os desenhos
da Tia Judith, na melhor tradição «naïf», representam flores e motivos vegetais
com um assinalável grau de estilização. Os desenhos de Jarbas Lopes, um artista
nascido no Rio de Janeiro, em 1964, começam por nos seduzir pela sua
simplicidade. São pequenos formatos (30x20cm), desenhados a esferográfica sobre
papel, em que a marca persistente do riscar deixar sentir a intimidade da
presença física da própria mão. Não estamos, no entanto, perante esboços
elementares, frutos de uma mera intuição espontânea. O trabalho de composição,
dividindo o espaço da folha em diferentes espaços de diferentes dimensões e
procurando os ritmos adequados ao confronto desses espaços são a prova de uma
afinada consciência plástica. O mesmo se pode dizer do uso das cores, apesar do
leque limitado permitido pelo uso da esferográfica, e da forma como algumas
matrizes abstractas se conjugam com referências figurativas e com a inclusão de
palavras. Em cada desenho, a procura de um padrão de equilíbrio harmonioso é
perturbada e animada pela intrusão das marcas escritas ou figuradas do mundo
animal e urbano que sempre nos espreita, sobretudo numa cidade tão viva e
luxuriante como o Rio de Janeiro.
Uma
composição abstracta confunde-se com as formas dos olhos de um animal. Uma
bicicleta recorta-se contra as árvores e o Sol ao fundo, com um gira-discos no
rodapé. Nos três rectângulos de uma composição «à maneira de Rothko» lemos as
mais singelas saudações: «Bom Dia», «Boa Tarde», «Boa Noite».
A vocação
comunitária de A Gentil Carioca aparece-nos assim justamente servida por uma
exposição com uma sensibilidade humilde e «familiar» quase comovente.
.........................................
Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 2 de Outubro 2004, p. 46
DE VALENTINO A BRUCE NewMan
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Rudolph Valentino. Valentino como Young Rajah, 1922. |
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Bruce Nauman, Art Make-up, 1967-68. |
Art Make up (1967-68,
cor, sem som) é o título comum a quadro filmes de 10 minutos cada em que Bruce
Nauman vai sucessivamente cobrindo o rosto, o tronco e os braços com
maquilhagem de cor branca, rosa, verde e negra. As obras podem ser vistas no
Museu de Serralves, em excelentes condições de projecção, integradas na notável
exposição «Behind the Facts. Interfunktionen 1968-1975». Uma obra complementar
relevante, não mostrada em Serralves, é Flesh
to White to Black to Flesh (1968, 51 min., preto e branco, som).
Arte e
«make-up» servem de tópicos para uma especulação sobre o modo como, entre as
modas e as artes, ao longo do último século se foram transformando os modos de
produzir imagens dos rostos masculinos e sobre os efeitos mais recentes dessa
transformação no que diz respeito aos modos de construir as identidades
masculinas. Uma divagação, mesmo caprichosa e fragmentária, deve começar pelo
princípio e no princípio está o princípio do cinema e, se queremos falar da
reinvenção do rosto masculino, está aquele que foi o primeiro e até hoje um dos
melhores ícones de beleza masculina da história do cinema: Rudolph Valentino.
Cinco semanas
antes da sua morte, o «Chicago Tribune» (18/7/1926) publicava o mais violento e
insidioso de uma série de ataques que o perseguiram ao longo da sua carreira. A
propósito de virilidade, questionava-se a natureza e as proporções das
componentes estéticas e sexuais geradoras do nunca visto carisma perante o qual
sucumbiam em massa audiências femininas e não só. «Pink Powder Puff»
(designação que julgo remeter para o uso de pó-de-arroz cor-de-rosa) era o
insulto mais forte do editorial, que enfureceu Valentino e o levou a desafiar o
anónimo articulista para um combate, enquanto se defendia enaltecendo as suas
origens italianas.
Sabe-se como
o cinema, a luz do cinema e o «close-up» (o grande plano), em particular,
modificaram a moldura dos rostos humanos e, portanto, a maneira de os ver e
imaginar, com consequências imensas sobre as noções de beleza e os mecanismos
do desejo e imaginação sexual. O assunto tem sido muito estudado, sobretudo no
que diz respeito à representação da mulher. Para as variantes masculinas é
preciso começar com Valentino.
Nascido em
Itália no mesmo ano em que o cinema, em 1895, tornou-se do ponto de vista
estético e simbólico, tudo aquilo que o homem e herói americano de então não
era, não queria nem podia ser. Para além das especulações sexuais, em torno de
Valentino jogava-se, com o racismo em pano de fundo, questões étnicas
decisivas. Por exemplo, para desempenhar o papel de «sheik» árabe no filme que
o tornou uma «star» (The Sheik,
1921) pretendia-se reforçar, na imagem de Valentino, a componente exótica,
oriental, misteriosa, isto é, não ocidental. No entanto, o problema de cor da
pele foi abordado com os máximos cuidados. O «sheik» deveria ser mais escuro,
sobretudo para poder contrastar com a imaculada brancura das heroínas, mas não
podia ser realmente mais escuro, porque se receava que as audiências não
tolerassem um herói menos branco. A solução foi aplicar «make-up» branco na cara
para ninguém se assustar, sublinhar a profundidade dos olhos com «eye-liner» e
«olheiras» e guardar a maquilhagem mais escura apenas para as mãos nas cenas de
mãos dadas com a heroína. O rosto, mesmo se de um «sheik» árabe italiano, tinha
de ser cem por cento branco.
Art Make up é uma das
obras-primas de Bruce Nauman. Bem sei que se pode dizer o mesmo de dezenas de
obras dele, porque se trata de um dos mais importantes artistas vivos e de um
dos mais influentes entre os jovens artistas que ao longo dos últimos 15 anos
têm renovado a tradição das vanguardas. Diz-se até que nas escolas de arte mais
em voga cada aluno arranca uma página de um catálogo de Nauman no início do
curso e constrói toda a sua carreira sobre esse achado.
O nome de
Nauman, ainda hoje em plena actividade, está associado às experiências das
vanguardas americanas que no final dos anos 60 alargaram a noção de arte até
aos limites mais extremos em termos de radicalização conceptual e de
diversificação de técnicas e materiais. Neste contexto, as inovações no âmbito
das artes plásticas são indissociáveis de experiências contemporâneas no
domínio da literatura (Beckett, Robbe-Grillet), da música (Cage, Reich), da
dança (Cunningham, Monk), ou do cinema (Warhol).
«A
diversidade técnica e formal das obras é extremamente grande em Bruce Nauman.
Trabalha com meios como a performance, a fotografia, o filme, o holograma, o
vídeo, o desenho, a gravura, a escultura em madeira, metal, feltro, gesso,
borracha ou fibra de vidro e utiliza por vezes tubos de néon. A maneira como a
obra é transmitida ao público não é menos rica: o espectador é interpretado por
uma impressão visual, palavras, ideias, gestos, demonstrações cujo objecto é o
corpo, situações espaciais criadas pelo artista que suscitam um efeito particular
no espectador, que se transforma então em utilizador do espaço» (Franz Meyer, Bruce Nauman – Sculptures et Installations
– 1985-1990, catálogo Musée Cantonal des Beaux-Arts, Lausanne, ed. Ludion,
Bruxelles, 1991, pág. 11).
A consciência
de si próprio, experimentada e exercitada através do corpo, é um bom ponto de
partida. Embora a formulação pareça mais adequada ao campo da dança, Nauman
trabalhou-a através de performances, vídeos e filmes que, na realidade, não
desmerecem a comparação com projectos coreográficos. Art Make Up é um exemplo maior de utilização do corpo como material
de base do trabalho artístico. É a demonstração literal de uma atitude
conceptual segundo a qual a obra de arte é aquilo que o (corpo do) artista faz.
A obra, sem deixar de ter existência autónoma (os filmes), é menos o resultado
do que o (registo do) processo de fazer.
O que dá a Art Make Up um suplemento de fascínio é
o facto de aquilo que o artista aqui faz ser refazer a imagem de si próprio: é
uma espécie de auto-retrato em movimento do artista a fazer-se passar por
artista. Ou seja: a apresentar-se como e, portanto, a ser artista.
O artista
assume-se e mostra-se, do modo mais simples e radical, como autor de si mesmo,
ou actor da sua própria obra, ou suporte da sua pintura, ou ainda, se
quisermos, como manequim de uma autoprodução de moda.
O artista
apresenta-se a si próprio como obra de arte e artista. O modo como o faz é
através do disfarce e da maquilhagem, com requintes de sensualidade narcísica,
por vezes quase onanista.
Nauman (nunca
olha para o espectador deduzindo-se que olha para um espelho) abre vastas
conexões entre as artes plásticas e as artes de representação (performance, em
geral, teatro e cinema), mas também entre a definição de artista e a questão ética
do processo de construção da identidade individual através de um trabalho
criativo de autodefinição. O que está em causa é a liberdade da
auto-imaginação: chave e segredo da ideia de liberdade. Há sempre uma moral.
Em 1968, o
artista Bruce Nauman pinta-se e repinta-se, entre o preto e o branco, com todas
as cores do arco-íris, para além de todos os constrangimentos que afligiram
Rudolph Valentino.
No discurso
que assinalou uma doação de obras da sua colecção a um grande museu americano,
uma coleccionadora terá sublinhado o grande apreço que lhe mereciam as obras
históricas de «Brunce Newman».
Podemos
pensar que, nas memórias da famosa coleccionadora, a aquisição das primeiras
obras de Nauman se confundia com o inesquecível rosto juvenil de Paul Newman –
hoje disponível, numa versão mais madura, nas embalagens de uma vasta linha de
produtos alimentares. Nem todos podem ter o sublime destino de Valentino, que,
com o perfil de «sheik», adornou, durante décadas, uma das mais populares
marcas de preservativos dos Estados Unidos.
Mas também
podemos considerar que o que a expressão «Brunce NewMan» põe em jogo é a
emergência de um «newman», que hoje se banaliza com a noção de «metrossexual»,
ou as tatuagens de Beckham, mas que só começou a respirar em liberdade nas
atmosferas de 60, graças a obras como as de Nauman e Warhol. Um novo homem, que
nasceu, ao mesmo tempo que a nova mulher, em Hollywood, nos anos 20, com Rudolph
Valentino – «the one and only».
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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 28 de Agosto 2004, p. 30-31
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