João Pedro Rodrigues. Odete. 2005.
É muito
desagradável deixar cair coisas no chão. Em determinadas circunstâncias, a
queda de uma chávena de chá meio cheia sobre o soalho de uma sala pode ter
consequências susceptíveis de comprometer de forma definitiva uma carreira
mundana.
Imaginem
agora que, não sabemos por quantos momentos, sustentamos entre as nossas mãos
um coração. O coração de alguém. O perigo é imenso. Um coração é um objecto
vivo e muito sensível. Deixar cair um coração, partir um coração, é por certo o
maior crime que contra a humanidade se pode cometer, e não é nada fácil
encontrar quem o sabia redimir.
Numa das
sequências mais belas e mais terríveis de toda a história do cinema (não sei se
devo acrescentar português), Diogo Dória atira violentamente para o chão o vaso
de vidro que contém o coração de Francisca. Falo de Francisca, de Manoel de Oliveira, inventada a partir de Fanny Owen,
de Agustina Bessa-Luís, e de um trágica história de amor do final do século
XIX.
Francisca é o século
XIX ou a pré-história do cinema: o cinema que havia, sempre houve, na pintura e
no romance, antes de haver cinema. Entre Francisca
e Odete está o século XX, ou
seja, a histórica do cinema. É esta a matéria-prima, a paixão e a sabedoria de
João Pedro Rodrigues: o conhecimento apaixonado da história do cinema. É esta a
matéria-prima, a paixão e a sabedoria de João Pedro Rodrigues: o conhecimento
apaixonado da história do cinema. Histórias de vida, sexo, luz, morte e amor. É
por isso que João Pedro Rodrigues é um dos mais fortes e originais autores
emergentes no panorama do cinema contemporâneo. Odete é a Francisca do
século XXI.
Esta é a
história de um coração partido e de um coração posto em estado de desassossego.
Dois incidentes iniciais. Pedro, o namorado de Rui, morre, ou parece morrer,
num acidente de automóvel. O namorado de Odete mostra desagrado em relação à
hipótese de ter um filho. A obsessão de Odete com a ideia de ser mãe atira a
protagonista para uma errância que servirá de fio condutor à narrativa.
A deriva de
Odete é movia pela ideia de maternidade. Um tema recorrente sob formas que
valeria a pena comparar em vários filmes portugueses recentes, como Glória, de Manuela Viegas, ou A Mulher Policia, de Joaquim Sapinho.
Veja-se a
relação de Odete com a mãe (Teresa Madruga) de Pedro, cuja evolução nos dá a
chave dos pontos de viragem da narrativas. As mães acabam sempre por se
entender.
A deriva de
Rui não é uma deriva e não é motivada por nenhuma ideia. Porque um coração
partido não tem ideias. Não sabe bem tem para onde ir e só pode ficar onde
está, no chão, à espera que alguma coisa lhe aconteça.
A morte de
Pedro é apenas um pretexto ficcional. No cinema, como na vida, a morte não
existe, só existe a vida. O problema é que a vida não existe por si só. Só
existe antes e depois da morte de alguém.
O coração de
Nuno Gil (Rui) é o centro, o campo de batalha e objectivo deste filme, ou, pelo
menos, deste texto. Ana Cristina de Oliveira (Odete) vai fazer com que
aconteçam coisas, que é a sua grande especialidade pessoal, mesmo quando não
está num filme. Escrevo aqui os nomes dos actores antes do nome das personagens
porque no cinema de João Pedro Rodrigues os actores, para além de intérpretes
de personagens, são, antes de mais, os portadores dos seus próprios corpos.
Reveja-se o caso exemplar de Ricardo Meneses em O Fantasma.
O objectivo
de Odete é o mesmo de qualquer pessoa saudável e ambiciosa. Encontrar um corpo,
ter um corpo, que seja ao mesmo tempo o seu corpo, um filho e um amante. Deixo
ao vosso critério discernir se quando falo do seu corpo me refiro aqui ao corpo
próprio, ao corpo de alguém que se tem, se é que se pode ter alguém (ter um
filho, possuir um corpo), ou a ambos.
É um programa
óbvio, embora não seja fácil de concretizar. Não é executável, mas é
praticável. Não é um programa na acepção de plano susceptível de ser executado,
mas no sentido de um dispositivo de referência susceptível de gerar práticas,
exercícios, acontecimentos (à maneira de Deleuze). Um campo de acção, como seja
por exemplo um corpo, é, neste sentido, infinito.
Odete, sendo um
filme e revelando o entendimento das possibilidades da vida que só o cinema
proporciona, vai demonstrar de um modo implacável que por causa do desejo e do
amor todas as impossibilidades se tornam plausíveis. As cores do arco-íris são
apenas a expressão do triunfo da luz sobre um céu carregado de nuvens. A
expressão de uma eterna aliança. Em volta de duas alianças circulam as
metamorfoses dos sentimentos desta história, que se desequilibra entre a
assustadora efemeridade e a potencial eternidade de qualquer aliança amorosa.
Voltamos à
diferença entre o século XIX e o século XXI. Conjugando um romantismo radical e
pós-humano com a clareza do nihilismo optimista do jovem século. Odete não é uma tragédia. Também não é
um Breakfast at Tiffany’s. É um
«Later Dinner at Starbucks». Uma comédia dramática a que João Pedro Rodrigues
teve a generosidade de oferecer um «happy end»: ou seja, um final tão feliz
quanto possível.
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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 11 de Fevereiro 2006
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