O Observador. 1997. |
O trabalho do
jovem artista brasileiro Efrain Almeida tem podido ser visto regularmente em
Portugal na Galeria Canvas, no Porto. Aqui, falamos de uma exposição recente na
Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo.
A montagem da
exposição assenta numa relação de simetria entre os trabalhos expostos nas duas
paredes que se opõem frontalmente. De cada uma delas irrompem dois pequenos
colibris, captados de asas abertas, como que em pleno voo. Dos seus pés partem
longos e finos fios vermelhos de canutilho, que descem até ao chão e depois se
estendem pelo solo até ao centro da galeria.
Estes fios,
ao mesmo tempo que unem cada um dos pares de aves, traçam, no chão da galeria,
o contorno vermelho de dois desenhos que quase se tocam. São estes fios que
transformam cada par de pássaros num verdadeiro par: lado a lado, unidos por um
fio de sangue ou por um fim de alegria. O simples desenho delineado no chão
consegue mobilizar todo o espaço da galeria, envolvendo o espectador e
conduzindo o seu olhar e os seus passos.
As manchas
que as linhas desenham são como as sombras de um voo que os pássaros, presos à
parede, não podem soltar, mas conseguem, deste modo, sugerir. Ou como os
limites das margens de dois lagos que, no chão da galeria, tanto podem ser uma
evocação da natureza, como a evocação de um lago de puras emoções.
Os pássaros,
tal como as outras esculturas apresentadas na exposição, são de madeira (cedro)
esculpida à mão. No trabalho de Efrain Almeida é nítida a influência do
artesanato popular característico da sua região de origem – o sertão do Ceará,
no Norte do Brasil – e da sua tradição familiar – o pai era carpinteiro e a mãe
costureira. A qualidade oficinal do trabalho transmite-lhe uma excepcional
sensibilidade matérica e textural – uma sensibilidade ecológica, poderíamos
dizer –, que torna estas esculturas simultaneamente simples e sofisticadas,
poderosas e vulneráveis. Nelas encontramos o eco da modelação infantil de
brinquedos artesanais, mas também da estatuária religiosa popular –
extremamente rica no Brasil – e particularmente dos ex-votos.
No entanto,
aquilo que é decisivo nestes trabalhos, e lhes dá a sua marca distintiva e a
sua originalidade no riquíssimo panorama cultural da arte brasileira, é a
capacidade de Efrain Almeida para superar aquilo que poderia ser uma mera
adaptação de tradições ou referências locais, e conseguir dotar a sua obra de
uma intensa carga dramática e pessoal. A obra de Efrain é um notável exemplo de
uma articulação entre “arte erudita” e “arte popular” que, não pretendendo
submeter uma à outra, e rejeitando esta antinomia, acaba por se conseguir
afirmar, de um modo plenamente criativo, enquanto “arte contemporânea”.
O cunho original
do trabalho é obtido através de uma notável inteligência espacial, como já
vimos, e de um agudo sentida da delicadeza. Efrain trabalha com sugestões,
insinuações, possibilidades de significação. Nunca com evidências, citações ou
redundâncias. O seu trabalho sugere a possibilidade da emergência ou
manifestação de um sentimento – o amor, o prazer, o sofrimento, a dor, a
comunhão com a natureza, o medo da morte – mas nunca o impõe como uma evidência
ou como um tema a comentar.
As três
esculturas que completam a exposição, apresentadas na parede entre os dois
pares de pássaros, são um bom exemplo das principais referências e preocupações
que alimentam a obra do autor. Duas das esculturas são pequenas figuras
humanas, cujos corpos se entrecruzam com troncos de árvores. Numa delas, o
tronco de árvore prolonga-se, como desenho ou tatuagem, nas costas da figura.
Numa outra escultura, duas cabeças são unidas por um ramo, oval, com a forma de
uma coroa de espinhos. Os rostos das figuras, como noutros trabalhos do autor,
podem ser vistos como auto-retratos.
A ligação
directa à Natureza, pressuposta no material escolhido e na maneira de o
trabalhar, completa-se nesta representação de uma fusão física entre corpo
humano e árvore, carne e madeira. A marca da vida especificamente humana,
animal, é talvez concentrada nas pequenas marcas de cor que, por vezes,
assinalam os olhos ou os lábios. A representação do sangue é remetida para a
cor vermelha dos fios de canotilho.
Mas estes
homens-árvore são também, os portadores de referências religiosas católicas: a
madeira da cruz à qual foi pregado o corpo de Cristo; o tronco do martírio de
São Sebastião; a nudez do corpo, a nudez da madeira, a marca das feridas. Um
universo de imagens religiosas que podem estar também muito próximas de figuras
do imaginário sexual. Mas também aqui, nas possibilidades de conotação sexual
de alguns destes trabalhos, o que nos surge não é a evidência das marcas da
sexualidade, mas antes a sugestão de uma sensualidade física em que a pura vibração
sentimental é tão importante como a pulsação física, matérica.
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Alexandre Melo, “Efrain”, in Arte Ibérica, Ano 4,
Nº41, Lisboa, Nov / Dez 2000
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