ARTFORUM
Maio/May 2016
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Uma obra fora do comum
atrai e concentra a nossa atenção. Na parede mais extensa da galeria, um painel
(de 3,5 metros de altura por 8 de largura) composto por cerca de 2 500
torradas. Fatias de “pão de forma” justapostas sobre as quais, uma a uma, foram
gravadas (numa torradeira adaptada que permite “gravar desenhos”, de modo mais
ou menos intenso, criando uma gradação de tons desde o amarelo pálido até ao
negro) uma seleção de imagens que compõem um padrão irregular. As imagens são
duas representações de uma pessoa (rosto e busto) e alguns algarismos. Os
algarismos são o 0, o 1 e o 7 (os mais frequentes) e ainda o 5 e o 6. A pessoa
é José Eduardo dos Santos, Presidente de Angola.
A obra chama-se “Pão Nosso
de Cada Dia” (2016) e o título reforça a cadeia de associações implícitas.
Poucas coisas serão mais comuns, universais e quotidianas que o pão. O pão
invoca ao mesmo tempo a intimidade doméstica e familiar, e a mais fundamental
luta política e social (contra a fome, “pelo pão”); para além das potenciais
significações religiosas num contexto cristão ( a transformação do pão em corpo
de Cristo na hóstia consagrada ). A expressão “pão nosso de cada dia” remete
também para um sentimento de exaustão em relação à rotina de um quotidiano que
parece repetir-se infindavelmente. Uma espécie de cansaço.
A omnipresença do retrato
é fácil de compreender: José Eduardo dos Santos é Presidente desde 1979 : o
número 1. O 0 remete para a expressão corrente “és um zero à esquerda” (ou
seja, “não vales nada”) que o artista , segundo nos disse, costumava ouvir do
seu pai. Quanto aos outros algarismos podemos admitir que o 7 seja o número da
sorte e o 8 represente o infinito. Significativa poderá ser ainda a ausência de
2, 3 e 4 e a discreta presença de 5 e 6. O 1 e o 0 dominam a paisagem.
Yonamine nasceu em Angola
(em 1975, ano da independência em relação ao domínio colonial português ao qual
se seguiu uma guerra civil que durou até 2002) e já viveu no Zaire, Portugal,
Brasil, Reino Unido e Alemanha. Segundo a folha de sala, “define-se como um
artista luso-congolês“; vicissitudes do “multiculturalismo”.
Na obra “Pão nosso de cada
Dia” encontramos, desde logo de modo exemplar, uma das principais energias
motrizes na obra de Yonamine. A capacidade de inscrição, nos lugares e obras de
arte, da experiência do quotidiano, na multiplicidade das suas formas.
Vejamos a experiência da
rua. As telas de Yonamine combinam, de modo desenvolto e imaginativo, uma
grande variedade de técnicas (silkscreen, graffiti, colagem, descolagem). Evocam
a “pop art” e a “street art” mas, sobretudo, convocam para o espaço da galeria
a experiência visual das paredes e muros das zonas periféricas (as chamadas
zonas problemáticas) das grandes cidades. Logotipos de marcas comerciais (muitas
delas marcas de detergentes, como Omo, Neo Blanc, Cif, remetendo para as
tensões entre limpo e sujo, preto e branco) convivem com imagens de figuras
reconhecíveis (Obama ou o cartoon do “Charlie Hebdo”, por exemplo) ou
fragmentos de um auto-retrato fotográfico, entre outras referencias pessoais.
A composição, por acumulação
de camadas, remete para os graffitis, com uma sucessiva acumulação e rasura de
mensagens, e para a colagem e descolagem de cartazes urbanos, cada vez mais
rasgados. Estão em causa tensões entre expressão e censura, construção e
destruição. Como num muro ou numa parede.
Irrupção ainda mais direta
do quotidiano, um graffiti diretamente aplicado na parede evoca a memória de um
amigo recentemente falecido.
Mas não se trata apenas de
ver, trata-se também de ouvir. Três megafones dispersos pela galeria, permitem
ouvir reconstituições de sons dos mercados populares de Luanda, capital de
Angola.
A importância concedida às
palavras adquire uma maior evidencia e autonomia no vídeo “M de M“ (2013/2016,
p/b, som, 10’ 54’’). Uma seleção de cerca de 200 palavras começadas por M que
se sucedem em loop segundo um ritmo
marcado pelo tictac de um relógio e a recorrência do separador “M de “. O que é
assinalável numa obra com uma tão depurada economia formal é que o risco de uma
sensação de arbitrariedade rapidamente se dissipa. Torna-se inevitável
começarmos a encontrar uma razão de ser para a presença daquelas palavras que,
à medida que se sucedem, parecem começar a contar uma história cultural (o
convívio entre palavras africanas e palavras oriundas de diferentes práticas da
língua portuguesa, por exemplo a gíria de Luanda), uma história política (associada
à história do colonialismo e suas sequelas) e uma história pessoal (memórias,
mais ou menos longínquas, nossas ou do artista).
As “histórias” de Yonamine
não têm uma conclusão (“uma moral da história“) mas talvez nos conduzam a uma
reflexão, designadamente sobre os impactos culturais do colonialismo na nossa
atual experiência cultural quotidiana. Nem sempre é fácil distinguir entre o
bem e o mal. Talvez por isso Yonamine chamou à exposição “Não Sou Santo“. Importa reconhecer que é difícil, nos tempos
que correm, encontrar um Santo.
Texto publicado na revista
mensal Artforum, na edição de Maio de 2016, por ocasião da exposição “Ain’t no
Saint”, Yonamine, na Galeria Cristina Guerra, Lisboa, 2016.