Jorge Molder. The Secret Agent series. 1991
Os objectos
artísticos, salvo casos deliberadamente “programáticos”, raramente se submetem
sem abuso a uma arrumação exclusiva, e isto por força da eficácia especifica da
sua presença. Se nos pomos o problema da análise concreta de um objecto
concreto, acabamos por ter de ensaiar a aplicação de todas as lógicas a todos
os objectos, mesmo quando em aparente contradição com o que parecia ser a sua
lógica ordinária. Ver como é que funciona. Apercebemo-nos rapidamente da larga
medida em que a lógica de funcionamento do objecto vai depender das formas
concretas da sua localização e contextualização social, cultural, teórica.
Sendo que o nosso próprio discurso é parte integrante desse mecanismo de
contextualização.
O
“relativismo” inerente a esta conclusão só poderia embaraçar-nos se
entendêssemos, primeiro, que existia uma verdade do objecto a descobrir e,
segundo, que existia uma teoria cuja aplicação conduzia a essa descoberta.
Pertencendo tais crenças a uma horizonte de anacrónicos preconceitos
gnoseológicos, defendemos a pertinência de um discurso a propósito das obras de
arte não como instrumento da verdade mas como liberdade e possibilidade de
funcionamento e de pensamento. Se as obras de arte se caracterizam por dizer –
admitindo que se pode aqui utilizar a palavra dizer – algo que não pode ser
dito de outra maneira, qual é a natureza daquilo que se pode dizer sobre essas
mesmas obras? O discurso sobre obras de arte não pode dizer de outra maneira
aquilo que elas dizem (?). Mas pode dizer algo sobre a maneira como elas dizem
(?). E de que maneira pode dizê-lo?
A comparação
entre o estatuto do poema e o do objecto artístico – no âmbito das artes
plásticas – permite alguns paralelismos. O primeiro diz respeito ao efeito de
estranheza ou, se quisermos, ambiguidade. As palavras mais simples e mais
correntes podem, no contexto de um determinado poema, produzir efeitos
imprevisíveis e ilimitados. Do mesmo modo, formas e objectos simples e
correntes podem, quando desviados e agenciados no contexto de um objecto
artístico, desencadear cadeias inesgotáveis de conotações e significações.
O segundo
paralelismo diz respeito à questão do ritmo. Tal como a leitura de um poema
exige uma sintonização de cadências e de afectos, também a leitura de um
objecto artístico exige um sintonização que recobre diferentes aspectos. Um
primeiro aspecto é a capacidade de apreender a modelação sensível da superfície
visível do objecto. Neste âmbito, a sensibilidade rítmica é particularmente
útil para abordar a natureza descontínua de objectos em que frequentemente se
cruzam diferentes lógicas, processos e registos. Um segundo aspecto da
sintonização é a capacidade de, para além da superfície visível, ser capaz de
ficcionar a emergência de uma personalidade ou a força de um enigma.
A cada passo
encontramos elementos que funcionam como chaves, portas, fechaduras. Remetem
umas para as outras de forma imperativa e necessária mas nunca definitiva. Nada
se abre e nada se fecha de uma vez por todas. A rede é cada vez mais rica e
mais tensa mas a solução é sempre diferida. Esta dinâmica circunscreve uma
espécie enigma central. Mas o enigma não é encarado nem de um forma mística –
uma super-essência oculta – nem de uma forma lúdica – um jogo de escondidas. O
enigma tem um valor prático, operacional. É um centro virtual que serva para
activar deslocações. As peças do processo vão sendo exibidas, completadas,
aumentadas, complexificadas. Mas nunca são explicitadas as condições da sua
decifração integral. A sombra do enigma serve para instaurar uma disciplina
cruel. A crueldade é a obstinação em objectos imperativos e necessários. Sem
que a necessidade seja explicitada ou evidente. A disciplina é a obstinação, no
rigor das demarcações. Objectos criminais. Obras de arte.
.........................
Alexandre Melo, “Objectos e Palavras”, in Arte
Ibérica, Ano 4, Nº34, Lisboa, Maio
2000
|
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.