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Alberto Carneiro. As imagens do corpo e da paisagem. Vista da exposição: Os caminhos da água e do corpo sobre a terra. Porta33. |
Muitas das
minhas mais gratificantes experiências de relação com a paisagem natural tiveram
lugar na ilha da Madeira. Recordo dezenas de passeios maravilhosos, em todas as
acepções da palavra maravilhosos, em que, segundo a orientação de sábios amigos,
fui assistindo ao desdobramento de surpreendentes visões que se substituíam
umas às outras numa deslumbrante sequência de cores, cortes, perspectivas,
sombras, cheiros, brilhos, silêncios.
Recordo uma
inesquecível ascensão em que, numa mesma tarde, ao longo da subida, foram
variando a luz, a imagem do céu e das nuvens, o recorte da paisagem lá ao
fundo. Num momento, o sol brilha como numa manhã de Verão. Um pouco mais acima
o céu transforma-se num mar de espuma. Depois, cai uma noite profunda. Logo a seguir
é o sol que volta a nascer rasgando escuros embrulhos de nuvens. Continuamos a
subir, o ar fica mais frio e a luz começa a ganhar uma intensidade própria que
já quase não deixar ver nada. É apenas luz. As nuvens dissolvem-se num céu que
se estende como um lençol imenso cujo limite não se pode já dizer se é a orla
de uma outra longínqua montanha ou um mar ou talvez um outro céu.
Foi também na
Madeira que tiveram lugar as minhas primeiras longas conversas com Alberto
Carneiro, conversas sem nenhum objectivo concreto ou intenção pragmática,
encaminhas pelas variações da luz, a cadência das lapas, dos peixes e dos
vinhos, a passagem das horas. Conversas como algumas conversas às vezes sabem
ser e sabem bem. Às vezes, as circunstâncias põem-se de acordo para gerar
cruzamentos propícios e gostaria que fosse esse o caso deste texto.
O trabalho de
Alberto Carneiro é o resultado de uma experiência pessoal de relacionamento de
um artista com a natureza, nos termos em que ele a vive e entende, enquanto
geradora de uma reflexão mais geral e de um processo de produção
especificamente artístico, estético, se quiserem, de que acaba por resultar
aquilo que nos é proposto e que nos habituámos a designar como sendo obras de
arte. A mediação conceptual e estética faz com que as obras possam atingir um
nível de generalidade suficiente para nos interpelarem, a cada um de nós, e a
mim, em particular, no caso deste texto, de um modo também pessoal. Por isso me
sinto autorizado a introduzir algumas deambulações preambulares que dão conta
das minhas próprias experiências e questionamentos pessoais para os quais o
trabalho de Alberto Carneiro tem constituído um interlocutor privilegiado, ou
talvez melhor, na ocorrência, um inspirados companheiro de viagem.
Muitas vezes,
durante os meus passeios, quando sou levado a deter-me perante uma visão e um
sentimento que se me afiguram excepcionais, paro, tento abrir os olhos um pouco
mais e, como quem respira fundo, enchendo os pulmões até ao limite da sua
capacidade, pergunto-me o que é que será possível fazer para preservar aquilo,
aquele momento, aquela consciência entre uma visão e um sentimento.
Uma
experiência deste tipo, pode ter lugar em diferentes circunstâncias.
Por exemplo,
numa grande cidade, no meio dos grandes volumes dos prédios, das linhas
desenhadas pelos automóveis e da agitação de uma multidão de transeuntes. Mas
ali, no meio da cidade, nem tudo parece ter de estar perdido. Há uma óbvia
escala humana e é fácil admitir que a experiência poderá ser repetida. Estamos,
apesar de tudo, perante um mundo de coisas que julgamos controlar.
Perante o
mar, para dar um outro exemplo, simétrico, estamos no outro extremo do leque
das possibilidades emocionais. O mar é, em si, uma forma infinita da liberdade
e o poder do mar, por si só, pela grandeza da sua presença, transmite-se numa
completude sem falhas a todos aqueles que o amam.
Mas não foi a
experiência do mar nem das cidades que me conduziram ao diálogo com a obra de
Alberto Carneiro e porque é dele que aqui se trata vou circunscrever a análise
da referida experiência espacial de excepção aos domínios do reino vegetal da
natureza.
Aquilo a que
chamo o reino vegetal da natureza é um mundo de terras, árvores e ervas, verdes
e castanhos, entre o chão e o céu, atravessado por traços de água, às vezes
visíveis, audíveis, outras vezes subterrâneos.
Para mim este
é um território de ameaças, mistérios e compilações em que tudo se afigura mais
complexo e imponderável. Nada é livre e infinito como o mar porque tudo está
preso a raízes e aos inexoráveis ciclos do tempo vital. Tudo parece imóvel e
fechado sobre si próprio mas rapidamente descobrimos que as coisas se mexem por
dentro de si mesmas, à sua maneira, e que, afinal, tudo é irrepetível e
incontrolável porque sujeito às inclinações e caprichos do vento, da luz, das
águas.
Uma cidade
constrói-se ou destrói-se, o mar não acaba nunca, mas uma montanha, um rio, uma
árvore, são muito mais complicados. Porque são descendentes da imortalidade e
no entanto, não são eternos. Isto pode causar uma espécie de paradoxal
claustrofobia cujas imagens mais comuns correspondem talvez às sensações de
estarmos fechados dentro de uma árvore ou bloqueados por uma montanha
intransponível. Mas, ao mesmo tempo, basta levantar os olhos para o céu ou
encostar à terra o silêncio dos olhos fechados para pressentir que por ali
passa, indesmentível, uma profunda promessa de paz.
O nó de
sensações contraditórias que me aparece associado à experiência da natureza
vegetal torna particularmente gratificante, quando levado a meditar sobre estas
matérias, poder contar com a companhia de um viandante esclarecido como é
Alberto Carneiro.
O trabalho Os caminhos da água e do corpo sobre a terra
(2002-2003), concebido propositadamente para as salas do 1º e 2º andares da
Porta 33 no Funchal tem como ponto de partida uma série de passeios pelas
montanhas da Madeira e uma particular atenção prestada às levadas, uma forma
tradicional de encaminhamento da água que é uma das mais características marcas
da paisagem rural da ilha.
“O título Os
caminhos da água e do corpo sobre a terra é um título abstracto que não
remete para a Madeira objectivamente, pode remeter para qualquer sítio. Mas de
facto este trabalho remete particularmente para a água das levadas e acima de
tudo para a situação espacial que as levadas criam. É uma situação complexa na
medida em que o problema da circulação da água é fundamental relativamente à
localização do corpo sobre o espaço, isto é, relativamente à topografia da ilha
e relativamente à necessidade da água como um elemento vital. Para mim as
questões de vitalidade dos elementos são fundamentais e aqui jogou exactamente
esse lado. Há também o modo como o espaço vai sendo organizado ao longo das
levadas que tem a ver com o modo como a natureza se dispõe, quer relativamente
a uma pequena intervenção do homem, que é mínima apesar de tudo, quer
relativamente, digamos à própria situação do terreno e portanto ao modo como a
natureza se vai organizando, depois, de uma maneira plástica, de uma maneira,
diríamos, formal, no sentido da plasticidade, não no sentido da forma
propriamente dita.”
A obra, que
se distribuiu por três salas, é uma das mais completas e complexas que Alberto
Carneiro realizou nos últimos anos e, na medida em que pode ser vista como uma
obra de síntese em relação a muitas das suas linhas de pesquisa, constitui uma
excelente porta de entrada para uma análise de conjunto.
A principal
linha condutora da leitura desta obra é, literalmente, uma linha. O autor
chama-lhe “linha do olhar: do corpo sobre a paisagem”. Ao longo das paredes das
três salas pelas quais se distribui este trabalho o visitante é levado a
percorrer, à altura dos olhos, uma linha composta por uma sucessão de
fotografias ou desenhos que são uma reconstituição pessoal da experiência das
caminhadas do autor.
A linha
condutor da exposição é, assim, também, a linha do horizonte associada a uma
experiência que foi a do artista e que agora é proposta ao observador com um
horizonte de possibilidades. As fotografias não visam apresentar, nem
apresentam, uma reconstituição imagética realista de um trajecto na paisagem.
Não estamos perante uma atitude documental e a própria alternância entre o
registo fotográfico e o registo, muito mais imponderável, do desenho feito à
mão reforça a natureza aberta e reversível deste tipo de registo ou evocação.
Conforme
escreves Gilles Tiberghien, analisando as teorias contemporâneas da paisagem,
“para ver uma paisagem precisamos de um certo recuo, de uma distância que não é
apenas física mas também intelectual”. Ao percorrer uma paisagem, “temos a
experiência das suas dimensões em relação ao nosso olhar e à sua complexa
organização. A geografia das formas capturadas pelo nosso olhar móvel determina
o enquadramento. A vontade de se aproximar ou de se afastar, ou de produzir uma
representação da paisagem, permite-nos compreender a dialéctica corpo-horizonte
que lhe é inerente. A travessia é física tanto quanto mental; e pressupõe
técnicas de distanciação, diário de bordo, caderno de esboços, ou técnicas de
“transposição paisagística” como as que se praticam no Japão”. O mesmo autor
fala-nos de “artialização” (artialisation)
da paisagem um termo que Alain Roger (Les théories du paysage en France
(1974-1994), Seyssel, Champ Vallon, 1995) foi buscar a Montaigne e sublinha o
facto de artistas como Richard Long ou Hamish Fulton terem “devolvido (redonné) à paisagem uma realidade
mental” (in Critique, nº613-614,
Junho/Julho 1998, Paris).
Os métodos de
trabalho utilizados por Alberto Carneiro asseguram e ampliam um espaço de
distância, especificamente plástica, em relação ao que seria o registo
documental de uma viagem, para que, nessa distância e através dessa distância,
possa surgir o espaço que permite que a linha a que nos vimos referindo se
transforme, no momento actual que é agora o da visão da exposição, na linha do
horizonte do visitante. Um espaço suficientemente amplo para permitir, também,
que a experiência do olhar e da caminhada nas salas da galeria induza a adopção
do ritmo que torne possível ao observador ver para além das fotografias e
desenhos que lhe são propostos e chegar a conseguir evocar e olhar para as suas
próprias memórias de relacionamento com horizontes comparáveis aos que agora se
lhe oferecem. A altura da colocação e a dimensão e espacejamento da sucessão
das fotos e desenhos foram determinados para se adaptarem ao ritmo natural de
quem passa, olha e deixa passear o olhar: naturalmente.
Mas as
imagens propostas nas fotografias e desenhos não esgotam a oferta contida nesta
primeira linha de leitura desta obra. Duas frases, com a simplicidade complexa
que é característica da escrita do autor, dão-nos as hipotéticas chaves de
leitura da exposição. As frases são: “no horizonte do teu olhar és o ser desta
paisagem” e “em ti vida fará deste momento a tua arte”.
Procuremos
então desdobrar as hipóteses de significação que estas frases desenham.
“No horizonte
do teu olhar és o ser desta paisagem”. Quem é que diz esta frase? E a quem? É o
artista que fala para o observador, no âmbito de uma relação entre o autor e o
seu público. Neste caso, o autor declara a identidade do observador com aquilo
que vê que é simultaneamente uma obra de arte e uma paisagem. O observador é
chamado pelo artista a fazer parte da arte e da paisagem, a ser arte e
paisagem. O autor está no lugar de comando. Mas, ao mesmo tempo, a declaração
por ser lida como uma citação daquilo que, segundo o artista, lhe teria sido
dito pela própria paisagem. Neste caso, quem fala é a própria paisagem que
interpela, primeiro, o artista, e depois, convocada por este, interpela o
público. Segundo esta hipótese é a própria paisagem que comanda o processo. É
ela que, por assim dizer, põe o
artista no seu lugar e o que este faz é elaborar plasticamente o seu lugar de
modo a poder partilhá-lo com os que visitam a sua obra. O artista esteve, e
continua a estar, no essencial, no mesmo lugar que o seu público. O lugar de
quem, através do olhar sobre a paisagem é chamado, pela paisagem, a ser
paisagem.
“Em ti a vida
fará deste momento a tua arte”. Conciliando as duas hipóteses de interpretação
da frase anterior, diríamos que este “momento” é, quer o momento primeiro do
olhar do artista sobre a paisagem, quer cada um dos momentos actuais do olhar
de um observador sobre a “linha do olhar” desta obra. O que permite a
identificação entre os dois momentos é a colocação destas experiências sob a
égide de uma categoria geral e abrangente: a vida. São a presença, a
manifestação e a expressão da vida que fazem a arte, que permitem acrescentar a
um momento ou dotar um momento de um suplemento (de vida) que o desloca para o
lugar a que se chama arte. A possibilidade de ocorrência desta deslocação
dependa da capacidade de quem olha (público ou artista) para, num determinado
momento, dotar a experiência do seu olhar de uma intensidade de vida suficiente
para se identificar plenamente com o horizonte desse olhar. Nesta perspectiva,
o lugar de comando é sempre o lugar de quem olha: do lado da vida.
A experiência
desta obra, a que Alberto Carneiro gosta de chamar “envolvimento”, uma
designação que prefere a “instalação”, uma expressão hoje mais utilizada, não
se esgota nos exercícios de dedução e especulação a que até agora nos
dedicámos. O que lhes dá sentido é a riqueza e a diversidade dos elementos
físicos e materiais que completam a obra e o modo como eles se distribuem de
acordo com a estrutura dos espaços de exposição. São estes elementos palpáveis,
tangíveis, com cor, cheiro, volume, que permitem que o projecto conceptual
acima sugerido faça sentido, ou seja, posso chegar a ser pensado através da
experiência dos sentidos.
Os elementos
reunidos em cada uma das salas, segundo diferentes combinações escultóricas,
adequadas às características arquitectónicas do espaço e à sequência de visita
à exposição, são, no essencial, ramos de árvores, paus e ramos de urze, com os
quais se constroem os volumes escultóricos e arquitectónicos que encaminham os
passos do visitante.
Terra e barro
servem de suportes e são também os portadores das marcas do corpo do autor.
Jogos de vidros e espelhos, estrategicamente colocados em cada uma das salas
ajudam a redesenhar o espaço, redesenhando itinerários, e multiplicam os
possíveis jogos de olhares, através da alternância entre transparências e
reflexos em espelhos, estes últimos constituindo ainda uma importante forma de
inclusão na exposição imagem do próprio visitante.
A diversidade
dos elementos utilizados neste envolvimento escultórico e a sofisticação das
suas diferentes combinações espaciais abre caminho a uma deambulação retrospectiva
que nos conduz a algumas obras fundamentais e emblemáticas do percurso de
Alberto Carneiro, do qual se apresente uma significativa e representativa
selecção no Museu de Arte Contemporânea – Fortaleza de São Tiago, no Funchal.
“Uma das minhas preocupações é trabalhar com o
espaço que me é dado. Se a obra é concebida para o espaço onde a vou mostrar e
eu conheço previamente esse espaço, a obra, naturalmente, tem essa componente.
Essa é uma das preocupações que atravessa o meu trabalho: o espaço gera a
forma, mais do que a forma gera o espaço. Interessa-me muito mais a relação que
é estabelecida no espaço do que aquilo que se estabelece de modo intrínseco a
cada uma das formas. Nesta medida, cada exposição é para mim um acontecimento,
uma coisa nova.”
Começamos pela
última sala do último andar do Museu, que acolhe a peça mais recente, Meu corpo vegetal (2001-2002), concebida
propositadamente para este espaço.
“«A peça apareceu naturalmente em função do
espaço da sala do Museu do Funchal que eu queria ocupar. Digamos que o primeiro
dado para essa peça é a sala. Depois era o material que eu tinha disponível, na
sua maior parte material que me foi dado por Serralves, proveniente de um
castanheiro que secou. Comecei então a trabalhar em função do espaço e cheguei
ao número 7. Assentei que o número de elementos tinha de ser um múltiplo de 7 e
acabei por ficar com 49 elementos. Trabalhei com os 49 elementos todos ao mesmo
tempo sem qualquer programa. À partida ainda não havia nada, o resultado só
começou a surgir mais ou menos a meio da gestação. E não há aí habilidade
nenhuma do ponto de vista da feitura manual. A mão é capaz de não andar muito
por aí. Anda a árvore e depois a leitura que cada elemento natural me fornecia
como energia que naturalmente decorre da árvore. Sobre isso sei alguma coisa,
como é que a árvore cresce, como é que se desenvolve, que forças é que ela, a
partir do momento em que é cortada, começa a gerar de dentro para fora, como é
que ela se rompe a si mesma para responder às solicitações da mudança de
estado, a passagem de uma coisa que era viva para uma coisa que deixou de ser
viva. A seiva já não corre, passa a reagir de outro modo. Toda a estrutura da
obra, elemento a elemento, começa a surgir em função destes dados que vão sendo
jogados. Depois há referências variadíssimas, referências culturais a vários
lugares, por exemplo um barco, uma tartaruga, são referências muito claras a
uma situação espacial determinada, remetem para um jardim em Kyoto que já
visitei várias vezes e tem para mim um significado muito especial. Mas não há
nenhumas correspondências formais directas, estritas. Há a reminiscência e,
neste caso, a referência, não sendo formalmente óbvia, foi reconhecida por uma
pessoa que tinha estado comigo no jardim: "Parece-me a tartaruga e o
barquinho." — Pois é, é isso mesmo.»
Uma primeira
visão geral de Meu corpo vegetal
impressiona-nos pelo rigor da composição formal e implantação espacial que a
faz aparecer como uma obra que poderia ter sido concebida segundo princípios
matemáticos de serialidade, simetria e repetição. No entanto, quando nos
aproximamos de cada um dos 49 elementos que compõem o conjunto escultórico, o
que se afigura mais marcante é a ex- actidão sensível da modelação que parece
assentar numa cumplicidade física com a estrutura da matéria-prima, os
fragmentos do tronco de uma árvore, um castanheiro, como se a mão apenas
ajudasse a exteriorizar a pulsão escultórica implícita no modo de vida da
própria árvore.
O efeito de
comunhão que resulta do estabelecimento, às mãos do escultor, de uma aparente
cumplicidade física entre a madeira das árvores e as formas das esculturas,
como se tivesse sido a árvore a pedir a forma que a faz escultura, é uma das
marcas distintivas da prática de escultor de Alberto Carneiro e um dos mais persistentes
motivos de fascínio associados ao seu talento. É o exercício de um saber
oficinal de escultor, esclarecido pela procura de uma cumplicidade espiritual,
que nos permite compreender o trajecto que une o trabalho concreto com os
troncos de árvores a uma mais vasta conceptualização das questões da
constituição de uma identidade humana, na sua relação com a arte e a natureza.
«Eu diria que o grande tema do meu trabalho é a
árvore, a árvore no singular, como substância em si, que naturalmente habita a floresta.
A árvore como arquétipo de uma cultura e de uma civilização. Eu acho que as
identificações profundas são indispensáveis para cada criador. As pessoas só
criam a partir dessas identificações, seja com o que for. Naturalmente, as
minhas identificações decorrem da minha experiência de vida. Se eu tivesse
vivido sempre num meio urbano naturalmente as minhas identificações seriam de
outra ordem. Não tenho dúvidas nenhumas sobre isso. Inclusivamente, se eu
tivesse nascido noutra civilização ou noutra altura as minhas motivações seriam
de outra ordem. Há aqui a busca do caminho artístico, ou da realização
artística, que passa por esse processo de identificação profunda que cada um
tem de assumir no seu próprio corpo, entendido aqui o corpo globalmente. Não
estou a falar apenas do corpo físico, estou a falar essencialmente do corpo
mental e do corpo subtil. É um movimento que nós fazemos no espaço
relativamente ao tempo, são as deslocações, porque, no fundo, curiosamente, não
é o tempo que organiza o nosso espaço é o nosso espaço que organiza o nosso
tempo.»
Meu corpo vegetal, na
linha de um vasto conjunto de trabalhos realizados ao longo dos últimos vinte
anos — como por exemplo Evocações d’água
— a partir de determinadas madeiras ou determinadas árvores específicas, dá-nos
a dimensão manufactural de um trabalho de identificação, des-construção e
re-construção estética da e com a árvore concebida como arquétipo.
No outro
extremo do arco cronológico da carreira do autor encontramos O canavial: memória / metamorfose de um
corpo ausente (1968), uma peça fundamental da história da arte portuguesa
da 2.ª metade do século XX. Aqui encontramos também uma apropriação de
materiais vegetais naturais — canas — mas neste caso não se trata de um objecto
natural (um tronco ou uma árvore) que se transforma num outro objecto,
artístico, através de um trabalho de modelação escultórica.
Com O canavial estamos perante um ambiente
ou um espaço natural que, através de um trabalho de conceptualização e
deslocação metafórica, se transforma num ambiente ou espaço artístico: uma
instalação ou um envolvimento construído com a utilização de materiais
naturais.
A disposição
no espaço e a forma de organização da circulação do visitante têm aqui um papel
fundamental. O fulcro da evocação e convocação não é um objecto mas um lugar,
um estado de espírito associado a um lugar e o que ele recorda ou suscita como
campo de possibilidades sentimentais. Ao contrário da árvore, arquétipo
polarizador, o agrupamento de canas não é o acontecimento mas apenas a
pontuação que circunscreve o lugar dos acontecimentos. Os sete rituais estéticos sobre um feixe de vimes na paisagem (1975)
é um trabalho em que se assiste ao desenvolvimento desta hipótese. Quase
poderíamos dizer que um envolvimento como O
canavial é uma cenografia escultórica para uma performance que não é mais
do que a nossa presença de visitantes vivos, criaturas dotadas de olfacto e
memória.
«O canavial é na minha obra o momento da
grande revelação. Sei o momento exacto em que apareceu, a 12 de Dezembro de
1968 às 14h30 no meu quarto em Londres. Apareceu como um flash, e o título da
obra também apareceu imediatamente (O
canavial: memória / metamorfose de um corpo ausente) e tem efectivamente a
ver com a minha primeira experiência sexual, isto é, com a minha primeira noção
de sexualidade que decorre de uma brincadeira de crianças. Foi uma espécie de
acordar, uma coisa que se impôs imediatamente, ou melhor, que criou um pólo
complementar em relação àquilo em que eu estava então profundamente envolvido
que era a cultura erudita. Foi uma chamada para qualquer coisa que tinha a ver
com uma experiência estética de outra ordem. É por isso que O canavial é para mim uma obra
fundadora. Não tanto por muitas pessoas pensarem que é uma obra muito
apelativa, do ponto de vista da forma, mas porque está também associada àquela
outra dimensão.»
Julgamos que
a riqueza e especificidade do trabalho de Alberto Carneiro resulta da sua
capacidade de convocar e articular de um modo consistente diferentes registos
de aproximação artística à natureza e à paisagem que, a maior parte das vezes,
nos aparecem separados, se não mesmo apresentados como antagónicos ou
incompatíveis quando descritos de acordo com algumas das mais comuns e
simplificadoras arrumações estético-teóricas. Enumeremos alguns dos filões que
podem ser evocados:
— a tradição
da escultura em madeira, privilegiando a capacidade escultórica de modelação
manual e enaltecendo os valores telúricos da ligação aos materiais e formas
orgânicas da natureza;
— o experimentalismo
vanguardista da land art, dando a primazia à experiência directa da relação
física entre o artista e a natureza através de viagens ou caminhadas de que as
obras de arte surgem, sobretudo, como um testemunho;
— a arte
conceptual e a sua preocupação de inscrever em cada obra de arte uma
auto-reflexão sobre o processo de conceptualização e o processo de significação
que lhe permitem apresentar-se como obra de arte;
— uma
tradição de especulação metafísica relativamente à natureza, tal como ela se
manifesta, designadamente nalgumas correntes de pensamento orientais.
Julgamos, no
entanto, que se quisermos compreender a unidade profunda do trabalho de Alberto
Carneiro deveremos procurá-la não tanto através de uma sempre possível
combinatória aplicada de categorias críticas classificatórias mas através da
identificação de uma forma peculiar de relacionamento e busca de coincidência
entre a memória de uma experiência sensível de imersão total num espaço natural
e uma actividade concreta de produção e análise de formas (físicas ou
discursivas, objectos, imagens ou textos) em função de determinados espaços e
materiais dados.
Ao mecanismo
fundamental através do qual se opera esta identificação chamaríamos
reminiscência produtiva.
«Há uma coisa
que decorreu exactamente das minhas viagens nas levadas. À partida não estava
no programa, mas entrou. Tem a ver com algo que percorre o meu trabalho que são
as reminiscências. Mantenho que, no plano da criação poética, aquilo que flui
como base, como raiz, como energia inicial, é sempre apoiado numa experiência
prévia, numa experiência que, à partida, não é consciente, não é
consciencializável e só o passa a ser a partir do momento em que se torna
evidente. Por isso achei que era fundamental ter uma experiência de tradução da
paisagem. A obra que resulta como realizada é aquela que é estabelecida entre
uma, entre aspas, autenticidade profunda, e uma verificação mental processual.
Para se fazer a obra não chega apenas a intuição, o sentimento, a sensação, é
preciso assumir mentalmente e culturalmente esse processo e decantá-lo.»
..........................
Alexandre Melo, in
catálogo da exposição na Porta 33 e no Museu de Arte Contemporânea do Funchal,
Alberto Carneiro, ed. Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2003