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RAPAZ LOURO DE OLHOS AZUIS




Nobert Bisky. Mit uns oder untergehen. 2002.



Houve um tempo, que por certo correspondeu ao esplendor da juventude de muitas pessoas, em que o título desta crónica passava por descrição de um forte candidato a paradigma de beleza. Dizia-se que as raparigas sonhavam com este modelo ideal, e isso servia de pretexto para os rapazes também sonharem. Os mecanismos de identificação são complexos.

Nos tempos que correm, a juventude continua a ser eterna, na medida em que todos os dias há pessoas que começam a ser jovens, mas não é certo que os ideais de beleza tenham manifestado a mesma perenidade. Hoje, como todos sabemos, os sonhos estão mais misturados e coloridos, mas ainda há quem continue a sonhar com o ideal em causa.

Nobert Bisky é um pintor que nasceu em Leipzig em 1970 e estudou desde 1993 em Berlim, onde vive e trabalha. Já agora, e porque estamos em plena operação internacional de promoção de uma nova vaga de «nova pintura alemã», convém esclarecer que Bisky não é fácil de integrar na «Escola de Leipzig», inventada a partir do imenso sucesso de Neo Rauch, e que, para dar um exemplo, tinha um lugar de honra nas novas aquisições da Colecção Rubell apresentadas este mês durante a Feira de Arte de Miami. Também diz não sentir afinidades com o «Grupo de Dresden», apesar de ser vizinho de estúdio de Eberhard Havekost e Thomas Scheibitz.

Bisky desenha o seu território de modo muito particular e identificável e é um rapaz louro de olhos azuis, mas, no que este texto diz respeito, o centro da nossa atenção não será ele mas o rapaz louro de olhos azuis que, desde há vários anos, as suas pinturas figuram de modo obsessivo e epidémico.

São adolescentes de tronco nu, de calções e meias brancas, como nas velhas aulas de ginástica, e, como não podia deixar de ser, dedicam-se a jogos diversos e movimentados, exercícios físicos bastante inocentes e apenas um pouco violentos. As pinceladas, largas, ágeis e fugidias, limitam-se a dar-nos os tons rosados e dourados da pele e dos cabelos. O azul do céu ou um fundo vermelho sem pretexto são contexto que baste para o recorte dos corpos. Uma árvore oscila, de quando em quando, para confirmar a animação do vento. A fluidez da pintura inunda a amplitude da escala, pouco comum neste tipo de representação, cuja técnica de execução faz pensar em aguarela, a que o autor também se dedica. É normal as pinturas terem dos metros por dois, dois metros por três, para que ninguém possa falar de medo ou falta de espaço.

Do muito que se diz dever a Baselitz, de quem foi aluno durante vários anos, o artista destaca as recomendações para não se preocupar com a técnica, e ainda menos com os temas e discussões em voga no pequeno mundo da arte, e o estímulo para se concentrar exclusivamente naquilo que lhe é mais pessoal. Como é habitual, aquilo que é mais pessoal para uma pessoa acaba por nos conduzir àquilo que é pessoal para um vasto e, neste caso, muito variado número de pessoas.

A figuração descrita, assinada por um pintor alemão, não podia deixar de levantar a questão do mito da «raça ariana» da ideologia nazi. Para despachar o assunto, foi este o primeiro tópico de conversa durante um tranquilo almoço no restaurante Joe Allen, em Miami Beach. Bisky explica que conhece bem o tema, até por razões pessoais, já que uma avó foi activa participante nas aventuras campestres e naturistas dos anos 30 alemães e, a seu tempo, uma também activa participante nos crimes do nazismo. O problema está na história da família de modo tão inevitável como na história da Alemanha.

O artista foi ver a pintura da época nazi, que a infinita culpa e vergonha dos alemães os continua a impedir mostrar, e diz ter encontrado uma pintura pesada, parda e exangue, sem nenhuns pontos de contacto com o seu trabalho. Pelo contrário, encontrou semelhanças com a pintura da propaganda soviética, que lhe chegou de um modo mais directo e pessoal devido à infância passada na RDA, no seio de uma família de obstinados comunistas, que nem sequer lhe pouparam a experiência de arregimentação juvenil nos «Pioneiros».

Hitler e Estaline. Estaline e Hitler. Qual dos dois era o mais louro e tinha os olhos mais azuis?

A questão fica em aberto, mas importa reconhecer que ambos ficam muito aquém dos habitantes das praias de Santa Monica ou Malibu, em Los Angeles, ou dos rapazes dos catálogos da Abercrombie and Fitch. Uma imagem de marca californiana, para a qual muito contribui o trabalho fotográfico de Bruce Webber, não por acaso muito inspirado por Herbert List e pelos ses algo alemães «Filhos do Sol».

Acertadas as contas, de modo equitativo, com as estéticas de totalitarismo nazi e comunista e do liberalismo democrático e, de passagem, também com uma complicada herança familiar, Bisky sublinha que aquilo que o move não é uma lógica de crítica ideológica ou desconstrução cultural, mas a fidelidade a um impulso e um universo pessoais. O modelo das suas figuras é apenas um e sempre o mesmo desde há dez anos, mas permanece irreconhecível nas suas pinturas.

Os rapazes de Nobert Bisky quase não têm roso e os rostos quase não têm olhar, porque eles não pertencem à teia dos negócios psicológicos. Eles têm a flutuante qualidade daquilo que se imagina. Fiquei de ir visitar Nobert Bisky em Berlim, mas posso desde já antecipar uma conclusão: o rapaz nunca existiu.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 18 de Dezembro 2004, p. 48-49.

ESTRELAS NOSSAS DE CADA DIA




Andy Warhol. Lupe. 1965

A exposição «Into the Light; The Projected Image in América Art 1964-1977», oriunda do Whitney Museum, em Nova Iorque, e agora apresentada no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, é uma exposição histórica especializada, com uma função didáctica e contextualizadora em relação a um conjunto de tendências e experiências que, ao longo da última década, vêm sendo divulgadas, reconhecidas e vulgarizadas a um ritmo cada vez mais rápido. Quando olhamos para os trabalhos dos jovens artistas que hoje utilizam o vídeo com a mesma naturalidade com que noutros tempos se pintava a óleo é importante saber que o seu trabalho vem na sequência lógica de quase meio século de pesquisas como aquelas de que aqui se apresentam alguns bem escolhidos exemplos. Por isso esta é uma exposição indispensável.

Uma das obras mais inestimáveis incluídas nesta mostra é o filme Lupe, de Andy Warhol, habitualmente integrado no que, no cinema de Warhol, se chama a «Trilogia de Hollywood», em que se incluem também Hedy e More Milk Yvette. Este conjunto de filmes dão-nos a justa medida da importância da mitologia de Hollywood para a compreensão da arte pop em geral e do conjunto da obra e da atitude criativa de Warhol em particular. Nestes filmes, mais do que em qualquer outro momento da sua obra, Warhol lança as bases de um trabalho de desconstrução da ideia de «star» que é uma notável introdução à era do vedetismo de massas em que hoje vivemos.

Se quisermos compreender as origens e o alcance das implicações sociais e culturais da pop é indispensável aprofundar a sua relação com a história do cinema e de Hollywood e do seu triunfo enquanto expressão mais forte de uma nova forma cultural popular e global. O cinema e os modelos de Hollywood e do cinema clássico americano, massivamente divulgados através da televisão e do sistema da moda e da mundanidade, criaram uma nova forma de imaginário e um novo tipo de processos de construção cultural identitária, em termos colectivos e individuais.

A pop não pode ser plenamente compreendida sem um articulação com temáticas oriundas do cinema, designadamente as questões do «star system» e dos novos regimes de identidade decorrentes de uma cultura regida pelo império das imagens. «Desde o pós-guerra, o lugar do cinema na cultura tornou-se preponderante, exemplar, nomeadamente graças ao sucesso com que fundou uma verdadeira cultura universal, aliando pela primeira vez uma audiência popular a uma forma artística que não perdeu por isso a sua alma. É com um cinema que satisfaz ao mesmo tempo as exigências da arte e do público que a arte pop se vai medir» (Catherine Grenier, in catálogo Les Années Pop, Centre Pompidou, Paris, 2001).

A fixação de Andy Warhol na fama, no «star system» e nas actividades mundanas, que ocupavam uma parcela substancial do seu tempo, tem um contraponto paradoxal e perverso. Ao submeter imagens famosas aos seus métodos e processos de pintura, mecânicos e impessoais, Warhol acaba por, ao mesmo tempo que as glorifica, as banalizar, ao colocá-las em pé de igualdade com todas as outras imagens que ele trata exactamente da mesma maneira. Tornar banal o que era excepcional e tornar excepcional o que era banal são dois movimentos de um processo de distanciação que define, afinal, o ponto de vista de Andy Warhol sobre a sociedade contemporânea: crítico segundo uns, apologético segundo outros. Os três filmes referidos são inspirados, respectivamente, nas vidas de Lupe Velez, Hedy Lamarr e Lana Turner. Lupe tem a particularidade de ser o último filme que Edie Sedgwick fez com Warhol, sendo que Edie foi a encarnação máxima da ideia de «Warhol Superstar» ou «Underground Superstar». A ideia de uma espécie de «superstar» alternativa consistia, no essencial, na deslocação da ideia e imagem de «star» do âmbito da estética e indústria mais convencionais de Hollywood para o âmbito de uma cultura artística e mundana marginal em que se inseria o conjunto das práticas artísticas de Warhol e daqueles que então o rodeavam.

A dimensão desta deslocação torna-se ainda mais decisiva devido à natureza ambígua do estatuto da representação em todo o cinema de Warhol. De facto, os filmes de Warhol colocam-se numa situação intermédia entre a ficção e a realidade. As pessoas são pessoas reais – Edie Sedgwick é real – mais do que personagens e, no entanto, não estão a agir naturalmente, estão a agir como se estivessem a representar ou, no caso concreto destes filmes, estão a agir como se fossem «stars». Poderíamos dizer que os filmes de Warhol são documentários sobre pessoas que estão realmente a comportar como se estivessem a representar. É isto que provoca o perturbante e paradoxal efeito de realidade dos filmes de Warhol.

Edie, em Lupe, faz aquilo que qualquer pessoa poderia fazer num momento em que se quisesse imaginar como uma «star», cultivando a banalidade decadente e tangencialmente elegante do quotidiano que a mitologia hollywoodesca lhes atribuiu, sem excluir a indispensável dimensão trágica e autodestrutiva.

Hedy e More Milk Yvette, filmes menos acessíveis que tive oportunidade de ver no Warhol Museum, em Pittsburgh, sugerem esboços narrativos mais densos. Em ambos os casos encontramos grupos de figuras que circulam em torno de uma figura feminina obcecada pela ideia de beleza. A cleptomania e os julgamentos de Hedy e a sucessão dos maridos de ambas são o pretexto narrativo mínimo para uma série de cena des-compostas em que os corpos, os olhares e os gestos (comer, beber, vestir, despir, fumar, beijar) se procuram sem exaltação mas também sem nunca abdicarem da possibilidade de um sentimento ou de um momento de beleza. A sensação mais forte e mais inesperada que me acompanhou nessas horas solitárias na escuridão de uma sala de visionamento foi a impressão de que aquelas pessoas tinham sido realmente filmadas na desarmada procura da expressão de um sentido superior de si próprias. Um sentido que, talvez por não existir, só se pode procurar no lugar de um processo de representação. A procura torna a sua forma mais exacerbada, ou mais patética, quando se persegue a tarefa de construir uma imagem de si próprio que seja a imagem de uma «star».

Neste sentido, as «stars» de Warhol, muito mais que a verdadeiras «stars» de Hollywood -  as irrepetíveis «stars» do cinema clássico americano -, dão-nos talvez a primeira imagem do modelo do vedetismo de massas que hoje anima o processo de construção da identidade de milhões de pessoas guiadas pela ideia de celebridade.

Com a vantagem, que é o superior exclusivo de Warhol, de uma distância infinitamente terna que faz com que o que poderia ser um exercício de mimetismo ou paródia se transforme num quase religioso exercício de respeito pelo sentido de uma presença humana «sem sentido».


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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 13 de Novembro 2004, p. 40.

EU TENHO UM SONHO






 
João Pedro Vale. I Have a Dream. 2002


No passado dia 31 de Outubro, abriu no MARCO, Museu de Arte Contemporânea de Vigo, a exposição «Outras Alternativas», comissariada pelo jovem crítico e curador espanhol David Barro e reunindo obras de 20 artistas portugueses das mais recentes gerações, isto é, revelados na última década e alguns mesmo já no novo século. A exposição tem as virtudes próprias da diversidade e vitalidade da actual cena nacional e a vantagem de, graças à distância de um ponto de vista menos ligado às circunstâncias locais, agrupar algumas obras e misturas de nomes pouco previsíveis e capazes de suscitar debate.

O que importa aqui sublinhar é a constatação do que a exposição representa: há uma nova geração, ou várias, consoante a arrumação cronológica que se adoptar, de jovens e muito jovens artistas portugueses cujas obras têm já a maturidade e consistência suficientes para participar numa dinâmica internacional de que esta grande exposição, em museu espanhol é assinalável exemplo, tanto mais que a Espanha tem uma função fulcral como ponto de passagem dos artistas portugueses rumo a uma circulação global.
Entretanto, para quem queria dar a volta ao mundo da arte de um modo menos rápido do que aquele que parece caracterizar a dinâmica dos artistas portugueses do século XXI, um dos métodos mais poéticos e aventurosos é, sem dúvida, a viagem em balão.

Para o efeito poderão tentar utilizar o balão criado, em 2002, por João Pedro Vale e apresentado em Lisboa (Lugar Comum, Barcarena), no Porto (Artes em Partes) e agora em Vigo.

João Pedro Vale, que nasceu, estudou e trabalha em Lisboa, teve a primeira exposição individual na Galeria Módulo em 2000. Ali apresentou um conjunto de esculturas que remetiam para objectos ligados à atmosfera de um ginásio, apostando em sugestivas referências sexuais e na utilização de matérias pouco convencionais (sabão, pastilha elástica, «batôn») com uma surpreendente capacidade de apelo sensorial.

Por exemplo, a peça Body Sculpture consiste num complexo de ginástica, daqueles que permitem a realização de uma multiplicidade de exercícios através de variações da posição do corpo e dos vários elementos da máquina. Todas as superfícies estofadas da máquina estão cobertas de pastilha elástica de mentol, devidamente mastigada ou amassada de modo a produzir efeito equivalente, dando à forma final da escultura um delicado tom verde e um apetecível aroma a mentol que alastra ao espaço circundante.

Aquilo que começa por ser um «ready-made», isto é uma apropriação de um objecto pré-existente, transforma-se num palpitante apelo à intimidade. Um objecto que costumamos associar a formas mecânicas e frias, ainda que suadas, de exercitamento do corpo vê-se transformado em eventual propiciador de fantasias sensuais menos comuns.

João Pedro Vale realizou depois uma série de peças de grandes dimensões e grande impacto, entre as quais se destacam as esculturas inspiradas na figura do Pinóquio (Espaço EDP, 2001), na Dorothy de O Feiticeiro de Oz (Feira de Arte de Lisboa, 2001). Vedetas multinacionais de um imaginário cultural global, reinventadas para proveito e gozo dos nossos imaginários pessoais. Figuras consagradas pela cultura de massas até ao ponto de se tornarem estereótipos ganham um suplemento de sensualidade, através dos materiais usados e da forma manual e caseira da sua utilização, e são reinvestidos de uma vocação sentimental que as reenvia para a sua origem lúdica e fantasista, em relação com o imaginário e a memória da infância.

O grande balão voador com o qual começámos esta digressão pelo trabalho de João Pedro Vale tem uma forma inspirada no castelo da Bela Adormecida do filme do Walt Disney e é feito de tecidos vários em tons de cor-de-rosa. I Have a Dream é o seu nome inscrito em bandeiras que adornam o balão e nas bilhas de gás que lhe alimentam o voo. No entanto, como é habitual neste tipo de balões, sobretudo quando se chamam «I Have a Dream» (eu tenho um sonho) não nos é possível ver o balão em pleno voo, apenas o podemos observar em estado de queda com as torres do castelo suspensas de uma varanda ou espalhadas pelo chão.
Os pessimistas poderão pensar que o balão falhou na sua missão mas não é verdade. Nós não sabemos por onde é que o balão já voou nem por quantos sonhos ele já passou e também não sabemos quantas mais vezes ele irá voltar a levantar voo e passar por outros tantos novos sonhos.

As obras de arte não são promessas de políticos nem delírios de poetas. As obras de arte não fingem transformar os sonhos em realidades. As obras de arte são a realidade do facto de haver um sonho.

A viagem de balão à volta ao mundo não tem princípio nem fim, tem apenas momentos de pausa e repouso que devemos agradecer e entender como convite.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 3 de Janeiro 2004, p. 30-31.

O CORPO DA LUA



Rui Chafes. Durante o Sono. 2002.



Abre hoje ao público, no Nikolaj Contemporary Art Center, em Copenhaga, onde ficará até 12 de Abril, uma exposição antológica de Rui Chafes já antes apresentada no Esbjerg Kunstmuseum. Ontem, noite de inauguração, foi noite de Lua Cheia. A paisagem e a luz de Caspar David Friedrich e da Dinamarca, no Inverno, são um dos melhores cenários que poderíamos imaginar para a primeira mostra museológica do autor no estrangeiro.

Rui Chafes é um dos nomes mais importantes da arte portuguesa dos nossos séculos (XX e XXI) e um dos mais originais no panorama geral da escultura, hoje. A selecção de obras para esta exposição permite desenhar um trajecto de leitura em que o corpo é o ponto de partida e o ponto de chegada é, como não poderia deixar de ser, infinito.

Os corpos, tal como as obras de arte, são muito pouco mas são quase tudo o que temos.

Esta história começa ainda antes do movimento do nascimento. Houve um tempo em que não havia ninguém. Tudo o que tivesse que vir a haver estava então ainda dentro. Lá dentro era um sítio «doce e quente» (as expressões a negro são títulos das peças do autor). Rui Chafes tratou este problema nas suas primeiras grandes esculturas/instalações da década de 80.

A escultura Doce e Quente mostra-nos a vontade de não mostrar o que está lá dentro. Mas o artista sempre soube que a abertura, a saída, a queda não podiam ser eternamente adiadas. Mesmo este monstruoso insecto blindado começa a abrir-se, começa a ceder, vencido pelo peso do próprio sentimento que o leva a querer manter-se fechado.

Este é o lugar onde mais tarde teremos de voltar, mas antes de chegar a esse lugar são muitas as passagens e provocações pelas quais teve que passar a representação ou evocação do corpo em queda.

Usando uma linguagem literária é possível definir os seres humanos como anjos caídos que não se conseguem levantar, anjos escangalhados. As nossas cabeças não têm auréolas, os nossos ombros não têm asas, os nossos cabelos não têm luz. O simples facto de conseguirmos existir, tão pobremente despidos de qualquer atributo miraculoso pode ser considerado, em si mesmo, um milagre.

Para nos amparar, uma das melhores coisas que se inventaram foi a ideia do anjo a que muitos artistas justamente dedicaram muito do seu talento. Hoje em dia é raro porque quase nenhum artista se lembra de se ocupar de questões importantes. Rui Chafes é uma excepção e através das suas obras podemos acompanhar as passagens de um corpo.

Os limites da resistência e flexibilidade dos corpos e as possibilidades plásticas das suas acoplagens e correspondentes resultados formais, para além de poderem passar por ser uma definição de escultura, são também uma das principais metodologias utilizadas no trabalho de Rui Chafes.

Diferentes séries de esculturas exploram de maneira sistemática quer a prática da escultura entendida como teste aos limites da capacidade de manipulação dos materiais quer os possíveis exercícios e desenhos relativos à metamorfose, torção e fusão dos corpos.

Se insistimos em explorar os limites do corpo, ou a prática da escultura, acabamos por concluir que os corpos não nos levam suficientemente longe e a todo o momento correm riscos de fractura ou desagregação. Há sempre o perigo de uma escultura falhar, se perder, se partir, apesar de todo o rigor do desenho e todos os cuidados da produção. O mesmo sucede com os corpos. Para evitar que eles se possam esvair é preciso pensar em formas de os segurar, conter, abraçar.

É claro que esta deficiência dos corpos se poderia resolver se fosse possível descobrir o segredo da filigrana de cristal, a metalurgia da luz. Se fosse possível desenhar o paraíso das linhas milagrosas por onde corre o sangue: antes do sangue chegar.

Mas isso não é fácil e não é assunto para a escultura. Talvez para a poesia, dizem, iludidos, os mais crédulos.

É preciso continuar a caminhar. Com Unsaid é possível voltar a estar lá dentro sem deixar de estar cá fora devido a uma engenhosa construção formal e, sobretudo, devido ao desdobramento permitido pelo uso da voz e do texto. Unsaid é um trabalho realizado em colaboração e em que o visitante tem de se colocar dentro de uma estreita construção em ferro para poder ouvir e sentir a intimidade de um texto escrito e lido pela artista irlandesa Orla Barry. A dificuldade, o mal-estar, a inibição funcional que fazem parte da experiência desta peça preparam-nos para o momento seguinte.

Depois de tudo aquilo por que tinha passado o artista voltou a abrir os olhos e sentiu que desta vez era quase a eternidade. Um exemplo daquilo de que estou a falar é a extraordinária escultura Aproxima-te, Ouve-me instalada por Rui Chafes, no Centro de Artes Visuais em Coimbra.

É o momento em que a mais pesada esfera (Durante o Sono) se eleva no ar e se transforma no milagroso espelho negro onde, pela última vez e, depois, pela primeira vez e para sempre se pode ver o rosto da Lua e o rosto de todos os seres amados.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 7 de Fevereiro 2004, p. 38-39.

EU SOU ARTE



Helena Almeida. Pintura Habitada. 1975.

Helena Almeida. Seduzir. 2002.


«Pés no Chão, Cabeça no Céu» é o título da exposição antológica que abrange 35 anos de carreira de Helena Almeida no Centro Cultural de Belém. Um título que exprime bem a unidade de uma obra em que, entre o chão do atelier e o azul do céu, tudo passa pelo corpo de Helena Almeida. O trabalho mais antigo, Tela Rosa para Vestir (1969), uma foto da autora vestida com uma pintura, funciona como antecipação de uma trajectória.

No final dos anos 60, Helena Almeida praticou uma pintura que problematizava os elementos materiais e conceptuais constituintes da definição de pintura. Manchas que se desviavam dos limites da tela. Telas que se soltavam da grade que deveria agarrá-las. No início dos anos 70, abandona as concepções tradicionais de pintura e inicia um original conjunto de práticas que ainda hoje continua a desenvolver e que têm como ponto de partida o seu próprio corpo. Tudo começa «Dentro de mim», como diz o título de uma série de trabalhos de 2001. «Dentro de mim» não na acepção psicológica de uma subjectividade que se exprime, mas na acepção performática de uma matéria física (o corpo) que se apresenta.

Helena Almeida, elegendo como «media» a fotografia, cria sucessivas séries de fotografias, a preto e branco, de si própria. As fotos registam momentos de acções, que são as de se deslocar, pintar ou desenhar no espaço do atelier. Não se trata de pintar ou desenhar no sentido tradicional, mas de realizar acções em que o movimento do corpo (a performance) transforma o corpo em pintura ou desenho.

Em vários trabalhos (por exemplo, das séries «Pintura Habitada» e «Desenho Habitado», de 1975) vemos a artista fazendo o gesto de pintar ou desenhar tendo na mão um pincel ou um lápis dos quais saem manchas de tinta azul ou um fio negro que têm uma presença física, real, sobre ou saindo da superfície da fotografia. A apresentação de um vídeo e de uma gravação sonora realizados em paralelo à criação da série «Sente-me, Ouve-me, Vê-me» (1978/79) ajuda-nos a compreender a dimensão performática do trabalho que dá origem às fotos.

A dinâmica transdisciplinar que anima estas obras leva não só ao abandono das práticas tradicionais das disciplinas consagradas como a uma progressiva tomada de consciência da necessidade de passar de umas para as outras como forma de compreender e ultrapassar os respectivos limites. A necessidade de interrogar os limites da pintura ou do desenho implica uma dimensão performativa que, sendo inicialmente servida pela fotografia, acaba por acarretar uma valorização das relações com o espaço, a qual, por sua vez, impondo o confronto com problema específicos da escultura, se resolve no domínio da chamada «instalação».

Na série «Dentro de mim», através da acoplagem de espelhos a diferentes parte do corpo, este abre-se para deixar entrar o espaço, a luz e tudo o que o rodeia. O movimento do corpo no atelier refaz o espaço que o rodeia, e refaz-se a si próprio, enquanto corpo, através da absorção desse mesmo espaço. O modo como a autora «instala» o seu corpo no atelier modifica o que seria a nossa percepção normal do espaço, gerando um efeito de «instalação».

Ao longo de mais de 30 anos de trabalho, Helena Almeida vem explorando questões como estas: como é que o corpo e o movimento de um corpo – o da artista – faz pintura ou faz desenho?, como é que durante o processo é o próprio corpo que se torna pintura e desenho?, e, depois de experimentadas várias formas de interacção (absorção, penetração, ocultação, habitação) entre o corpo e as obras de arte que dele decorrem, o que é que fica para a arte que não seja já apenas a marca da travessia de um corpo? A resposta a esta última pergunta talvez esteja no título de uma série recente: «Seduzir» (2000/2002). Nesta série, composta por fotografias e um vídeo, assistimos a uma encenação peculiar de algumas poses, que podemos interpretar como um comentário aos estereótipos da noção de «sedução feminina». Mas o efeito mais perturbante resulta de a artista nos confrontar com a presença do seu corpo de um modo que nos obriga a tomar consciência do lugar e dos limites da acção e do poder do nosso próprio corpo, enquanto observadores.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 29 de Maio 2004, p. 40.



QUEM SOU EU?



Matthew Barney. De Lama Lamina. Carnaval de Salvador, Bahia, 2004.


Já uma vez expliquei, neste jornal, que no Brasil, e na Bahia em particular, me permitia uma suspensão da distancia analítica e prescindia mesmo dos devaneios intelectuais inerentes à observação sociológica. E, no entanto, na noite do sábado de Carnaval, estando sentado e ensonado no Campo Grande, em Salvador, a fazer horas para apanhar o primeiro «ferry» para Itaparica, senti o súbito impacto de uma questão que, como se costuma dizer, não deixa ninguém indiferente.

«Quem sou eu? Quem sou eu?»

Encaminhei-me para a fonte da voz e constatei que era acompanhado por alguns milhares de pessoas que se moviam na mesma direcção, embora, é certo, de uma forma bem mais ritmada e colorida do que eu.

A resposta à mãe de todas as perguntas estava perto, mas, para o efeito deste texto, vou deixá-la para o final.

A principal razão que me levou este ano ao Carnaval de Salvador foi a anunciada presença dos desfiles, a convite do Projecto Afro, de um cortejo dirigido pelo artista plástico Mathew Barney e o músico Arto Lindsay, duas figuras famosas da cena artística americana. 

Aguardei com expectativa a ocasião de avaliar se o pequeno mundo da arte contemporânea com sede nova-iorquina teria capacidade de deixar uma marca no contexto daquela que é, provavelmente, uma das maiores manifestações culturais populares de massas à face da Terra.

Barney é um dos artistas mais indicados para a tentativa. A sua obra, em que se destaca o ciclo de cinco filmes Cremaster (1994/2003), pode ser vista como uma exploração dos limites do exercício da actividade performativa dos corpos, considerados como objecto de um processo de metamorfose infinita. O ser vivo funde-se com o artefacto, o corpo acopla-se ao objecto, a acção transmuta-se em escultura.

O trabalho de Barney é também uma deriva em busca de elementos rituais, com os quais dá forma artística a uma mitologia individual megalómana.

O trabalho de Barney dissolve as noções tradicionais de escultura e cinema em favor de uma abordagem transdisciplinar em que a performance e o seu registo têm um peso cada vez maior. O Carnaval parece vir a propósito.

Como tema geral, perceptível no título «De Lama Lamina» foi escolhido o tópico politicamente correcto mais previsível: a ecologia, a desflorestação. Os habituais carros carnavalescos foram substituídos por tractores e veículos de mineração, um deles dotado de uma perfuradora. O tom geral era lamacento, com ausência das cores e brilhos que o Carnaval costuma inspirar. O traje desenhado para os participantes no desfile consistia num véu franjado, um «top» e uma pequena saia, brancos e esfarrapados, de inspiração tribal ou tarzanesca.

O principal elemento do desfile era um fragmento de árvore amputada do qual sobressaíam uns cotos brancos, ao estilo habitual de Barney, no meio dos quais fazia acrobacias uma mulher que sugeria uma mistura de Jane e Caliban.

Muitos esperavam uma exibição da espectacularidade neobarroca característica de algumas obras de Barney. Mas a opção foi a oposta. Não sei se o objectivo visado, ao trazer uma pequena lição artística americana de ecologia ao Carnaval de Salvador, era gerar um anticlímax, mas foi esse o efeito obtido. A coreografia era quase inexistente, e a música de Arto Lindsay soou anémica no meio da imensa energia do farol da Barra. O público reagiu com indiferença, como se fosse um intervalo, e assim foi. No ar continuaram a vibrar os ecos da timbalada e Carlinhos Brown.

Espero que o génio de Barney, que passou vários dias a fazer filmagens em volta do carro, lhe permita transformar numa obra-prima (um filme?) aquilo que não aconteceu nas ruas de Salvador.

Pequena caricatura nova-iorquina, Barbara Gladstone, galerista de Barney, faz-se fotografar com Björk, mulher de Barney, no espaço VIP do camarote da «Vogue».

Está na altura de voltar à questão inicial:
«Quem sou eu?»

A resposta é dada pelo cantor do cortejo africano Ilê Oyá e é qualquer coisa como isto:
«Um crioulo bonito que nem eu.»

Uma resposta que, na sua simplicidade aparentemente tautológica, resolve vários problemas relacionados com as noções de identidade e comunidade.

Todos somos crioulos, todos somos iguais, porque somos igualmente diferentes. A reivindicação de uma combinação particular no âmbito de uma infinita variedade de tons é o fundamento de uma auto-estima de natureza estética («bonito») que faz desaparecer a contradição entre a pertença a uma comunidade global e a singularidade individual («que nem eu»). Ou seja: eu ou você no meio da multidão do llê.

Esperemos que Matthew Barney tenha aprendido a lição da Bahia.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 17 de Abril 2004, p. 30-31

GENTIS CARIOCAS



Galeria A Gentil Carioca

Na tarde do passado dia 22 de Setembro passei pela Gentil Carioca para a abertura da mostra de Marssares. Um jovem artista que compõe peças musicais com base em percussões electrónicas e depois constrói caixas de som, algumas de grandes dimensões que se transformam em esculturas autónomas. Um grande objecto, como um cilindro irregular deitado, convida-nos a nele entrarmos e, dentro dele, sentados, seguirmos os ritmos do autor. Um pequeno objecto, em forma de binóculos, é-nos proposto como caixa de som para ser usado em ligação com o computador pessoal. Um ambiente festivo, a meio caminho entre a festa de rua e a sala de estar, entre a discoteca e a sala de exposição, é exemplo certo da maneira de ser da galeria da Gentil Carioca.

«Carioca» é a designação popular para os habitantes do Rio de Janeiro e um adjectivo frequentemente associado a manifestações consagradas da cultura popular brasileira, designadamente o Carnaval e formas musicais específicas, como o samba. Mas a palavra «carioca», sobretudo se lhe associamos a palavra «gentil», assinala também uma maneira de estar que se caracteriza por uma forma de convívio aberto, sensual e prazenteiro. A beleza do Rio de Janeiro, uma combinação única entre a sensação de férias eternas proporcionada pela omnipresença da praia e a forte intensidade da vida urbana, é por vezes reduzida a um estereótipo quase caricatural mas não deixa por isso de corresponder a uma forma específica de interacção social que todos os visitantes podem experimentar.

É este tipo de experiência social e cultural aberta e integradora que preside ao projecto desta galeria inaugurada em Setembro de 2003 numa das zonas mais típicas e populares da cidade. Uma zona de pequeno comércio tradicional, originalmente árabe e hoje com forte presença chinesa. Comerciantes e compradores misturam-se à porta de uma infinidade de pequenas lojas e bares distribuídos por 10 ruas paralelas e 5 transversais em que se encontram toda a espécie de artigos, incluindo muitos materiais utilizados por artistas como, por exemplo, Ernesto Neto que tem o seu ateliê nesta zona e, com Laura Lima e Márcio Botner, constitui o grupo fundador da galeria.

O espaço físico da galeria ajuda a cumprir os seus desígnios de abertura ao exterior e ao ambiente das ruas a envolvem. Às duas salas mais convencionais junta-se uma sala para a qual se desce através de uma pequena escada como a das piscinas e que tem dois grandes janelões abertos para receber os cheiros e os ruídos da rua.

A exposição de Jarbas Lopes que visitei em Março deste ano, e é o tema central desta crónica, é um exemplo perfeito do espírito da galeria. Sob o título «Pintura em Família, com desenhos e ciranda da Tia Judith», o artista juntou aos seus próprios desenhos, um conjunto de desenhos da sua Tia Judith, de 82 anos, realizados ao longo de inúmeros serões em família e aqui apresentados, pendurados num varal, na sala das traseiras com o chão coberto por esteiras para reforçar a atmosfera familiar. Por sua vez, o já referido espaço da «piscina» foi deixado livre para os visitantes poderem fazer desenhos na parede, que acabam por completar o significado da exposição, transformando-a numa real expressão de um trabalho de convivência e colaboração que se alarga do espaço da família para o espaço da galeria e do bairro circundante.

Na festa de inauguração que, de acordo com o que é hábito na galeria, se transformou numa festa popular que se prolongou pela noite fora, toda a família do artista se reuniu para receber os visitantes e cantar Cirandas numa roda alimentada por caldo de mocotó e cachaça, bebidas e comidas populares tradicionais.

Os desenhos da Tia Judith, na melhor tradição «naïf», representam flores e motivos vegetais com um assinalável grau de estilização. Os desenhos de Jarbas Lopes, um artista nascido no Rio de Janeiro, em 1964, começam por nos seduzir pela sua simplicidade. São pequenos formatos (30x20cm), desenhados a esferográfica sobre papel, em que a marca persistente do riscar deixar sentir a intimidade da presença física da própria mão. Não estamos, no entanto, perante esboços elementares, frutos de uma mera intuição espontânea. O trabalho de composição, dividindo o espaço da folha em diferentes espaços de diferentes dimensões e procurando os ritmos adequados ao confronto desses espaços são a prova de uma afinada consciência plástica. O mesmo se pode dizer do uso das cores, apesar do leque limitado permitido pelo uso da esferográfica, e da forma como algumas matrizes abstractas se conjugam com referências figurativas e com a inclusão de palavras. Em cada desenho, a procura de um padrão de equilíbrio harmonioso é perturbada e animada pela intrusão das marcas escritas ou figuradas do mundo animal e urbano que sempre nos espreita, sobretudo numa cidade tão viva e luxuriante como o Rio de Janeiro.

Uma composição abstracta confunde-se com as formas dos olhos de um animal. Uma bicicleta recorta-se contra as árvores e o Sol ao fundo, com um gira-discos no rodapé. Nos três rectângulos de uma composição «à maneira de Rothko» lemos as mais singelas saudações: «Bom Dia», «Boa Tarde», «Boa Noite».

A vocação comunitária de A Gentil Carioca aparece-nos assim justamente servida por uma exposição com uma sensibilidade humilde e «familiar» quase comovente.

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 2 de Outubro 2004, p. 46

DE VALENTINO A BRUCE NewMan



Rudolph Valentino. Valentino como Young Rajah, 1922.

Bruce Nauman, Art Make-up, 1967-68.

Art Make up (1967-68, cor, sem som) é o título comum a quadro filmes de 10 minutos cada em que Bruce Nauman vai sucessivamente cobrindo o rosto, o tronco e os braços com maquilhagem de cor branca, rosa, verde e negra. As obras podem ser vistas no Museu de Serralves, em excelentes condições de projecção, integradas na notável exposição «Behind the Facts. Interfunktionen 1968-1975». Uma obra complementar relevante, não mostrada em Serralves, é Flesh to White to Black to Flesh (1968, 51 min., preto e branco, som).

Arte e «make-up» servem de tópicos para uma especulação sobre o modo como, entre as modas e as artes, ao longo do último século se foram transformando os modos de produzir imagens dos rostos masculinos e sobre os efeitos mais recentes dessa transformação no que diz respeito aos modos de construir as identidades masculinas. Uma divagação, mesmo caprichosa e fragmentária, deve começar pelo princípio e no princípio está o princípio do cinema e, se queremos falar da reinvenção do rosto masculino, está aquele que foi o primeiro e até hoje um dos melhores ícones de beleza masculina da história do cinema: Rudolph Valentino.

Cinco semanas antes da sua morte, o «Chicago Tribune» (18/7/1926) publicava o mais violento e insidioso de uma série de ataques que o perseguiram ao longo da sua carreira. A propósito de virilidade, questionava-se a natureza e as proporções das componentes estéticas e sexuais geradoras do nunca visto carisma perante o qual sucumbiam em massa audiências femininas e não só. «Pink Powder Puff» (designação que julgo remeter para o uso de pó-de-arroz cor-de-rosa) era o insulto mais forte do editorial, que enfureceu Valentino e o levou a desafiar o anónimo articulista para um combate, enquanto se defendia enaltecendo as suas origens italianas.

Sabe-se como o cinema, a luz do cinema e o «close-up» (o grande plano), em particular, modificaram a moldura dos rostos humanos e, portanto, a maneira de os ver e imaginar, com consequências imensas sobre as noções de beleza e os mecanismos do desejo e imaginação sexual. O assunto tem sido muito estudado, sobretudo no que diz respeito à representação da mulher. Para as variantes masculinas é preciso começar com Valentino.

Nascido em Itália no mesmo ano em que o cinema, em 1895, tornou-se do ponto de vista estético e simbólico, tudo aquilo que o homem e herói americano de então não era, não queria nem podia ser. Para além das especulações sexuais, em torno de Valentino jogava-se, com o racismo em pano de fundo, questões étnicas decisivas. Por exemplo, para desempenhar o papel de «sheik» árabe no filme que o tornou uma «star» (The Sheik, 1921) pretendia-se reforçar, na imagem de Valentino, a componente exótica, oriental, misteriosa, isto é, não ocidental. No entanto, o problema de cor da pele foi abordado com os máximos cuidados. O «sheik» deveria ser mais escuro, sobretudo para poder contrastar com a imaculada brancura das heroínas, mas não podia ser realmente mais escuro, porque se receava que as audiências não tolerassem um herói menos branco. A solução foi aplicar «make-up» branco na cara para ninguém se assustar, sublinhar a profundidade dos olhos com «eye-liner» e «olheiras» e guardar a maquilhagem mais escura apenas para as mãos nas cenas de mãos dadas com a heroína. O rosto, mesmo se de um «sheik» árabe italiano, tinha de ser cem por cento branco.

Art Make up é uma das obras-primas de Bruce Nauman. Bem sei que se pode dizer o mesmo de dezenas de obras dele, porque se trata de um dos mais importantes artistas vivos e de um dos mais influentes entre os jovens artistas que ao longo dos últimos 15 anos têm renovado a tradição das vanguardas. Diz-se até que nas escolas de arte mais em voga cada aluno arranca uma página de um catálogo de Nauman no início do curso e constrói toda a sua carreira sobre esse achado.

O nome de Nauman, ainda hoje em plena actividade, está associado às experiências das vanguardas americanas que no final dos anos 60 alargaram a noção de arte até aos limites mais extremos em termos de radicalização conceptual e de diversificação de técnicas e materiais. Neste contexto, as inovações no âmbito das artes plásticas são indissociáveis de experiências contemporâneas no domínio da literatura (Beckett, Robbe-Grillet), da música (Cage, Reich), da dança (Cunningham, Monk), ou do cinema (Warhol).

«A diversidade técnica e formal das obras é extremamente grande em Bruce Nauman. Trabalha com meios como a performance, a fotografia, o filme, o holograma, o vídeo, o desenho, a gravura, a escultura em madeira, metal, feltro, gesso, borracha ou fibra de vidro e utiliza por vezes tubos de néon. A maneira como a obra é transmitida ao público não é menos rica: o espectador é interpretado por uma impressão visual, palavras, ideias, gestos, demonstrações cujo objecto é o corpo, situações espaciais criadas pelo artista que suscitam um efeito particular no espectador, que se transforma então em utilizador do espaço» (Franz Meyer, Bruce Nauman – Sculptures et Installations – 1985-1990, catálogo Musée Cantonal des Beaux-Arts, Lausanne, ed. Ludion, Bruxelles, 1991, pág. 11).

A consciência de si próprio, experimentada e exercitada através do corpo, é um bom ponto de partida. Embora a formulação pareça mais adequada ao campo da dança, Nauman trabalhou-a através de performances, vídeos e filmes que, na realidade, não desmerecem a comparação com projectos coreográficos. Art Make Up é um exemplo maior de utilização do corpo como material de base do trabalho artístico. É a demonstração literal de uma atitude conceptual segundo a qual a obra de arte é aquilo que o (corpo do) artista faz. A obra, sem deixar de ter existência autónoma (os filmes), é menos o resultado do que o (registo do) processo de fazer. 

O que dá a Art Make Up um suplemento de fascínio é o facto de aquilo que o artista aqui faz ser refazer a imagem de si próprio: é uma espécie de auto-retrato em movimento do artista a fazer-se passar por artista. Ou seja: a apresentar-se como e, portanto, a ser artista.

O artista assume-se e mostra-se, do modo mais simples e radical, como autor de si mesmo, ou actor da sua própria obra, ou suporte da sua pintura, ou ainda, se quisermos, como manequim de uma autoprodução de moda.

O artista apresenta-se a si próprio como obra de arte e artista. O modo como o faz é através do disfarce e da maquilhagem, com requintes de sensualidade narcísica, por vezes quase onanista.

Nauman (nunca olha para o espectador deduzindo-se que olha para um espelho) abre vastas conexões entre as artes plásticas e as artes de representação (performance, em geral, teatro e cinema), mas também entre a definição de artista e a questão ética do processo de construção da identidade individual através de um trabalho criativo de autodefinição. O que está em causa é a liberdade da auto-imaginação: chave e segredo da ideia de liberdade. Há sempre uma moral.

Em 1968, o artista Bruce Nauman pinta-se e repinta-se, entre o preto e o branco, com todas as cores do arco-íris, para além de todos os constrangimentos que afligiram Rudolph Valentino.

No discurso que assinalou uma doação de obras da sua colecção a um grande museu americano, uma coleccionadora terá sublinhado o grande apreço que lhe mereciam as obras históricas de «Brunce Newman».
Podemos pensar que, nas memórias da famosa coleccionadora, a aquisição das primeiras obras de Nauman se confundia com o inesquecível rosto juvenil de Paul Newman – hoje disponível, numa versão mais madura, nas embalagens de uma vasta linha de produtos alimentares. Nem todos podem ter o sublime destino de Valentino, que, com o perfil de «sheik», adornou, durante décadas, uma das mais populares marcas de preservativos dos Estados Unidos. 

Mas também podemos considerar que o que a expressão «Brunce NewMan» põe em jogo é a emergência de um «newman», que hoje se banaliza com a noção de «metrossexual», ou as tatuagens de Beckham, mas que só começou a respirar em liberdade nas atmosferas de 60, graças a obras como as de Nauman e Warhol. Um novo homem, que nasceu, ao mesmo tempo que a nova mulher, em Hollywood, nos anos 20, com Rudolph Valentino – «the one and only».

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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 28 de Agosto 2004, p. 30-31