Artes&Leilões
Junho-Setembro 1990
Eduardo Batarda, O Sr Professor C. J. P. Na Hora do Maior Movimento, 1965 |
29 de Outubro
de 1943. Escorpião. Segundo o nada científico livro dedicado a este signo por
Michéle Cursio «o escorpião, um dos mais antigos habitantes do planeta, tem
mantido, ao longo de milhares de anos, a mesma forma, como se a natureza o
tivesse considerado perfeito desde a sua apreciação. Apresenta ainda uma
particularidade surpreendente: não está imunizado contra o seu próprio veneno
e, perante uma situação que considera sem saída, chega a picar-se a si próprio.
Ora, entre os animais o suicídio (ou antes, a autodestruição) é raríssimo; no
escorpião é normal. Este animal, triste mas perfeito, parece, portanto, possuir
um destino absolutamente excepcional». (Publicação Europa-América, Colecção
Zodíaco, p.12/14.)
Horóscopo e biografia
Segundo
Eduardo Batarda «não sei bem quais são as características psicológicas que as
pessoas me costumam atribuir. As reacções directas são raríssimas. Às vezes as
pessoas não fazem outra coisa senão confirmar na base de ‘ah, és mesmo um
escorpião’. De resto as características marcadas que os escorpiões são supostos
ter também não sei bem quais é que são...Sei que passam pela autodestruição,
pela análise e mania da desmontagem, e em casos mais complicados por coisas
como a autorecriminação, a culpa, a dúvida, relações tipo sadomasoquistas com o
resto do mundo, o universo, Deus, etc. Aquilo que eu penso e que estou
convencido que é aquilo que maior parte das pessoas que pensa alguma coisa de
mim diz, acha ou escreve não tem tanto a ver com o escorpião, porque é mais na
base de “ah, esse, pois...”. É qualquer coisa de não muito negativo, mas também
nada de positivo. E não tem nada a ver com certos sentimentos de agressão,
agressividades, maldade, ataque.»
Ainda ao
nível da caracterização psicológica da personagem, mas já também a propósito do
trabalho, vale a pena insistir no carácter obsessivo.
« Se eu concordar parece que me estou a gabar de qualquer coisa. Mas tenho que
dizer que o meu trabalho é obsessivo porque é meu, porque é o que eu faço e
tenho tendência a fazê-lo muito, tanto como as coisas que posso facilmente
referir como obsessões, que são os ‘hobbies’. Por comparação com as minhas
colecções e as manias, percebo que o meu trabalho é qualquer coisa que tem
características de manias ou desse tipo de obsessão. Por ser o meu trabalho,
por ser supostamente arte, tem outro peso descrevê-lo como obsessão...teria a
ver com vários níveis de gabarolice. Teria que estar a dizer que trabalhava
muito, e quem diz que trabalha muito em princípio funciona com o preconceito
que diz que trabalhar muito é bom, coisa com a qual eu não concordo. Por aí
talvez o meu trabalho seja qualquer coisa de obsessivo, porque é que eu faço
tanto uma coisa com a qual não concordo...por obsessão, por mania? Em tempos
talvez fosse possível dizer que tinha a teima de descascar as coisas,
simplesmente parece que depois de várias décadas de desconstrução foram
encontrados métodos que aliás não desmerecem, métodos por exemplo
reconhecidamente admitidos como boas maneiras de comunicar visualmente, como
ter uma ideia de cada vez, não complicar as coisas, ser explicado, breve. Se
havia qualquer intenção obsessiva de fazer essa leitura da leitura, essa
análise das possibilidades dos sentidos, e eventualmente essa demonstração ou
exibição de que estava a fazer essa leitura, se eu sabia isso então eu deveria
ser explicado e breve, e há-de ser por qualquer coisa que já é uma obsessão a
outro nível que eu não sou nem explicado nem breve ».
Apesar da
entrada directa nos temas mais profundos, um perfil não dispensa algumas
convenções biográficas. Do género: nasceu em Coimbra, no meio de Portugal e da
2ª Guerra Mundial. Foi estudar Medicina para não fazer a desfeita à família.
Andou por lá três anos sem fazer progressos a não ser em matéria de cultura
geral – embora suponha que esta referência é irónica, é quase um erudito e tem
tendências hipermnésicas -, consciencialização política – suficientemente
profunda para nunca o levar a militância e animação urbana tanto quanto o
adjectivo se pudesse aplicar à cidade de Coimbra.
Em 63 passou
de Coimbra para Lisboa para fazer o que numa biografia à antiga se diria «abraçar
a sua verdadeira vocação». Começou a abraçá-la na ESBAL onde ficou até 68. Ano
da primeira exposição individual na Galeria Quadrante, em Lisboa. Era uma
figuração a que podiam servir referências: a arte e as outras coisas pop; o design gráfico (procure-se descobrir
alguns dos livros excelentemente ilustrados por Batarda); a banda desenhada.
Quer isto dizer que as cores eram vivas e bem contrastadas - «as cores da swinging London», para
onde Batarda partiria depois de três anos de tropa que lhe pareceram bastante
suficientes.
As figuras e
as suas supostas situações eram truculentas, ou insólitas, às vezes maldosas,
ou satíricas. A composição era por compartimentação, às vezes com painéis
compostos de vários quadros, como na banda desenhada.
Royal College
of Art, Londres 71/74. Na sequência da publicação, em 70, de um livro de que
Manuel de Brito guarda ainda alguns exemplares, Batarda trabalha com aguarelas.
O que lhe vale, a troco de originalidades, a sugestão, por alguns professores,
de passar da área de pintura para a de artes gráficas. Mas não houve maneira de
lhe explicar que o que fazia não era pintar, e acabaram por lhe dar prémios. Também
lhe criticaram as sobreposições de sentidos, os cortes de caminhos e de
leituras. Prefeririam imagens unívocas. Mas, ainda aí, não houve nada a fazer.
Os trabalhos
de Londres seriam expostos em 75, na Gulbenkian. Na apresentação dos trabalhos
de Londres, Batarda esclarece o sentido global da sua trajectória: «(...) é
deste cultivo das ambiguidades, e deste trabalho em que o elemento satirizador
assume – na quase total aparência – as formas de satirizado que (...) nasce
aquilo que considero relevante no meu trabalho. Mais ou menos aperfeiçoado com
o correr do tempo, aquele tornou-se mais óbvio e declaradamente um comentário
permanente ao estado actual das artes visuais (...) É porventura da aversão às
evidências, gerada pelos hábitos atrás descritos, que tem a sua origem à pista
fundamental – a minha, pelo menos – para a leitura destes quadros: nenhum deles
se mostra como a própria coisa. Trata-se de citações, de citações de citações,
e, indo por aí fora, de autocitações».
Aguarelas: a gestão das cores e complexidade da
composição
De 75 a 77, a
mudança de Lisboa para o Porto, e a correspondente crise de habitação,
afastam-no da prática da pintura. No final da década volta às aguarelas. São
agora menos figurativas, levando à fragmentação do espaço, à complexidade da
composição e detalhe do desenho, à gestão das cores, a extremos de minúcia e
perfeccionismo.
Os anos 80
vão corresponder a uma viragem na pintura de Batarda mas essa viragem vai, no
seu caso, num sentido oposto ao da evolução geral.
Pelo contrário,
nos anos 80, quando se recupera a figura, a cor, a referência gráfica, a
espontânea idade, a legibilidade, Batarda adopta um leque cromático
radicalmente mais austero, adensa e encobre a sua rede de citações e remissões
(alargada a toda a história da pintura), complexifica um jogo formal
tendencialmente abstracto (embora partindo de formas referenciáveis),
multiplica a espessura da eventual descodificação dos seus quadros.
A perfeição do fazer
A partir de
82 vem expondo com regularidade quase anual nas Galeria 111, Lisboa e Zen,
Porto. Uma série de exposições que foram demonstração da consistência de uma
linha de trabalho e de perfeito domínio dos meios – a que se costuma chamar
maestria. A consagração da autoridade de um autor. Mesmo que a braços com as
contemporâneas desventuras da noção de autoria.
A perfeição
do fazer entendida como perícia técnica é muitas vezes enaltecida no trabalho
de Eduardo Batarda. Que adverte contra uma valorização exagerada deste tópico. «Cada
coisa que é feita é produto de uma determinada intenção, e a maneira de atingir
essa coisa é a técnica que é preciso ter. Como tal, é evidente que eu reajo e
fico magoado na minha vaidade quando alguém põe em destaque o tempo que aquilo
demorou a fazer, ou que bem feito que está etc., porque em princípio aquilo não
deveria estar suficientemente bem feito senão para ser o que é. Agora se eu
estou a fazer uma paródia ou uma caricatura de uma coisa bem feita, uma troça
ligeira e até semi-nostálgica aos estilos, isso é talvez um segundo assunto.
Mas a técnica como técnica seria só isso, o bastante para que uma coisa pareça
o que parece e seja o que é. Como professor eu lido todos os dias com isso, e
peço constantemente situações e soluções completamente diferentes umas das
outras. Não há necessariamente uma técnica, há técnicas de fazer isto e de
fazer aquilo. E o que é péssima técnica num contexto pode ser excelente noutro».
Mais
fundamental que o apuro técnico poderá ser no trabalho de Eduardo Batarda a
inteligência das referências, agrupando nisto três coisas: a erudição de um
controlo minucioso da história das formas e dos modos; a hipersensibilidade às
marcas tipificadoras da actualidade de cada conjuntura plástica e aos ritmos e
variantes das suas oscilações; a omnipresente consciência da própria história
artística e pessoal do autor. Qualquer pintura de Eduardo Batarda pode ser
transformada num jogo de advinhas, numa decifração de indícios, em que se
trataria de recensear as referências à história de arte, à actualidade plástica
e à criação, subversão, composição, contraposição. Por fim, poderiam
distribuir-se-lhes qualificativos psicológicos desde a homenagem até à denúncia
passando pelo comentário e a ironia. Mas à medida que o formos sistematicamente
realizando veremos que se trata de um processo interminável. Todas a
referências sucessivamente se desdobram e com elas se desdobram também
sucessivamente as possibilidades de as valorizar e qualificar segundo esta ou
aquela categoria.
Eduardo Batarda. Reserva, 1988 |
O que se sabe e o que não se sabe
A
inteligência das referências começa por aparecer como construção de uma
gigantesco jogo de indícios proposto em desafio à capacidade de decifração do
observador. Mas, uma vez que esta decifração não se encerra num sentido final
ou leitura fechada, somos uma vez mais levados a reconhecer um valor profundo
de atitude.
Uma peculiar
vontade de omnisciência. Mostrar que se sabe aquilo que se sabe e que não se
sabe aquilo que não se sabe, que se sabem as formas sob as quais se deve ou não
se deve mostrá-lo, que se é capaz de antecipar sabedorias e as capacidades de
leituras dos observadores, de as cumular um pouco e decepcionar um pouco. «A
única coisa que eu não tenho obrigação de fazer mas talvez devesse ter, é a
antecipação, previsão do futuro....A outra coisa que eu não posso fazer é a
citação gratuita, pelo menos de há onze anos para cá. Tenho um entendimento,
suponho que cada vez mais distante, à força da preguiça, falta de tempo, da
chamada contemporaneidade. Mas ‘mantenho as minhas ligações’ e sigo atentamente
a minha época e ‘a sua carreira’ com o maior interesse. Não posso posar como
artista despretensioso que observa o mundo da sua tebaide ou do seu pequeno
local de província, nem como o gajo de Santa Fé, Novo México, que diz adeus
mundo, rivalidade, selva das artes, cá estou eu virado para o eterno nada, que
é a eterna natureza...A questão é que por hobby, de certo modo como coleccionar
coisas, deu-me há muitos anos a mania de olhar para as artes e para a história
de arte de uma maneira que é cada vez menos a maneira do ‘art-world’. E de passagem aproveito para lamentar o
fosso que se cava entre os académicos e os artísticos. Não sendo estudioso nem
investigador nem conhecedor (connaisseur) de nada, confesso que o peso das coisas
do passado tem para mim outro interesse. Talvez seja por isso inevitável que eu
apresente pistas ou restos que possam ter a ver com uma coisa que
episodicamente cruzou a trajectória de alguma arte contemporânea, aqui há
alguns anos, e que agora já não está outra vez a dar, ou seja, a história da
pintura e das tradições. Alguém tem de estar a fazer isso, neste impasse e
neste equívoco. Há centenas de milhar de pessoas que estão convencidas que
estão a fazer o novo quando estão a fazer o velho, mas têm que o fazer, porque
é sempre possível que aconteça que o equívoco seja ao contrário, que estejam a
fazer alguma coisa nova, certamente num contexto diferente em que o conceito de
novo também fosse diferente, mas que o contributo individual fora de
expressionismos e romantismos seja o pouco que se diz e o pouco que se
acrescenta.»
Um pouco mais
de abuso e Eduardo Batarda ficava com o perfil de um pintor romântico, não
apesar de si mesmo mas apesar de tudo. Um estilo apesar de tudo. «Coisa que se
calhar é uma vez do antigamente a dizer que apesar de tudo ninguém se safa
disto. Apesar de todos os didactismos, apesar de todos os basismos,
explicações, facilitações, às tantas é possível que se repare em alguém e se
defina toda a sua obra pelo seu estilo. »
As ideias são de factos o estilo.
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Alexandre Melo, “Eduardo Batarda”, in Artes&Leilões, Lisboa, Junho-Setembro 1990, p.28-33.
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