Artes&Leilões
Outubro-Novembro, 1989
António Bacalhau - José Sousa Machado
Artes & Leilões – Na tua perspectiva como é que se
articula o conceito de mercado nacional com o de mercado internacional?
Alexandre Melo – O
problema da escala geográfica dos mercados é o problema das fronteiras
espaciais do reconhecimento de um determinado valor. É uma questão fulcral,
porque sempre que quisermos comparar preços e valores de obras de arte não
chegamos a nenhuma conclusão se não encontrarmos em linha de conta com a dimensão
geográfica. Isto é, por exemplo, um artista que só é famoso em Portugal, que não
tem sequer cotação fora do país, pode ter preços mais altos, aqui, do que um artista
cuja obra e a cotação são reconhecidas em todo o mundo. Há um mercado
internacional, hierarquizado, e há mercados regionais, nacionais ou não, também
eles hierarquizados e que podem ser mais ou menos autónomos em relação ao
mercado internacional.
A.L. – Em termos práticos, do ponto de vista dos
compradores, como é que o problema pode ser encarado?
A.M. – Há duas
atitudes possíveis. Numa perspectiva mais ambiciosa, mais dinâmica e
internacional, importa reforçar a articulação do mercado nacional com o mercado
internacional e impõe-se apostar nas obras com um horizonte de afirmação e um nível
de reconhecimento mais vasto. Numa perspectiva mais limitada e imobilista, é
também possível a atitude oposta. O comprador confina-se aos limites do seu
meio e opta pelas obras com as quais se identificam os círculos sociais em que
projecta a sua imagem e aspirações, sem se preocupar com o desfasamento em relação
à situação cultural mais global.
A.L. – Ouve-se frequentemente dizer que em Portugal se
vive ainda na pré-história do mercado da arte. Mas simultaneamente nos últimos
anos vem-se manifestando uma grande animação e entusiasmo no mercado. Será que
esta animação pode vir a revelar-se artificial e a gerar equívocos em termos de
qualidade?
A.M. – Há de facto
uma assinalável animação e dinamismo. Embora, quase tudo continue a passar-se a
uma escala bastante reduzida. A abertura ao confronto com o exterior e às tendências
mais actuais continua a ser limitado, embora esteja a aumentar, e o nível de
formação e de informação dos agentes culturais e da opinião pública, em relação
à arte contemporânea, continua a ser muito pobre.
Estas limitações,
ao conjugarem-se com uma procura muito dinâmica, podem produzir efeitos
negativos, designadamente uma degradação ao nível de qualidade de algumas das
obras oferecidas no mercado, ou um processo inflacionista descontrolado que faça
subir de forma imponderada os preços dos artistas mais consagrados. Mas não é
fatal que assim aconteça. À medida que aumenta a circulação e a informação o
risco de efeitos perversos diminui porque aumenta o leque de obras e cotações
dentro do qual se estabelecem as comparações. Mesmo para quem prefira valorizar
contextos locais, o aumento da informação, ao permitir multiplicar os
confrontos, contribui para moderar os aumentos especulativos e para aumentar o
nível de exigência de qualidade.
A.L. – A efectiva existência de um mercado de arte pressupõe
também que exista uma certa garantia e segurança do valor. Se alguém compra uma
obra a um determinado preço tem que ter a convicção de que salvo situações
excepcionais aquela obra vale o que custou quando eventualmente se dispuser a
vendê-la. Será que a situação portuguesa oferece esse tipo de segurança?
A.M. – É difícil generalizar a esse respeito porque tudo depende das características
concretas dos agentes envolvidos no processo, ou seja, no caso, os galeristas e
os coleccionadores. Em Portugal não há muitos galeristas profissionais mas há
alguns. Quando falo de galerista profissional, independentemente da filiação
estética e inserção social, refiro-me a alguém que assume e defende a obra dos
artistas que representa numa perspectiva de carreira a longo prazo e de promoção
estratégica. Isto pressupõe uma rede sólida de relações sociais e
institucionais a partir da qual se constitui um núcleo de coleccionadores. E
traduz-se num escrúpulo de gestão de preços, das compras e das vendas que
permite, salvo situações anormais, assegurar a cotação de um artista. Quanto
mais profissionais forem os galeristas, neste sentido, maior será a segurança.
Vendo agora a
questão pelo outro lado, pelo lado do coleccionador, é evidente que para que
existam galeristas profissionais é preciso que existam coleccionadores a sério.
Isto é, coleccionadores que têm uma ideia de colecção e uma perspectiva a longo
prazo. Que compreendam que a compra de uma obra é também uma tomada de posição
cultural e um ponto de vista sobre o trabalho de um artista e que isso lhes
cria responsabilidades em termos de coerência, continuidade e clareza de opções.
Não se trata
apenas de comprar e vender ao sabor das conveniências, do acaso ou do capricho.
À medida que se forem afirmando e distinguindo os galeristas profissionais e os
coleccionadores a sério, e em que eles forem servindo de ponto de referência
para o conjunto do mercado, irão diminuir os riscos de quedas ou quebras.
A.L. – Nessa perspectiva o galerista surge como uma espécie
de gestor de carreira do artista. Mas o que também parece acontecer, em
contraponto ao aumento do número de galerias, é a vontade manifestada por
muitos de preservar uma certa liberdade e de serem eles próprios a gerir as
suas carreiras sem assumirem compromissos com galerias.
A.M. – Cada artista
decide qual a forma de inserção social e económica que lhe interessa para o seu
trabalho. O meio artístico e o mercado comportam a existência e convivência de
diferentes modalidades. Penso no entanto que com a maior parte dos artista que
se preocupa em gerir as suas próprias carreiras, o que está em causa não é
tanto uma exigência abstracta de liberdade mas sim uma aguda consciência do que
entendem dever ser a difusão do seu trabalho e uma certa desconfiança em relação
à capacidade dos galeristas para a assegurar. Em muitos casos os artistas têm
um grau de informação estética e de consciência estratégica mais elevados que o
dos próprios galeristas. Nesse medida é normal que queiram intervir na gestão
da sua própria carreira. Penso que também aqui a situação se modificará se
aumentar o nível de profissionalismo dos galeristas.
A.L. – Será que em Portugal existe já uma nova geração de
coleccionadores englobando pessoas de rendimentos médios e motivadas para a
arte contemporânea?
A.M. – Naturalmente
não há informações exactas disponíveis até porque a tal animação do mercado é
um fenómeno recente. Julgo porém que em relação à arte contemporânea há dois
tipos de coleccionadores. Por um lado, coleccionadores com colecções iniciadas
há já vários anos, com um poder de compra mais forte, que por razões de
sensibilidade ou maior informação – nacional e, nalguns casos, também já
internacional – começaram a voltar as suas atenções para a arte contemporânea e
têm a possibilidade de constituir colecções consistentes nessa aérea. É um fenómeno
minoritário mas que poderá alargar-se a partir do momento em que comece a haver
um reconhecimento público generalizado da valia de escolhas que, porque mais
contemporâneas, tendem ainda a aparecer, aos olhos do coleccionador
tradicional, como demasiado arriscadas. Por outro lado, há uma vaga mais
recente de coleccionadores que começaram a comprar ao mesmo tempo que os
artistas, cujas obras adquirem começaram a expor e que por assim dizer
acompanham, também em termos de cumplicidade estética e cultural, a evolução
das suas carreiras. São pessoas que não têm um poder de compra muito elevado
mas que têm um papel fundamental enquanto base social e cultural de apoio e
enquanto germe de uma futura geração de coleccionadores mais informada e mais
sintonizada com a criação contemporânea.
A.L. – Ainda no âmbito das colecções e coleccionadores,
qual é ou deveria ser a situação, em Portugal, no que diz respeito aos
coleccionadores institucionais, seja o estado as fundações ou outras entidades?
A.M. – Uma resposta
exacta exigiria uma análise caso a caso. Generalizando, diria que em primeiro
lugar, o número de coleccionadores institucionais importantes, quer em termos
de montante de compras quer em termos de prestígio cultural, é bastante
reduzido. A situação alterar-se-á à medida que as instituições, públicas ou
privadas, forem compreendendo até que ponto a dimensão cultural é importante
para a valorização e articulação social das suas actividades. Em segundo lugar,
quase todas as colecções institucionais – a recente colecção da Fundação
Luso-Americana é talvez a única excepção – sofrem de dois defeitos: a falta de
uma ideia ou critério estruturador, e a falta de uma perspectiva de longo prazo
com a consequente ausência de regularidade c continuidade de aquisições. Estas
faltas acarretam dois tipos de inconvenientes. Por um lado determinam um tipo
de intervenção casuística, aos repelões, com um timing arbitrário e uma lógica imprevisível. Por outro lado
inspiram uma abrangência sem limites ou um ecletismo sem princípios que acabam
por transformar as supostas colecções em aglomerados heteróclitos de peças cuja
reunião não tem maneira de fazer sentido. Esta situação é tanto mais grave
quanto as colecções institucionais, pelo seu peso económico e visibilidade,
deveriam constituir um exemplo para o mercado no seu conjunto. Se na diversidade
das suas opções estéticas e culturais as instituições em causa adoptassem para
as suas colecções uma ideia, um conceito, um critério, uma perspectiva estratégica,
em tudo a sua acção poderia ser muito importante para a construção e
amadurecimento do mercado da arte em Portugal.
A.L. – Todo este conjunto de insuficiências e limitações
que temos vindo a apontar aos coleccionadores portugueses, e que estão muito
relacionados com a falta de informação, não poderão levar à formação de colecções
que sejam autênticos “elefantes brancos”?
A.M. – Existem de factos supostas colecções que não se podem mostrar fora do círculo
familiar e ainda outras colecções que com o passar do tempo vão descobrindo que
nunca o foram. Esta situação está relacionada com um fenómeno assaz chocante
que é a massiva falta de informação sobre a arte contemporânea. Mesmo sem falar
da inexistência de grandes ou pequenas exposições, retrospectivas ou de
actualidade. Não existe sequer um centro de documentação, uma biblioteca ou uma
livraria – já não digo mais que uma – onde se tenha acesso de forma minimamente
sistemática e actualizada a livros, catálogos ou publicações periódicas sobre
arte contemporânea. Este deserto tem consequências não tanto ao nível do meio
artístico propriamente dito – que, por vias internacionais, tem acesso à mesma
informação que o meio artístico de qualquer outro país – mas sobretudo ao nível
da opinião pública em geral e da investigação sobre arte contemporânea. Esta é,
em termos práticos, impossível em Portugal, por falta de tudo. Quanto à opinião
pública média o problema que se põe não é já o de se identificar ou não mas o
de virtualmente não ter qualquer ideia ou imagem do que se passou no últimos 30
anos no campo das artes plásticas.
A.L. – Haverá a possibilidade de no mercado de arte em
Portugal, a breve prazo, se vir a dar uma queda, um crash, semelhante ao que
ocorreu no princípio da década de 70?
A.M. – Julgo que,
apesar de todos os problemas e limitações de que viemos falando, existem agora
mais elementos moderadores e parâmetros de referência mais sólidos do que
existiam nessa altura. O grau de profissionalismo dos vários agentes envolvidos
é apesar de tudo mais elevado e não creio que as manobras especulativas possam
atingir uma dimensão catastrófica. Poderá haver altos e baixos, aumentos ou
quebras da procura, dependentes das oscilações de conjectura económica mas não
se me afigura que, até ver, o mercado da arte esteja a alimentar em si mesmo
factores ou dinâmicas autodestrutivas. Por outro lado podemos também considerar
que uma ligeira recensão ou uma quebra da euforia – se é que se pode falar de
euforia, parece-me um pouco exagerado – podem também ter um efeito regulador,
moderador, selectivo. Permitindo distinguir entre o profissionalismo e o trabalho
sólido e facilidade inconsequente de quem aproveita os bons momentos para
empolar operações especulativas.
A.L. – Sempre que se fala das relações entre e a arte e
economia, de mercado da arte, surgem acusações relativas à massificação da relação
com as obras de arte e da sua consequente banalização e de valorização em
termos de sentido e de relação profunda com o observador. Será que este
processo é inevitável?
A.M. – Actualmente
existe uma crescente integração da criação artística na lógica económica mais
geral das sociedades, o que implica uma certa mercantilização, mediatização e
massificação da circulação e da distribuição das obras de arte. Mas isso não
impede que continuem a ser possíveis diferentes tipos de relacionamento. Se eu
faço uma viagem de 15 dias ao estrangeiro e aproveito para visitar seis exposições
ou museus, por dia em 12 cidades diferentes é natural que no meu regresso tenha
um sentimento de massificação e que me queixe de uma quebra da intensidade da
minha relação com cada uma das obras que olhei. Mas ninguém me obriga a fazer
isso. Posso dedicar o mesmo tempo a ver apenas uma exposição ou até apenas uma
obra. A escolha é sempre do observador e os diferentes tipos e níveis de
relacionamento não são sequer incompatíveis. Tudo depende, em cada situação, do
objectivo e da modalidade de atenção.
............................
"Mercado da arte : Conversa com Alexandre Melo". in Artes & leilões, Lisboa, Out.-Nov. 1989, p.12-16
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