Still from They died with their boots on, Raoul Walsh, 1941 |
Soldados,
Soldadinhos de chumbo, de carne, de sangue. Quando era criança, quando ouvia as
vozes de comando, corria para a janela para ver passar os soldados: as fardas, as
marchas, as ladainhas, os gritos, os rostos pequenos.
O que
são os soldados e o fascínio dos soldados?
São os
rapazes, os filhos já homens dos homens, os anos mais vivos dos corpos dos
homens, olhos infinitos. Tudo isso organizado em função do ponto de vista mais
oposto e mais extremo: o ponto de vista da morte. Isso mesmo, a morte, brutal,
metálica, sangrenta, final: o fim, a morte.
Num
soldado olhamos para o princípio, a plenitude da presença – a beleza – de um
princípio. Visto a partir do ponto de vista do fim.
Ou
então podemos inverter a formulação e dizer:
Num
soldado olhamos lá para o fundo do fim, a morte e o extermínio, com os olhos
joviais da causa da vitória do ideal.
E
depois? Ou seja, agora?
Depois
da esperança e do extermínio, depois da esperança exterminada e do extermínio
da esperança, o que é que os soldados nos oferecem ainda?
Não
falo dos soldados reais, os novos soldados americanos, que apenas nos dão a
segurança e o futuro, porque eles, eles “tordos morreram calçados” (They died with their boots on, Raoul
Walsh, 1941). Falo dos soldados desenhados por Alexandre Conefrey na sua série
de trabalhos O fim do Sacro Império /
Descalça vai para a fonte (1998).
Os
soldados das fardas, das estampas e dos aromas. Os soldados da velha Europa,
velhíssimos, europeus e imperiais, os que marcharam durante um século inteiro,
um século que levou quase cem anos a chegar ao fim. Os que marcharam descalços,
os pés à flor do sangue, sobre os estafados campo da Europa. Iam formosos e não
seguros. Fizeram o fim sem saber o que faziam. Deixaram uma nostalgia inviável.
Cheia de crimes e de nada.
Nestes
soldados perdidos encontramos hoje a coincidência da juventude com a morte, do
princípio com o fim, da utopia com o terror. O contorno de uma fascinante
história podre fixado num olhar eternamente espantado.
Sobram
as fardas, as estampas e as posturas.
No
grande cemitério europeu floresceram jarros podres e listas, intermináveis
listas, de vítimas.
“Nous sommes tous de juifs allemands”. A
paisagem da história. O jardim do ideal, lá onde a ordem se transformou em
crime.
O
olhar tem de ganhar altura, voar sobre os campos massacrados. Temos de ir mais
para trás. Restaurar monumentos e consagrá-los ao amor de uma ordem e de uma
paz anterior aos crimes da razão absoluta, totalitária. Desenhar uma aliança.
Onde é
que se pode procurar? O que é que se consegue encontrar?
Encontramos
as páginas dos velhos livros, as coroas de glórias de heróis mais sábios, os
ornamentos da civilidades, os desenhos das letras de alfabetos mais nobres.
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Alexandre Melo, “Formosos e não
seguros”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº23,
Lisboa, Abril 1999