A janela do
quarto do meu hotel dá para as traseiras de um quartel. Eu sei que os quartéis
não têm traseiras. Desvio os olhos do papel em que escrevo isto para assistir à
comemoração dos golos. Voam finas camisolas brancas de alças. Algazarra. Ficam
calções verde militar, sapatilhas pretas, meias brancas. Records perfeitos de cor.
De manhã
acordo com os gritos da formatura, a ginásticas matinal, a aprendizagem da
marcha. Ao fim da tarde, futebol até noite escura, gritos, risos, palmas,
golos.
Peço desculpa
pela credulidade. Não acredito que tenham preparado tudo isto de propósito para
mim. Muito grande a gentileza do Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador,
que me convidou para jurado do VI Salão da Bahia. O museu, com uma admirável
localização à beira-mar, ocupa um sítio histórico do século XVI – o Solar do
Unhão – que foi desempenhando as mais variadas funções até encontrar, em 1996,
a sua actual vocação.
Um belíssimo
jardim e esculturas completam o panorama.
Enorme a
hospitalidade do seu director, Heitor Reis, do seu adjunto, Edgar, e de todo o staff. Apesar de tudo, não teria sido
possível escolher os detalhes da inclinação da janela, da posição do quarto, da
exacta implantação do hotel. A Praça 2 de Julho, com todo o calor do fim de
tarde e o cheiro do acarajé. E um mercado de flores e os delirantes cânticos
dominicais de uma arrebatada seita religiosa. Não foi preparado. Isto é mesmo
assim.
Tal e qual
como se vê nas fotografias reunidas por Mário Cravo Neto no seu livro Salvador (Aries Editora, 1999). Na
introdução, Caetano Veloso escreve assim: “Mestre da suavização das
superfícies, Mário Cravo Neto faz a dureza física da luz de Salvador passar
pelo filtro da doçura espiritual que anima a cidade. O horizonte contundente do
mar, as alvenarias ásperas, as pedras brilhantes e as personalidades
espalhafatosas – todas essas maravilhas exageradas da Bahia – são como que
cobertas por uma bruma invisível que as domestica para que melhor possamos nos
aproximar de sua verdade estridente".
Talvez este
discurso pareça um pouco estereotipado. Mas o que há-de dizer-se quando se
encontra uma coisa que corresponde aos nossos melhores estereótipos, os de
beleza, de bem. Por que é que não havemos de nos render à encarnação dos
estereótipos daquilo que queremos? Para que quero eu os restos do pensamento
crítico europeu, da sua imensa estupidez?
Euforia do
Código. O encontro com uma realidade que corresponde a um estereótipo de
felicidade. A um dos meus estereótipos de felicidade. São a minha prioridade:
os realmente verdadeiros estereótipos de felicidade. Os encontros são o amor
pelo mundo.
São cerca de
200 fotografias. Textos de Pedro António Vieira, Jorge Amado e Wilson Rocha
completam o volume.
No catamarã
que me leva de Salvador até ao Morto de São Paulo, na Ilha Tinharé, reparo que
a maior parte das pessoas estão descalças. Eu, não sei porquê, tenho calçados
uns sapatos Patrick Cox, pretos, de
camurça e pêlo sedoso, e meias pretas. Reparo que durante alguns anos, antes de
decidir pô-los a uso, quase só usei estes sapatos para levar à ópera. Eram os
meus sapatos de São Carlos. Agora parecem-me perfeitamente apropriados para estar
aqui. Num autocolante colocado por cima do meu lugar, leio: “Não sou dono do
mundo mas sou filho do dono”. Em frente, à volta, é o mar.
As coisas são
assim. São e não são.
...............................
Alexandre Melo, “Regresso à Bahia”, in Arte
Ibérica, Ano 3, Nº30, Lisboa, Dezembro
1999
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